CAMPO SANTO
Foi um momento único, esse. As últimas chamas nas ruínas iluminavam o momento, despertando brilhos ensangüentados nas armaduras.
Depois de um certo ponto tinham começado a rodear-se, sem se aproximarem mais. Os seus ataques eram como sombras brilhantes, leques metálicos acontecendo num borrão que parecia acompanhar o aço das espadas vertiginosas gritando perigos.
Nasciam num ápice, soavam maldade, e logo depois retrocediam, neutralizados pelas defesas igualmente eficientes de outros Mestres. Mas todos os ataques deixavam marcas, e os Mestres, aos poucos, tombavam e morriam.
De um ponto privilegiado, assisti quando os dois últimos se encararam de armas em riste. A batalha parecia empurrá-los um para o outro, depois de terem deixado para trás os corpos tombados daqueles com quem as suas espadas haviam trocado rápidos beijos de morte.
De olhos nos olhos, com visível prazer, ensaiaram ataques sutis numa velocidade que não admitia hesitações nem assincronias, durante os quais se apoiavam muito mais no instinto e no conhecimento prévio dos movimentos do adversário do que nos seus próprios sentidos.
E mil vezes o combate pendeu a favor de um deles, por contraste a outras tantas em que pendeu a favor do outro.
Foi então que se deu um momento sublime, quando um deles passou apenas a repelir os ataques que se sucediam, sem revidar, nem tentar atingir o seu adversário.
Olhei-o com toda a atenção, e creio que, por um átimo apenas, pude ver claramente o que lhe ia na alma, e entender o enorme dilema que o dividia.
Lutava, mas só por respeito a um adversário que admirava, e a quem não queria fazer mal. Por isso, apenas se defendia, e com isso acumulava pequenos ferimentos que, pelo seu lado, não infligia.
Em pouco tempo ficou sangrando bastante e com movimentos limitados, á mercê do adversário e totalmente incapaz de se defender da morte que este lhe destinasse.
Houve um silêncio total no campo santo no momento em que o outro Mestre parou de atacar, e a espada ficou ao alto, num movimento de ataque interrompido.
Olhavam-se nos olhos, mutuamente, e em ambos eu podia ver a consciência que tinham desse momento, e de como ele os oprimia.
Fora a excelência que os colocara frente a frente, afastando sem dó todos os que não estavam á sua altura. E agora ambos tinham consciência desse destino que assim os opunha, em vez de aproximá-los.
O Mestre baixou a espada e cravou-a no solo. Segurou-a pelo punho e aplicou-lhe uma pancada lateralmente com o outro antebraço, logo abaixo do copo, quebrando-a.
Assim criava, também para si, a impossibilidade de lutar. Inclinou-se para a frente.
Ambos se abraçaram, esgotados, após as vênias rituais. Depois caminharam juntos, no evidente prazer de se apoiarem mutuamente.
A honra pesara mais que um pretenso destino.
( Junho/2009 - O mito das lâminas cruzadas - 1 )