O EXATO MOMENTO DE CALAR
Fora um dia estafante. Emanuel chegara em casa cansado. Era cedo da manhã. Havia cumprido seu turno da noite na refinaria de petróleo. Era um serviço que exigia uma atenção total durante todo o período. Ele era um técnico. Sob sua responsabilidade havia um painel de controle de toda uma ala do complexo de refino. Um mínimo de descuido na leitura ou no registro e um acidente de grandes proporções ocorreria, com certeza.
Como de costume, sua mulher já o esperava. Houve o reencontro com a família. O banho. O café. Um beijo nos quatro filhos, que logo haveriam de sair para o colégio, e acomodou-se para o descanso, no leito que já o aguardava, caprichosamente preparado. Mas, não era somente esta a rotina. Levantava-se à hora do almoço. Depois da refeição, mais um trabalho o esperava. Fazia um turno numa oficina de marcenaria que ficava próxima a sua casa. Era uma forma de ganhar mais algum dinheirinho. Não era fácil enfrentar as despesas com a manutenção de sua prole.
Ele era um bom marceneiro. Havia aprendido a profissão com seu pai. Várias vezes na marcenaria, onde ele trabalhava forte, lhe fora oferecido mais um turno de trabalho.Conseqüentemente, um ganho a mais. Isto porque seu serviço era esmerado. As peças que cabia a ele fazer, só tinham continuidade quando ele chegava, pela tarde. Desta forma, o dono da empresa tinha que dar mais prazo para a entrega. Porém, o tempo de espera era compensado pelo primor da peça pronta. Mas, não havia como Emanuel aceitar mais horas de trabalho. Seu principal emprego era o da refinaria. Além disso, era necessário descansar o suficiente para estar inteiro ante aquele painel de controle, quase a noite toda, mesmo porque, sonhava com o dia em que marcenaria fosse para ele somente um passatempo. Assim como... fazer coisas para sua casa, somente.
Presença já registrada no controle de ponto da refinaria, mesmo faltando vinte minutos para assumir seu painel, Emanuel, como de costume, senta-se numa poltrona na saleta de estar a espera de entrar em ação. Este era seu momento de fazer contatos com os colegas de trabalho. Conversar era coisa de que gostava muito. Conseguia ler o jornal domingueiro, daí, segunda feira era o dia em que estava com maior bagagem de assuntos. Por vezes já dobrava o meio da semana e ainda comentava suas velhas notícias. Ficava sabendo das novas pelos outros que as comentavam. Das novidades, quando muito sabia de algo que sua mulher lhe falava por ter colhido da televisão. Isso era quase toda a atividade social que ele tinha. O domingo era reservado para um descanso um pouco mais prolon-
gado, já que aos sábados envolvia-se com a marcenaria.
Joanira, sua mulher, ouvia-lhe sobre tudo. Sabia muito sobre a tecnologia de que ele era envolvido diariamente na refinaria. Parecia que queria compensação de um turno inteiro que quase não usava da palavra, absorvido por seu painel. Ela já podia emitir idéias sobre este ou aquele botão, que comprimido num determinado momento, aceleraria a ebulição deste ou daquele componente que estava se desdobrando do petróleo bruto. Pressão de vapor, calefação, duração de liquefação por quantidade de produto etc. ... etc. ... ela já podia conversar com ele, sem mesmo nunca ter contato, ou estudado tal assunto, nem se avistado com a matéria.
Emanuel era um eficiente funcionário e era reconhecido por isso na refinaria. Jamais causara um mínimo problema que fosse. Bem referenciado por sua chefia imediata, gozava de conceito exemplar perante a primeira linha de diretores. Isto lhe proporcionara cursos de especialização totalmente financiado pela empresa. Já ocupara cargos de menor importância, pois havia iniciado como elemento de serviços gerais. Sacrificou-se um pouco mas estudou. Quando formou-se num curso técnico foi guindado a uma melhor posição. É que sua conquista escolar juntou-se a sua boa ficha funcional. Por vezes pensava em cursar engenharia. Havia incentivo de sua mulher, agora, dos filhos e também de sua chefia. Porém, no momento seria dificílimo. Tomar o dia numa universidade, mais o tempo para estudar, e virar a noite lá em frente ao seu painel, tudo isso junto não seria nada fácil. E ainda mais, teria de deixar o bico que fazia na marcenaria. Isto levaria a uma baixa no seu poder econômico, que já estava no limiar do equilíbrio. É, no momento não dá para abraçar esta causa. Seria um duríssimo período. Compensatório no futuro. Por outro lado, como ficaria a situação dos filhos em idade escolar? E os mais velhos já chegando a adolescência? A compensatória do futuro desatrelaria o presente de seus planos de agora. Então, vamos em frente assim como está, pensava Emanuel. E toca a vida.
