FORA DE LUGAR

FORA DE LUGAR

Levantei-me e olhei em volta.

Estranho...tudo estava ali.

No entanto, aquela sensação persistia.

A sensação de que algo estava fora de lugar.

Desci as escadas e entrei na sala enorme com sua lareira aconchegante e seus móveis confortáveis. Nada mudara.

Na biblioteca as mesmas capas fitavam-me como ontem.

O cheiro bom de café recém coado, ainda era o mesmo vindo lá da espaçosa cozinha planejada.

O dim...dom... do carrilhão secular ecoou do mesmo jeito que eu me lembrava.

Corri pelo longo corredor sentindo em minhas pernas o roçar de minha camisola e nos pés, o macio do tapete persa.

Abri as janelas francesas da sala de jantar com sua magnífica mesa de banquete encerada e olhei de um lado para o outro da varanda.

Tudo estava em seu devido lugar. A rede colorida, as cadeiras de balanço, as poltronas de vime, a mesinha do lanche, as samambaias choronas dependuradas nas vigas de madeira envernizada, o cesto com as revistas semanais...tudo estava ali. Até mesmo o pé direito do meu chinelo vermelho, que Lorde, o meu lindo Dálmata, estivera mastigando na tarde anterior, estava lá, esquecido no terceiro degrau da escada de mármore que descia para o jardim. Fui ao jardim e lá também tudo estava em ordem. A grama verdinha aparada rente, o meu precioso canteiro de Margaridas no centro, os Lírios amarelos à direita e os Girassóis à esquerda. Segui pelo silencioso caminho de pedras que acabava no caramanchão ao lado do repuxo dos peixes. E até os peixes, amarelos, azuis e vermelhos, continuavam lá, nadando lentamente na sua interminável tarefa de nada fazer.

Meu Deus! Nada, havia fora de lugar!

Virei-me lentamente, sentei-me à beira do repuxo e por mais que eu me esforçasse, não conseguia perceber nada diferente.

Só aquela sensação...

Andei em direção à piscina com sua água parada, calmamente refletindo a luz desbotada do alvorecer, as cadeiras desarrumadas, os guarda-sóis abertos balançando suas franjinhas ao vento frio, as lajotas ainda molhadas pelo orvalho expulso pelos raios ainda bem fraquinhos do sol que nascia. Ali também, apesar da desordem deixada, nada estava fora de lugar. Continuei andando, já sem prestar atenção na direção tomada, até que escutei o relincho de Alado, meu enorme cavalo alazão, na sua baia, reclamando seu desjejum. Suspirei. Ele também não estava fora de lugar. Desisti. Voltei lentamente para a casa. Parei na soleira da porta do meu quarto e olhei demoradamente. A penteadeira, com meus potes e mais potes de nem sei o quê, com a banqueta tombada sobre o felpudo carpete verde. A janela semi-aberta deixando esvoaçar a cortina branca de rendas. O fabuloso colar de diamantes com os brincos igualmente fabulosos sobre o criado-mudo. Meu maravilhoso vestido azul-petróleo, usado na festa da noite anterior, estava lá, deitado sobre a poltrona cor ferrugem criando um encantador contraste. Na cama enorme com dossel, meu travesseiro amassado, meu edredom afastado, e meu marido, tão amante e tão amado, dormindo profundamente. Ah! Tudo tão em seu lugar!

Por que, então, não conseguia me sentir calma?

Resolvi molhar o rosto e fui até o banheiro do outro lado do quarto e lá estavam a minha banheira, meu vaso, meu mancebo, minhas prateleiras repletas de mais potes e mais potes de não sei o quê, as toalhas felpudas, tudo, tudo, absolutamente tudo estava lá no seu lugar. Fui até a pia e molhei meu rosto, nuca e pulsos. Olhei-me no espelho de cristal e então...compreendi.

...aquele não era o meu rosto!

Fiquei paralizada, olhando para aquela intrusa.

O que ela fazia ali?

Senti vontade de gritar, gritar, gritar feito louca e foi o que eu fiz.

E como louca, gritando e me debatendo, foi que me acordaram.

Arregalei os olhos fitando aquelas pessoas vagamente familiares que também me fitavam assustadas. De repente, uma vozinha infantil arrancou-me do torpor (ou do horror?).

_Você está bem, mamãe?

Olhei para cada um novamente. Olhei em volta de mim. Olhei para todo aquele cenário decadente bairrista classe baixa, e desesperada, procurei por um espelho que encontrei no banheiro próximo à cozinha pequena, com a pia cheia da louça suja do jantar anterior.

Olhei meu rosto e então chorei.

Era eu quem estava ali, refletida naquele espelho trincado no canto, dentro daquele banheiro minúsculo que teimava em dividir espaço com a sala exígua, os dois quartos apertados e entulhados de tralhas, e a cozinha pequena... tão pequena!

Era eu mesma. Ninguém mais. Tentei acalmar-me e o incrível foi que consegui. Voltei ao quarto e tranquilizei meu pai inválido, meu irmão desempregado, meu filhinho assustado e meu tio desocupado e alcoolizado. Deitei-me sobre o meu colchão de molas meio estufado aqui e acolá e senti-me amarga. Irremediavelmente humana, real e localizada. Mansamente, cheguei à conclusão de que, afinal, eu encontrara o que estivera completamente fora de lugar o tempo todo no meu lindo e rico sonho encantado. EU MESMA!

Eu mesma, que pertencia, junto com o meu rosto e tudo o mais que eu não tinha, ao mundo real e concreto, onde chora menos quem pode mais.

E como eu chorava!

Isabel Damasceno
Enviado por Isabel Damasceno em 02/06/2009
Reeditado em 08/06/2011
Código do texto: T1628652
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