O ÚLTIMO FILHO DA DECÊNCIA
O ÚLTIMO FILHO DA DECÊNCIA
Meu nome é João do Amor Divino do Espírito Santo e tenho treze anos de batalhas sem tréguas nessa vida.
Meu pai, se é que algum mortal foi quem me fez, achou por bem sair pra comprar cigarros muito antes de eu nascer e então eu nunca vi sua fuça.
Cresci andando de um lado pro outro de uma viela escura, suja, imbecil, semi-despida e descalça.
A vizinhança era hostil até mesmo com um anjinho negro, catarrento e barrigudo, e esse, era eu.
Minha mãe até que tentou durante algum tempo - não muito tempo e nem com muito empenho, é verdade - sustentar dignamente seus três filhos, dos quais eu era o caçula.
Mas as "donas" não pagavam o suficiente para que ela continuasse levando a vida na vertical.
Foi assim que eu comecei então a conhecer uma mãe diferente, bonita, muito bonita com aquelas cores todas nas roupas, nas unhas e no rosto. O cheiro dela deixou de lembrar torresmo frito e passou a ser forte e adocicado, e ela, eu acho, era feliz, por que as gargalhadas eram constantes.
Constantes também eram as visitas de seus amigos que sempre traziam uma garrafa de cachaça para comemorar e brindar.
De repente, num dia que eu acho que foi o dia em que eu aprendi a contar, descobri que eu não era mais o caçula, já existiam mais quatro caçulas, todos frutos do AMOR DIVINO.
De repente também, acho que foi no dia em que aprendi a apreciar mulher, percebi que a minha mãe não era mais tão bonita e suas cores todas estavam desbotadas e ela agora bebia cachaça sozinha mesmo, sem necessitar de motivo para comemorar e sem brindar. E também não gargalhava mais. Apenas esticava os lábios numa careta desdentada.
Os irmãos mais velhos, eu próprio e os quatro caçulas, ficávamos à mercê da caridade e da curiosidade alheia, e assim, dia sim, dias não, havia algum pão em casa e muita briga também.
Foi por essa época que eu conheci o "Gente Fina" e ele me deu o glamuroso emprego de vendedor, e eu era bom nesse ofício. Vendia de tudo! Maconha, cocaína, craque e até umas mulatinhas que queriam comer sonhos lá na Padaria Bico Doce.
Foi numa terça-feira bem ensolarada, que na viela bem fedida, minha mãe engasgou, não sei se com um gole de cachaça ou se com um soluço.
O fato é que ela começou a dispensar o fígado e eu comecei a me sentir o dono da grana que tinha no bolso. Levei minha mãe para o Pronto Socorro e foi de táxi! Um luxo grande demais para nós dois!
Ela me olhou, me passou a mão no rosto e disse uma coisa esquisita.
Disse que eu era o último filho da sua decência. Não entendi nada.
Depois a gente foi numa farmácia grande, branquinha, limpinha e com um cheiro bom demais de água sanitária, e eu paguei com a grana do "Gente Fina", os remédios da minha mãe, e num impulso, decidi que aquele era um dia de festa.
A cidade era bonita, grande, o asfalto era aconchegante, as pessoas eram vestidas por completo e calçadas.
Peguei a mão magra da minha mãe doente e levei ela pra comer um cachorro quente - é "roti dogui", mãe! - e a gente bebeu Coca-Cola e voltou pra casa de táxi outra vez.
Acho que foi o melhor dia da minha vida. Ainda bem! Por que foi o último também.
Minha mãe desmoronou no colchão estrupiado, olhou em volta a sujeira das paredes nuas, os cacarecos que apelidáramos de móveis, segurou e tentou apertar a minha mão, tornou a esticar os lábios naquilo que ela jurava ser um sorriso e pronto. Ficou ali deitada de olhos abertos sem piscar. Demorei um tempo para perceber que ela tinha morrido.
Com a grana no bolso, eu comprei um caixão e botei ela lá dentro.
Comprei cachaça e chamei os "amigos" para o último brinde.
Não chorei nem sofri. Não deu tempo.
O "Gente Fina" soube que eu estava detonando sua grana, me chamou de moleque ingrato e desgraçado e mandou na minha cabeça a bala 38 que tinha o meu nome.
Foi assim que minha mãe levou com ela o último filho da sua decência.
Foi assim que eu dei pra ela o último dia da minha adolescência.