Sexo, maconha e laranjas azedas com sal

É pegar uma laranja azeda, cortar exatamente ao meio, e ir colocando sal, aos poucos, em micro-pitadas, à medida em que se vai chupando. Umas três pequenas adições de sal dão conta. O que se sente? Bem. Um pouco do azedume da laranja, um pouco do salgado, obviamente, e, surpreendentemente, um leve sabor adocicado que não deveria estar ali – pois a laranja não é do tipo doce – mas está. Ele transava, desde sempre, experimentações gastronômicas. Contudo, a laranja azeda com sal aprendera com a mãe e com as tias quando ainda menino. Hoje ele é um homem velho a relembrar o seu passado com as cores fortes de um presente que fosse. Cores e sabores, como o da única laranja que neste dia estava em cima da mesa. Para sua alegria, era uma laranja azeda. E ele a chupou com sal. O gosto era de passado.

No sol da sua longínqua juventude ele se aquecia. Certo dia, muitos anos atrás, perguntaram-no sobre qual era a coisa de que ele mais gostava, no que ele respondeu, depois de pensar um pouco: “– Maconha e sexo”. Ele não levou mais de trinta segundos para eleger essas duas coisas como as suas preferidas. E pensou em como estava tanto tempo sem fumar um. E pensou também que já não fazia sexo com a freqüência de meses antes – não que n’algum dia estivesse satisfeito com a freqüência de suas relações sexuais. E o fumo... O fato de o fumo ser ilegal o perturbava, pois isso o restringia na impossível liberdade de fumar onde quisesse. Maconha ilegal, sexo restrito. Ah, o sexo... Este requeria um mínimo de paixão, e, ainda, requeria uma outra pessoa, e essa outra pessoa nem sempre estava apaixonada ou presente. Ele buscava na vida o prazer das coisas do corpo – que é o mesmo que alma. Buscava satisfação. Satisfação, para ele, era uma palavra como Comunismo, ou como Extraterrestre: essas coisas que são lindas, mas que não se sabe se um dia poder-se-á ver.

Numa tarde, ele pegou seu velho carro, que era uma extensão da velha bicicleta – sempre coisas velhas – e foi em direção ao incerto. Uma estradinha de asfalto centenário – datada de quando quase não existia asfalto. O incerto dele nunca era algo muito distante, em termos automobilísticos e viários, dada a situação do tanque com pouco combustível, sempre com pouco combustível. A velha estradinha sempre o esperava. Em silêncio e acolhedora. Ela o recebia, ele, o eterno menino velho – que sempre seria menino e sempre fora um velho –, com seu carro velho e com seu baseadinho, mas sem companhia para sexo. Numa das curvas ele acelerou mais que o considerado seguro, até que colidiu com um animal de grande porte. Era um burro. Na testa agora um pouco de sangue. No burro, caído no chão, não se via sangue, mas se via um animal tentando levantar sem sucesso – provavelmente uma fratura na bacia, ou na perna. Olhou para os olhos tristes, por fim, do burro, que parecia ter, após muitas tentativas, desistido de levantar. Sentou-se na grama, à beira da estrada, a quatro metros do burro e permaneceu, fitando-o. Sentiu vontade de chorar, mas não chegava a chorar em situações trágicas pessoais – os filmes o faziam chorar com muito mais facilidade. A morte de artistas queridos o faziam chorar, fossem contemporâneos seus ou não. Ali não chorou. Aquela situação, no entanto, era muito triste: um rapaz pobre com seu carro velho com o pára-lama direito amassado, sangue descendo na face, um pobre burro deitado na lateral da estrada, a incerteza sobre o que fazer naquele momento. E um burro, por si só, já é uma coisa triste.

Fugir e abandonar o animal: pensou. Mas que merda... dois burros, sem ação, à beira do caminho: pensou novamente. E pensou um milhão de coisas. E multiplique-se isso pelo efeito da Canabis-sativa em sua mente. Pensamentos de todas as cores, sabores, cheiros, medos e conclusões diversas. Não seria honroso um burro abandonar o outro. Ele pensava em sua honra, ainda que não houvesse expectadores. O sol, o vento frio, o céu que avermelharia com o ir das horas.

Milagres acontecem. Ela parou seu carro, bem mais novo, vermelho, e o ofereceu solidariedade, perguntando, primeiramente o que havia ocorrido, e como, e o que fazer, e em que posso ajudar, e como posso ajudar, e como isso foi acontecer, e como você pode mesmo ficar aí parado pensando no burro ferido quando podia dar o fora antes que o dono do burro apareça, e achou como ele era bonito, e ele também achou isso dela, e ela pegou na mão dele, e comoveram-se juntos com a situação, e saíram de perto do burro pra pensar na situação sem a imagem triste dos olhos tristes do triste animal, e ultrapassaram uma cerca, e fumaram juntos, e roubaram umas laranjas, e eram azedas, e aquilo era bom, e ela limpou seu rosto com a blusa molhada no riacho, e fizeram amor, e foram felizes, felizes, felizes... Voltando à estrada ela disse: “– Há uma hospedaria de cavalos perto daqui onde podemos avisar que há um pobre burro com a pata quebrada. Tem veterinário lá. Eles poderão dar um jeito. Não precisamos falar que você o atropelou”. E assim foi feito. E assim eles disseram: “– Até qualquer dia!” E eles nunca mais se viram. E o burro viveria feliz até o fim dos seus dias.

Voltando pra casa com o velho automóvel, de sua pequena viagem, ele trazia na mochila algumas laranjas azedas. Já na cozinha, as chupou com sal.