CASA DE RETALHOS
CASA DE RETALHOS
Todos os outros tinham ido embora, levando tudo o que era aproveitável, inteiro ou rentável. Deixaram para trás apenas o que estava quebrado, disforme, estragado ou muito sujo.
Ana Luiza, a herdeira incontestável de todos aqueles cacos, estava parada, inerte, olhando para todos aqueles restos descartáveis de algumas vidas. Depois, encolheu-se num canto do fino pedaço de espuma que fazia as vezes de colchão e pensou: "... melhor dormir... amanhã penso nisso."
E o amanhã chegou, tranzendo no bolso esquerdo do paletó de linho azul-céu, um esplendoroso sol dourado, que tornou possível a Ana Luiza aquecer sua solidão e clarear sua tristeza.
Devagar, em movimentos retroativos, Ana Luiza começa a "dar um jeito" em todo aquele arsenal pequeno burguês decadente. Arrasta para o meio do quarto a cama feita pelo pai há muitos anos atrás _ ai Deus!, quantos anos!_ com o estrado quebrado, todo batido de pregos casuais. Acomoda por cima o pedaço de espuma, oculta essa indecência com uma colchinha reles, rala, de um vermelho desbotado, com uns bordados desmanchados aqui e ali, lembrando caminhos interrompidos ou membros decepados. Coloca ao lado da cama um caixote de madeira que foi por ela promovido a criado-mudo, bem mudo mesmo, e sobre ele algumas tralhinhas como uma foto amarelada faltando alguém que foi recortado, um cinzeiro "ESTIVE EM POÇOS DE CALDAS E LEMBREI-ME DE VOCÊ", algumas páginas desfolhadas da relíquia infantil "AS MAIS BELAS HISTÓRIAS", uma garrafa de cerveja servindo de jarra para a flor de papel crepom desbotada que um dia fôra dada à mãe, alguns grampos, um alfinete, uma tigelinha de plástico bem pequena servindo de porta-bijouteria barata. Remexendo daqui e dali encontra um lençol de casal de tecido estampadinho. Corta o pedaço rasgado e eis que agora Ana Luiza tem até cortina no seu quarto enganado de cortiço desencantado.
Na sala, não há muito que ela possa fazer. É encostar num canto o que sobrou do jogo de sala. Uma única poltrona dois lugares, melhor dizendo, poltrona lugar nenhum, de tão esburacada. No outro canto uma folhagem tímida esticando-se de dentro de uma lata de óleo 9 litros, forrada com papel de presente. No centro, as costas de um velho casaco de tricô servindo de tapete e de frente para a porta de entrada, alguns tijolos amparando uma tábua e formando uma estante misteriosamente adequada ao cenário, contendo o rádio antigo quebrado, algumas revistas de fotonovela, um peso para papel e na parede o retrato pintado da família reunida que ninguém conseguiu querer.
Ana Luiza olha tudo com alguma reticência... mas acaba decidindo que tudo ficou lindo!
Animada, vai para a cozinha e o faz-de-conta recomeça. Coloca de quina o fogão 4 bocas_ na verdade uma boca só_ que foi da avó. A geladeira estragada vira armário requintado para o quase nada a ser guardado, a água fresca garantida pela bilha lodosa. No beiral da janela, algumas plantinhas brotando de copinhos vazios de iogurte e latinhas de massa de tomate, completam a decoração.
Ana Luiza, sentada no banco natural que a soleira da porta da cozinha fornece, aprova tudo feliz da vida sem se dar conta de que o abandono de ontem é a magia de hoje, que faz com que cada pedacinho de sua casa de retalhos pareça sedas, cetins e veludos do mais rico palácio que povoa a sua imaginação !