Dentro do seu andar quotidiano, sem mudanças, palmilhando sua trajetória dias mais, dias menos, o cansaço o apanhava quando a semana ia chegando ao fim. Rezava para que depressa fosse domingo.
Certa noite, chegou na refinaria até um pouco mais cedo do que de costume. Após marcar sua presença, sentou-se para tomar um cafezinho. Um pouco de conversa com colegas que também se aprestavam pa iniciar o turno, fazia parte, era quase um ritual. Ah! ... Soube que você faz maravilhas em marcenaria, falou alguém. Então, surgiu uma voz interrogatória: Quem? O Emanuel? Ele mesmo. Falou o colega que abrira o assunto. A novidade se propagou. Daí, foi necessário descartar com muita diplomacia pedidos e encomendas. Não seria possível. Emanuel não tinha oficina, nem tempo para aceitar serviços. Naquela noite, por exemplo, estava tão cansado, antes de iniciar o seu turno, que até tomara uma dose dupla de cafezinho, bem forte. A hora chegou. Tomou a si a responsabilidade do painel. Tudo estava em ordem. Recebera do colega registros, anotações, etc. ... os quais conferiu.
O tempo a correr e o trabalho sendo feito. Mas, logo parecia que o relógio diminuía seu ritmo e o cansaço aumentava. O corpo pesava mais do que de costume. Os gestos ficavam mais lentos. Os olhos pareciam de pálpebras mais difíceis de movimentá-las. Começou a ficar problemático manter os olhos abertos. Pensou em lavar o rosto com água fria, mas nos minutos seguintes, pois era o exato momento de fazer uns registros e redimensionar uns parâmetros num determinado aparelho. Sentiu que não conseguiria. Era preciso reagir. Manter-se acordado. Como ficava sozinho ante aquele painel, estava se tornando penoso manter-se alerta. Havia um dispositivo que informava para a central, periodicamente, se o funcionário estava ativo. A intervalos incertos, um sinal de luz vermelha e intermitente aparecia no painel, e o operador deveria naquele exato momento apertar o botão da resposta. Emanuel mantinha-se a muito custo. Lastimava ter-se descuidado com excesso de trabalho, na marcenaria, adentrando o tempo de seu descanso. Quando encaminhava-se para o banheiro, pensando em molhar o rosto, alguém o chamou pelo nome: Emanuel! ... Emanuel!! ... Onde você vai? E Emanuel, que ainda estava bem próximo ao painel, nem vira o colega entrar, ficou sem saber o que estava acontecendo. E, quando ia falar, antes falou seu colega: Você está muito cansado, isto aqui é um serviço de precisão... Pois é, retrucou Emanuel, e acrescentou: vou lavar o rosto e se não me recuperar vou informar a central para ser substituído. Não, disse o colega. Deixa comigo e vá descansar um pouco. Após lavar o rosto, Emanuel deitou-se um pouco numa poltrona da sala contígua. E dormiu. Ao acordar-se, de modo repentino pôs-se de pé. O grande relógio de parede marcava dez minutos para o fim do seu turno. Rápido dirigiu-se ao painel. Tudo estava feito como de costume, conforme ele fazia. A planilha de trabalho estava pronta com os últimos registros de dez minutos atrás. Era só aguardar o seu substituto. Mais confuso do que surpreso, Emanuel sentia-se leve, descansado, quando ouviu a voz do colega atrás de si: agora, tenho que ir, mas, escute algo importante, não conte a ninguém sobre isto. E em seguida, saiu. Um pouco devagar, passos lentos, Emanuel foi até a porta por onde o colega saíra recentemente e não mais o viu. Como teria percorrido aquele imenso corredor em tão pouco tempo? Caramba! ... Que noite diferente, pensou. E assim ficou sem muita certeza de ter vivido o fato ou sonhado.
