Audrey Hepburn em "Bonequinha de luxo".

                                  
                                     


Do mundo nada se leva




Olhou para trás com uma sensação estúpida de quem tenta descer escada rolante que sobe. Com algumas décadas bem vividas, ela bem sabia que entender o mecanismo do tempo, consiste na elementar idéia de viver o agora, mas naquele momento, alguma coisa se agarrava a sua memória, ainda que quisesse seguir, ultrapassar. Alguma força parecia levantar-se como um fantasma que engolfa uma tela e projeta imagens velozes, há muito esvaecidas. Os sentidos duplicados emergiram numa comoção inexplicável - Uma viagem de carro para Serra Negra. No vidro de trás, uma garotinha faz careta para o motorista... um passeio a cavalo, o cheiro do animal e as carícias em sua crina. No hotel, o aroma de brioche quentinho, o gosto de coalhada caseira. Um primeiro beijo atrapalhado, uma carícia íntima ruborizada, mas não menos saciada, uma onda acariciando os pés adolescendo em luas de desejo depois, no clamor do sexo* uma janela indiscreta* expõe dois corpos nus enlaçados - dois adolescentes como os sonhadores* de Bertolucci numa preguiçosa tarde de maio e, de súbito, a época da inocência* é quebrada com a sensação de um remorso. Um golpe duro como uma onda arrebentando num píer e nada reverte o peso na consciência de ter magoado alguém que se gosta, talvez para sempre. Um zoom sobre casas, cidades, bye bye Brasil* e as imagens se deslocam para um outro país - uma despedida no aeroporto de Heathrow e o coração lá, truncado na tristeza das horas que não vão embora, como um final Casablanca*, para sempre noir. Nunca mais vai passar, eu sei, mas mamãe é de morte* e a faz sentir como uma das mulheres de Almodóvar : latinamente exagerada : Deixa de besteira garota, você tem uma vida pela frente !
Mesmo nos momentos enfadonhos do dia- a- dia, em que o lado bonequinha de luxo estava muito longe de um Breakfast at Tiffany´s*, ela lembra de cenas deliciosamente desfrutadas como um acordar e sentir os pés no chão, o cheiro de café, a luta inglória de tirar o pó e a nata do leite que sempre reaparecem. O sabor da salada simples, apenas alface, sem cróton ou mostarda de Dijon. Quem, de fato, ama a vida, às vezes pega cenários emprestados com uma criatividade digna de Roger Corman*. A tela fica negra, nenhuma imagem, somente alguns pontos difusos e da escuridão, surgem velas, muitas flores e um corpo sem vida. Ah ! essa terrível impotência diante da morte e o estranho gosto do nunca mais, tempo demais ! e até mesmo a cadelinha Salomé, é lembrada na casa de campo, enterrada com todas as honras, porque toda vida encontra o ocaso, da mais insignificante a mais grandiosa como num Crepúsculo dos deuses* e nesse momento, um sentimento imantado pela fugacidade de tudo, pesou numa lágrima doída e até mesmo a morte lhe pareceu uma celebração à vida. De repente, a paisagem muda de novo, se torna exótica... longe - verão, um cruzar de olhos numa praça em Veneza. Naquela mesma tarde, um encontro, um beijo e uma despedida. A mágica paixão de algumas horas. Quem sabe fosse para sempre, não houvesse a pressa, a conta do Hotel, a passagem marcada, mas a praça e o beijo ficam lá atrás. Resta apenas uma revoada de pombos sobre a igreja bizantina dando um ar aristocrático e melancólico como uma cena de Morte em Veneza*. As imagens passam tão rápido que se desfocam, mas particularmente uma, se faz nítida, numa proclamação de amor para o mundo - um casamento para sempre, até que morte os separe, beijo selado e flores, lua banhada em mel, anos de cafés da manhã, pasta de dentes e contas e as diferenças se reconfortam no abraço de um perdão afinal, é tarde demais para esquecer*. Um dia, tantos porquês, cristalizam a esperança no sal da rotina e o arroz da cerimônia, há muito varrido do cenário onírico, fica esquecido como a lua na sarjeta* então, a coragem ou a ilusão lhe convencem com palavras doces que a felicidade não se compra* e algo novo, dessa vez melhor, bem maior, pode ser vivido. Os homens do caminhão de mudança parecem cruéis como cães de aluguel* empacotando seus sonhos de menina com silver tape, mas assim caminha a humanidade* e ela junta os pedaços na força de um recomeço, uma outra viagem, um novo trabalho. O caminho dessa vez é mais claro, mais seguro, e um ar de nouvelle vague* ganha a cena - um prazer de gozar a vida como se faziam bons filmes antigamente: sem preocupação com bilheteria, como numa Noite americana* em tempos de dolce vita*. O carro desliza na estrada - olhos de gato, farol alto que cega, mas a garotinha no vidro detrás, agora refez seu roteiro na fina película da experiência que não permite ensaios. Agora ela é senhora do seu próprio percurso, pouca bagagem no porta-malas, tempos de economia, compactos desejos, até que um tropeção na incerteza das horas esparrame toda essa filosofia minimalista pelo chão e o fantasma da liberdade* embaralha os planos de novo. Repentinamente, na atemporalidade da busca, a cronologia não se encaixa : as horas*...elas construíram anos...Ah, se eu tivesse coragem de enfiar pedras no bolso e caminhar para o fundo do rio ! mas são tantos os laços criados e o mais curioso: uma ponta solta insiste, tremulando sem nenhum recato ao vento. Sua cor parece mais forte do que toda concretude vivida....a praça em Veneza, o beijo, a despedida... porque a estória inacabada permite imaginar para sempre, mil finais felizes e por mais patética que seja essa herança romântica e ela que faz irromper uma nova manhã grávida de desejos até descobrirmos por fim, que tudo que se ambiciona é uma família, desfrutar de uma vida serena e tranqüila no mais absoluto anonimato afinal, até essa, foi a última tentação de Cristo*. Inesperadamente, a projeção termina. O telefone toca : 

