Anjo mau e Diabo bom
- Me diga, garoto, você já tem um título para o artigo?
- Tenho um provisório, até escrevi ele aqui, mas ainda não sei se...
- Deixa eu ver. Hum. Anjo Mau e Diabo Bom? É criativo, mas não achei legal. Anote esse outro aí: Tudo na Vida é Fumaça, Incluindo Nós.
- Não entendi.
- Não entendeu? Então o que você fez aqui nas últimas horas, dormiu de olhos abertos? Não ouviu nada do que contei? Se estivesse atento perceberia que tudo o que vivi, pensei ou fiz é mera fumaça. São restos de algo que existia e foi consumido. Eu sou a fumaça da mulher que fui um dia. Não o perfume. Nem o aroma. Fumaça. Fedorenta. Tóxica. Inútil a não ser para tornar a vida dos outros cinza e curta. Portanto, preste mais atenção no que eu digo e não confie neste seu gravadorzinho aí, pois nada no mundo é confiável. Se ele falhar, você já era.
- Sim, senhora. Desculpe-me. Deseja continuar o relato?
- Claro, onde paramos? Hum, deixe-me ver... falei da Gabriela... depois da festa de solteiros... Ah, sei, parei quando me perguntou se eu me considerava uma versão feminina de Casanova ou Don Juan.
- Isso mesmo.
- Bem, digo que tanto Casanova quanto Don Juan, se existiram de fato, eram principiantes. Amadores. Dois frutinhas que só sabiam se gabar pelo número de mulheres conquistadas e por conhecerem os efeitos afrodisíacos dos alimentos. Só. Porém, um verdadeiro conquistador não consegue contar as suas presas. Nem por estimativa. Em quantidade, devo ganhar dos dois juntos, mas não é isso o que importa para mim. O meu foco sempre foi o aprendizado. O conhecimento que cada conquista poderia trazer. Não o conhecimento sexual, pois este é algo natural e instintivo. Mas o conhecimento do controle da alma masculina. Aprendi a conhecê-la, para depois vencê-la e dominá-la. Assim, suguei e adquiri toda a experiência que hoje eu tenho. Perceba isso no quanto eu já falei até agora...
- Sim, senhora, já foram cinco gigas de espaço no gravador digital.
- Tudo isso? Eu nem prestei atenção. Parece que falei tão pouco. Mas vou continuar. Casanova e Don Juan não foram conquistadores, mas somadores. Não descobriram continentes obscuros. Talvez, quem tenha conseguido chegar mais perto disso foi Sade. Não que ele tenha a fórmula perfeita, mas ao menos ele ousou extrapolar. Sade escreveu um manual de viagem, sem revelar o destino final. Pode ser que eu ainda não tenha chegado a este destino, mas já passei da fase que precise de mapas. Estou no nível avançado. Vou te contar apenas um exemplo.
Parando por um instante, ajeitou-se na poltrona como se buscasse na memória algo guardado de todos, e prosseguiu.
- Certa vez, namorei um rapaz extremamente ciumento. Do tipo que o sangue fervia só por outro me olhar. Ele ligava para meu amigos, parentes e colegas de trabalho para saber meu itinerário e agenda. Me seguia pelas ruas para saber se eu o trairia. Enfim, era o tipo que costumo chamar de ciumento-possessivo-inseguro. Existem muitos igual a ele, só que ele manifestava o seu ciúme ao extremo. Se fosse outra mulher, eu me sentiria sufocada e terminaria logo com ele. Mas resolvi fazer os meus experimentos. Primeiro tirei a prova de que estava completamente apaixonado por mim – como já te contei agora a pouco – para depois terminar abruptamente com ele. Mas não poderia ser só um término comum, ele precisava sentir-se culpado por isso. Assim, armei a cilada: convidei o meu irmão, que morava em outra cidade e lhe era desconhecido, para me visitar. O meu irmão chegou e à noite dei a desculpa ao meu namorado de que não poderíamos nos ver alegando ter algo importantíssimo a fazer. Fomos eu e meu irmão ao cinema do shopping. Shoppings sempre tem amigos de namorado dando bobeira. No caso dele, tinha vários. Imagine o efeito de fotos e torpedos chegando em massa no celular dele dizendo “a sua namorada tá com outro, corre pra cá!”. Não deu outra, ele veio voando, entrou no cinema gritando e furioso, armou o maior barraco, quase bateu no meu irmão, quase bateu em mim, e foi expulso pelos seguranças. Tudo conforme o planejado. E eu te digo, rapaz: não há nada mais maquiavélico que ver os outros agirem como fantoches em suas mãos, sem saberem disso.
- O seu irmão disse alguma coisa?