Em pouco começaram a chegar os colegas do turno da manhã. Na troca o substituto estranhou Emanuel. Eh!!! ... cara!!! Você está inteirinho, parece que nem trabalhou, quer dobrar e fazer o meu turno? Puxa! ... Isto que foi à noite. – Emanuel fechou a brincadeira de modo clássico, dizendo: Ah! ... eu me cuido.
Durante todo o trajeto para casa, Emanuel sentia-se diferente. Não estava dormindo no ônibus como de costume. Não estava cansado. Pela disposição que estava, imaginava aproveitar mais o dia para fazer outras coisas. Mas, algo naquele colega o deixava inquiridor de si mesmo. Interessante, nunca vi alguém, pelo menos na minha ala, de guarda-pó branco. Todo mundo usa guarda-pó marinho. Outra coisa, por que não lhe perguntei o nome? Por que não reparei o seu crachá?
Ao chegar em casa, sua mulher notou a diferença. Ele não havia chegado com o costumeiro cansaço. Oi!... mas que bom que você chegou mais inteiro hoje. Plantão aliviado?... Mudou de cargo?... – Não... não, Joanira. É que... talvez o trabalho tenha corrido mais leve esta noite. - Pois olha só querido, eu esperava que você chegasse hoje juntando os cacos. Pois ontem, você abusou do trabalho na marcenaria, ficando quase sem tempo para descansar. Eu já observei você que isto não é bom para saúde. Mas... querida, terminando aquela peça teremos no fim de semana um dinheirinho a mais. – Mais cuidado com você, amor, lhe retornou Joanira, e acrescentou: será um tanto de dinheiro que não terá mais valor do que a saúde. Cuide-se!
O tempo passava, os dias corriam e as noites chegavam levando Emanuel para frente do painel na refinaria. Pensava seguidamente em retribuir ao colega, de alguma maneira, aquela gentileza, aquele favor que lhe fora precioso. Até que, uma certa noite, enquanto fazia uns registros, lembrava do colega de guarda-pó branco. Não estava muito cansado. O turno já ia em meio. Valeu-se de um minuto para servir-se de meia taça de café preto. Ao primeiro gole, apareceu à porta seu colega de branco, como se viesse do banheiro. Não conseguiu saúda-lo primeiro porque teve de engolir o bocado de café que colocara na boca. Então, Emanuel!... falou o outro, tudo bem? – Sim... sim... você não vai chegar num cafezinho? – Não. Estou bem! E você rapaz, vá descansar um pouquinho. Mas escuta aqui seu... - Não se preocupe, eu estou de folga. Vá... aproveite. E assim, Emanuel foi parar na poltrona, novamente. Tudo voltou a acontecer como da outra vez. Dez minutos antes do final do turno, tudo estava prontinho. Emanuel acordado. E, ao dirigir-se ao colega, não teve tempo de mais diálogo. Apenas ouviu a recomendação: não comente isto com ninguém. E o colega foi-se tão rápido como já acontecera.
Emanuel não sabia bem o que estava acontecendo, somente que aquela ajuda lhe era bem-vinda. E tornaram-se em repetição a ponto de marcar uma rotina no trabalho dele. Sempre que estivesse mais cansado do que de costume, lá vinha o amigo para ajudá-lo. Mas que coisa, este colega grisalho deve ter uma influência muito grande na empresa. Ou por outro lado, pode ser um fiscal... Não, isso não. Caso fosse, não me ajudaria. Agiria bem ao contrário. Muitas vezes o fato se repetiu. O colega grisalho de guarda-pó branco lhe dissera um dia: descanse um pouco porque você tem mais o que fazer durante o dia. Mas, Emanuel no momento não se dera conta de que o colega falara sobre sua vida particular. A menção de perguntar-lhe o nome, o colega se antecipava com a recomendação: não comente isto com ninguém. Logo após ia-se depressa, sem mesmo dar a chance de ter seu nome lido no crachá. E assim foi por um bom tempo.
Em casa, com energia sobrando, dando atenção à mulher e filhos, após estas noites de ajuda, quando Joanira lhe observava: você hoje está mais disposto! - É que o trabalho foi mais leve, respondia Emanuel. E não lhe saia da cabeça a recomendação: não comente isto com ninguém.