- Aqui é o Diego da vídeo delivery. Desculpe, mas não temos o filme que a senhora pediu em DVD
 
O garoto é fera. Sabe tudo de filmes, passa a sinopse por telefone, sem ler !

- Ah, sim, o que foi que eu pedi mesmo, Diego ? 

- A senhora pediu um clássico, "Por um lugar ao sol" 

- Claro, agora me lembro, Montgomery Cliff e Liz Taylor... 

- Gostaria de pedir outro filme ? ...uma comédia, um suspense ? - silêncio

- Alô ?! a senhora continua na linha ? Alô... !
 
Atordoada, ela desliga o telefone. Naquele exato momento a campainha tocava. Ela levanta-se para abrir a porta com uma sensação pesada de quem assistiu um filme de três horas. E´dona Estela, uma vizinha já idosa, mas com um fantástico humor de moleca.

- Oi Estela, tudo bem ?

- Tudo bem. Vi a luz acesa, sábado à noite! ...não vai sair ?

- Hoje não, tá muito frio ! 

- Cruzes, menina, que cara de enterro é essa ?

- Nada não, eu estou bem. Ia alugar um DVD, mas desisti... estava aqui, pensando.

- De pensar morreu um burro...segura esse prato.

- Humm, que cheiro bom Estela ! O que temos aqui ?

- Bolo de fubá, está desmanchando na boca !

- Obrigado, não quer entrar ? 

- Quanto mais quente melhor - diz a velhinha.

- Bem, então vamos comer, já. Entra, Estela !

- Eu estou falando do filme: "Quanto mais quente melhor". Já viu ?

- Ah, o filme ! Claro ! Acho que vi na sessão da tarde com minha mãe. Vinte anos atrás ! Já nem me lembro.

- Pois eu tenho em DVD. Quer assistir ?

- Ótima idéia !

- Dois minutos, vou buscar e já volto...é vapt, vupt ! – já virando-se em direção a porta em frente.

- Espera aí, Estela ! Escuta, só. Você já ouviu falar que quando as pessoas estão morrendo elas vêem toda a vida delas passar como um filme, assim ! – diz ela estalando os dedos – numa fração de segundos?

- Ainda não cheguei lá, minha filha, mas não posso me queixar. Se assim for, vou assistir um filminho dos bons! – ela estampa um sorriso maroto.

Já andando no corredor, dona Estela vira-se com uma ligeireza de menina, o olhar grave de quem pergunta algo importante :

- Ainda tem uma garrafa daquele tinto Malbec ?

- Tem sim Estela, tá esperando por você.

-That's my girl ! diz a velhinha com trejeitos hollywoodianos abrindo a porta do apartamento.



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Do mundo nada se leva – filme de Frank Capra (1938)

No clamor do sexo – Um dos mais admiráveis trabalhos do diretor Elia Kazan (50) com a linda Natalie Wood e Warren Beatty (fazendo sua estréia no cinema)

Janela indiscreta – suspense de Alfred Hitchcock

Os sonhadores – último filme de Bernardo Bertolucci

A Época da inocência – filme de Martin Scorsese, com Daniel Day-Lewis, Michelle Pfeiffer e Winona Ryder.