- Nada, ele me conhece muito bem. Ele é praticamente uma versão masculina minha. Foi embora sem ligar pro cara. Ele sabia que se tratava de só mais um coitado. Mas o importante é que espalhei entre os conhecidos do meu namorado que o meu irmão quase tinha sido agredido por um louco ciumento no cinema. Como você acha que ele reagiu ao ficar sabendo quem era o meu acompanhante? Acertei em mais uma previsão: no mesmo dia me ligou trinta e quatro vezes no celular. Não atendi nenhuma. Passou horas plantado na frente do meu apartamento, em vão, pois fui dormir na casa de uma prima. Os amigos e as amigas dele me procuravam, dizendo que estava arrependido, me pedindo para reconsiderar, porque ele se sentia mal e que nem comia direito. Coisas que, se não eram verdade, logo seriam, quando se passasse duas semanas de castigo. Após isso, fui na casa dele, para ver a cena patética que já esperava: choros, soluços, pedidos de perdão de joelhos, promessas de fazer qualquer coisa para remediar o erro. Fiz a minha lista de exigências, incluindo tacitamente o direito de humilhá-lo em público com eu tinha sido humilhada. O que fiz na frente dos pais dele, com eles me dando razão. Cada palavra minha tirava uma gota de sangue do coração dele. Se existisse algo mais humilhante a fazer para me agradar, ele teria feito naquela hora. Neste momento, eu disse que o perdoava, só porque o amava, e que qualquer pisada na bola como aquela seria definitivamente o fim. Geralmente, é a partir deste momento que a relação começa a ficar interessante. Até mesmo o sexo, que antes era aquela coisinha chocha, passou a ter outras dimensões, com apetrechos sado masoquistas, que ele no começo relutava usar, mas que, com o tempo e insistência acabou pegando gosto. Para mim era só a confirmação de outro experimento: tudo o que você rejeita em um momento da vida pode ser o que você irá amar em outro. E também: é preciso ficar atento e tomar cuidado para que os outros não moldem você do jeito que querem. E o último: um coração desesperado faz qualquer coisa, até mesmo aquilo que antes odiava.
- O namoro continuou por muito tempo?
- Não, durou só até acabarem as minhas experiências. Ele ainda se sujeitou a me dar tudo o que eu quis, em sexo, dinheiro ou trabalhos. E eu abusava cada vez mais. Ele intermediou encontros com os seus amigos, com os que eu escolhi, presenciou e participou em ménages à trois, rompeu relações com amigos e parentes porque mandei que assim o fizesse, aceitou torturas físicas, psicológicas e mentais cada vez maiores, tudo para não me perder de novo. Virou um escravo, um cachorrinho, que não respiraria se eu não mandasse. Pensava em mim a todo momento e a sua vida gravitava ao meu redor. Comecei a emprestá-lo para algumas amigas, bem mais velhas que eu, e depois a cobrar por isso. Ele obedecia a tudo. Só uma coisa ele não faria: me deixar. Mesmo quando eu joguei na cara dele que não o amava, ele dizia que não me deixava. Quando eu batia nele ou ficava com outros na frente dele, também não. Até quando contei todas as armações e experiência que tinha feito, ele não quis me deixar. Ao invés disso, repetia como um autômato que lá no fundo eu o amava. Que, se tratava ele exclusivamente tão mal, era porque era especial para mim. Pobre coitado! Não se cansava de me pedir pra lhe dizer que o amava e que, mesmo sendo mentira, o som das palavras lhe faziam bem. Mas um dia, eu cansei e percebi que não tinha mais nenhum experimento a fazer com ele, então resolvi ajudá-lo a se livrar de mim. Seria o meu último experimento com ele. Troquei de casa, de celular e parei de freqüentar os lugares que íamos juntos. Desapareci do mapa. Não foi preciso me justificar para ele, ele agora sabia como eu era e o que pensava, só precisava cair em si. Precisava abandonar a ilusão de que eu era a pessoa certa para ele, de que eu era a pessoa certa para alguém. Depois de dois meses fora, voltei e encontrei um amigo dele na rua.
“Você soube o que aconteceu com fulano?”, perguntou.
“Não”, menti.
“Ele se matou um mês depois que você terminou com ele. Deixou um bilhete dizendo que não sabia viver sem você”.
"Que pena!", menti de novo.
- Naquele momento refleti que todas as minhas experiências haviam sido bem sucedidas. Até a última: livrei ele do seu maior vício, livrei ele de mim. Quer uma prova maior de bondade para com outra pessoa? E ele já não era mais o mesmo, havia sido totalmente consumido por mim, assim como hoje eu também não sou mais a mesma, também totalmente consumida por mim mesma, ambos nos transformando na mais pura, fétida e desnecessária... fumaça.
Texto escrito por Jefferson Luiz Maleski em 10 de junho de 2009, às 02h25 de uma madrugada insone tentando gripá-lo.