Anualmente, no dia em que se comemorava a fundação da empresa, havia sempre uma festa. Funcionários de todos os níveis participavam. Assim, numa dessas festas estava também Emanuel. Era a oportunidade de encontro com tantos colegas, que no dia-a-dia se tornava difícil acontecer. Alegrias. Falatórios. Conversas jorrando de todas as fontes. E, no grupo em que ele estava, rolava coisas que iam além da imaginação. Colegas que trabalhavam à noite contavam coisas sobrenaturais. Eram máquinas que trabalhavam sozinhas, luzes que se apagavam e se acendiam, vozes que se ouviam sem que alguém fosse visto, funcionários que pediam ou alcançavam ferramentas, mas que desapareciam, quando se fazia menção de atendê-los, e por aí se ia um sem número de casos contados por um e outro. Em meio a isso, Emanuel entrou no embalo e contou o que lhe acontecia. Foi mais um dos tantos que se somaram aos casos já contados. Ninguém achou no seu relato, nada que realmente fosse tão relevante, como coisas do além já contadas e ouvidas ali. No momento em que se seguiu a tais falas, Emanuel sentiu-se como que sacudido por uma advertência, aquela que o colega de guarda-pó branco sempre fazia: “não comente isto com ninguém.” Conturbado, ele teve a sensação de que perdera o exato momento de calar. Em meio a tantas falas e ruidosas risadas, na alegria própria da festa, alguém lhe bateu às costas, e ao voltar-se, não identificou quem fizera aquele gesto comum entre colegas. Era o momento do brinde. Tudo isso é normal, ... assim pensou ele.
Já se passara quase um ano. A comemoração do aniversário da refinaria estava quase de volta. Emanuel agora já não tinha nada de novo para contar. O colega grisalho de guarda-pó branco não mais lhe aparecera. Emanuel por várias vezes esteve cansadíssimo, arrastando-se quase, durante o turno inteiro. Mas, nada do colega grisalho aparecer. Ao longo desse tempo de ausência, de tão boa ajuda, Emanuel amargava repetindo em seu pensamento: “não comente isto com ninguém.”
Os anos se foram desfilando na vida de Emanuel. E nunca mais o grisalho de guarda-pó branco apareceu. As dificuldades pareciam agora maiores ou mais pesadas. Embora sempre fosse exemplar, foram-se fechando para ele, oportunidades de cursos de aperfeiçoamentos. Os convites com os quais era agraciado rarearam de acontecer. Mesmo quando ocorriam, havia sempre um empecilho de alguma natureza. A engenharia que até chegara a sonhar, lhe parecia agora tão distante, inacessível mesmo.
Quando um dia Emanuel foi chamado à direção geral a fim de iniciar suas tratativas para aposentar-se, foi muito bem recebido. Também, muito elogiado por sua folha exemplar de serviços prestados à refinaria. Na verdade, ele sempre fora um funcionário de escol. Um dos diretores lhe apertou a mão e disse-lhe: - que pena meu caro Emanuel, com toda essa folha de serviços, você poderia ter subido mais, caso tivesse aproveitado certas oportunidades. - São coisas da vida, disse Emanuel. - Bem, mas até que seu índice de aproveitamento é dos melhores, complementou o diretor. E, a seguir, convidou-o a tomar um cafezinho. Emanuel começou a olhar a galeria de fotos dos diretores que estava ao redor da sala. Aproximou-se de uma foto de um senhor grisalho e estupefato perguntou ao diretor que o acompanhava: quem foi este? E o diretor falou: este foi um xará seu, o Dr. Emanuel. Foi uma bela pessoa. Um exímio cumpridor de seus deveres. Ingressou como funcionário de serviços gerais. Com muita dificuldade formou-se em um curso técnico. Fazia um bico numa fábrica de brinquedos. Tinha quatro filhos. Fez cursos de aperfeiçoamento. Como merecimento ganhou uma bolsa para cursar engenharia. E, por fim, veio a dirigir a refinaria. Nos últimos anos de trabalho, passou a usar um guarda-pó branco, quando visitava no local de trabalho, aqueles funcionários, em quem acreditava eleito para uma futura participação na direção da empresa, mesmo que viesse a ocorrer muitos anos depois. Você não o conheceu. Eu tive o privilégio de privar com ele em meu início, mas, em pouco tempo ele veio a morrer de repente, na refinaria, em plena atividade.
Emanuel, tomado de uma palidez, como se não tivesse sangue, emudeceu. Escapou-lhe das mãos a xícara, o pires, entornando o café. E, no branco mármore do chão, foi-se formando uma mancha escura. No contraste, ele identificou a silhueta do grisalho, aquele da foto. O mesmo que o visitava.