Bye bye Brasil – filme dirigido por Cacá Diegues, considerado por muitos uma das mais importantes produções brasileiras da década de 70

Casablanca – dirigido por Michael Curtis com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman

Mamãe é de morte – comédia de humor negro, dirigida por John Waters. Brilhantemente interpretada por Kathlen Turner

Bonequinha de luxo – Título Original: Breakfast at Tiffany´s. Dirigido por Blake Edwards (Vítor ou Vitória?) com Audrey Hepburn e Mickey Rooney. Adaptação de um livro de Truman Capote.

Roger Corman – roteirista, produtor, diretor e ator que moldou a cara dos Filmes B, e que lançou atores e diretores – hoje famosos. Fez filmes de ficção com pitadas de terror, com baixíssimos orçamentos, alguns, excelentes, fruto da sua extrema criatividade. Ele usava mesmo cenários de outras produções para baratear os custos das suas. Filmou muitas estórias de Edgar Alan Poe. The Fall Of The House Of Usher (1960), por exemplo, é uma bela adaptação da obra do escritor, talvez a melhor de todas, com Vincent Price no elenco.

Crepúsculo dos deuses – Do genial diretor, Billy Wilder através de uma intensa carga dramática e ambientado em um funesto clima noir (50) aborda o sepultamento do cinema mudo norte-americano, expondo a decadência dos ídolos daquela fase cinematográfica. O título original é “Sunset Boulevard”. Ironicamente, a grande estrela do cinema mudo, Gloria Swanson, mesmo dando um show de interpretação neste papel que simboliza o clímax da sua carreira, seguiu o seu próprio crepúsculo a partir de então, só protagonizando filmes medíocres até a sua morte. A cena de um macaco, enterrado com todas as honras pelo mordomo é qualquer coisa.

Morte em Veneza – filme magistral de Luchino Visconti.

E´tarde demais para esquecer - Outro clássico na série de filmes românticos dos anos cinquenta com Cary Grant, e Deborah Kerr, no auge de suas carreiras.

A lua na sarjeta – filme de Jean-Jacques Beineix. Adaptação excelente e fiel do livro do norte-americano David Goodis, com Nastassja Kinski, Gérard Depardieu e Victoria Abril.

A felicidade não se compra – deliciosa fábula dirigida por Frank Capra (1946)

Cães de aluguel – filme de Quentin Tarantino

Assim caminha a humanidade – fabuloso épico. O diretor George Stevens (Os Brutos Também Amam) leva às telas a saga de três épocas de uma família texana. Com Elizabeth Taylor, Rock Hudson, James Dean e Dennis Hopper.

Nouvelle Vague –significante desenvolvimento em cinema desde o neo-realismo, uma das poucas verdadeiras linhas divisórias da história cinematográfica. O termo pegou e logo se aplicou a um novo estilo cinematográfico, cujo protótipo seria Acossado de Jean-Luc Godard.

Noite americana – filme de François Truffaut. Um dos filmes que melhor representa as loucuras que se passam em um set de filmagem.

La Dolce Vita – Filme do grandioso Frederico Fellini.

O fantasma da liberdade – Fantástico e intrigante filme de Buñuel. Influenciado pelas idéias surrealistas e por Freud, Buñuel ironizou impiedosamente tudo aquilo que considerava entrave à emancipação do homem. Usava para isso elementos como o sonho, a obsessão por insetos e animais.

As horas – Filme realizado por Stephen Daldry com Nicole Kidman, Julianne Moore, Meryl Streep. Uma mini-biografia de Virginia Woolf, debruçando-se sobre o período em que a escritora concebia “Mrs. Dalloway”.

A última tentação de Cristo - mais um filme do célebre Martin Scorcese

Quanto mais quente melhor – Considerada uma das melhores comédias da história do cinema. Dirigido por Billy Wilder (Se meu apartamento falasse) com Jack Lemmon, Tony Curtis e Marilyn Monroe. Curiosidade hilariante - Foram necessárias 47 tomadas para que a cena em que a personagem de Marilyn Monroe diz a fala "It's me, Sugar" ficasse pronta. A atriz sempre trocava a fala ou para "Sugar, it's me" ou para "It's Sugar, me". Após a 30ª tomada, o diretor Billy Wilder resolveu escrever em um quadro-negro a fala correta, para que Monroe não mais se confundisse.
Ana Valéria Sessa
Enviado por Ana Valéria Sessa em 26/05/2006
Reeditado em 30/04/2009
Código do texto: T163475
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