Os leões de Daniel
Os leões de Daniel
O portão verde-claro se ergue diante da calçada cheia de alunos barulhentos e inquietos. Ele – o portão – está de braços dados com muros de tijolos alaranjados e sujos; logo o portão rompe de sua inércia, depois de soado o sinal das sete horas; um homem de idade abre o portão e se põe de lado da entrada enquanto os alunos, que se empurram e conversam e se espremem, marcham para dentro do pátio da escola – que ocupa boa parte do quarteirão perto de uma importante avenida da cidade.
Daniel: Todos eles entram, se empurrando, conversam alto. São muitos, mais do que na minha escola, a antiga. Hoje tudo é novo para mim. Faz frio hoje. Tive que acordar mais cedo, pois o colégio novo é longe, e o ônibus demora muito. Papai também levanta cedo. Ele tem que trabalhar e não pode se atrasar, senão ele perde o emprego. Papai não pode perder o emprego, pois o emprego é bom – mamãe fala que é bom.
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Os alunos entram como águas represadas de uma grande barreira que, devido à abertura de suas comportas, correm com ímpeto e força o seu curso natural; os alunos logo preenchem os espaços vazios do pátio e se dirigem aos pavilhões distribuídos de ambos os lados. Do lado esquerdo se levanta altas grades metálicas que cercam uma quadra de futebol – aparentemente em bom estado.
Neste primeiro dia de aula, muitos alunos compareceram, ansiosos para dar início ao trabalhoso ano estudantil que se seguirá.
Daniel: Este é maior do que o outro, do que o meu antigo colégio. Precisei mudar de colégio. Mamãe disse que era preciso, pois já havia passado por todas as séries, e, também já havia estudado todas as matérias que eu precisava para mudar de colégio. Tenho notas boas! Mamãe diz que sou inteligente, e foi por isso que ela me matriculou nesta escola. Ela é melhor do que a minha antiga escola, diz mamãe. Mas meus amigos não vieram para cá. Eles não têm condições, diz meu pai.
Meu pai disse uma vez: “Estou dando um duro danado para matricular você nesta escola, Daniel! Estuda! Estamos investindo em você, eu e sua mãe. Estude e seja melhor do que eu. Nunca tive muita chance na vida, e por isso preciso acordar todos os dias de madrugada, e enfrentar ônibus lotado. Veja, meu filho! Nós não temos nem carro! Estude e se forme e compre um carro para você...”
Sempre me preocupo com isso, com nossa situação. Mamãe disse uma vez que estávamos sem as coisas em casa, e não tínhamos dinheiro para comprar nada. Sempre passávamos por isso. Eu entendo disso.Tenho 11 anos, mas eu entendo disso.
Mamãe diz que estão fazendo um sacrifício para pagar o novo colégio, por isso devo estudar muito.
Não conheço ninguém nesta escola. São todos novos para mim. Tenho medo do novo. Tenho que estudar muito para conseguir passar de ano aqui, pois mamãe falou que é difícil estudar aqui, e falou que é caro também.
“Será que terei amigos aqui?”, penso.
Entro lentamente, devagar, pois muitos empurram e entram na frente uns dos outros. Gostava da outra escola. Ando devagar, pois mamãe disse que é feio empurrar as outras pessoas. Mas todos se empurram aqui.
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O sol brilha forte agora, iluminando o pátio e as cabeças de alunos que marcham para dentro. A manhã, antes gelada e o ar frio que se apega ainda ao ambiente, lentamente se aquecem com a luz matinal vinda de um céu sem nuvens. Existem árvores espalhadas pelas laterais do pátio – são pequenas e raquíticas. A manhã avança e a ansiedade aumenta nos pavilhões, onde, agora, alunos tentam achar suas respectivas salas de aula.
Daniel: Tudo é diferente. Aqui os meninos são maiores, mais fortes, talvez assustadores. Como era bom minha antiga escola, perto de casa. Gosto dos meus amigos. Desde que eu me lembro, sempre estudamos juntos. Moramos longe do centro da cidade, da grande concentração de gente. Moramos longe da escola nova...
O ônibus demora muito, meu pai diz, por isso eu tenho que levantar muito cedo. Hoje sinto muito sono, mas a escola é cara e tenho que conseguir estudar nela, pois meu pai disse que nunca teve chance de estudar em um colégio assim, mas eu tenho e devo aproveitar.
O número da minha sala é 12. Mas mamãe disse para eu confirmar meu nome na entrada. Posso entrar em algum lugar errado e levar uma bronca. Não quero que isso aconteça. Os garotos daqui são mais altos do que eu, não enxergo as listas de nomes. Mamãe disse que eu vou crescer muito ainda e ficar grande como o meu irmão mais velho. Ele trabalha na rua, vendendo coisas. Ele é alto, assim como meu pai.
Ele trabalha e ajuda em casa também. Acho que quando eu crescer, vou ter que ajudar em casa também.
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Dentro do colégio, todos se ajuntam em frente às listas impressas com os nomes dos alunos pertencentes às salas indicadas na mesma. O barulho, que antes se levanta em vozes altas, agora vai esmorecendo até se tornar um murmúrio abafado atrás das portas das salas já preenchidas com suas turmas.
Daniel: Daniel sentiu medo, quando estava dentro da cova dos leões. Mamãe disse para mim ontem, antes de dormir, quando disse a ela que estava com medo da nova escola. Ela disse: ”Daniel foi um grande profeta, mas mesmo assim ficou com medo dos leões dentro da cova e só não se desesperou porque o Senhor estava com ele.” Achei minha sala, é esta, uma das últimas. Acho que sentarei na frente, porque é melhor para aprender. Tenho fé em Deus, e sei que Ele me ajudará a estudar e ajudará meu pai e meu irmão, que sempre volta tarde da noite para casa.
Deus é quem protege ele, diz mamãe. E ela sempre fica na porta de casa depois do jantar, parada, olhando para a rua escura e vazia, esperando por ele.
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O frio se desfaz na manhã calorenta que se segue, e, agora, a luz do sol bate nas janelas largas dos prédios plantados paralelamente com a avenida. O portão verde-claro é fechado pelo senhor zelador, funcionário do colégio, às 8 da manhã, voltando à sua inércia fria, para, às 11 e meia, ser aberto novamente pelo mesmo senhor zelador, isto depois que ele varrer todo o pátio sujo do recreio, onde guardanapos, latas de refrigerante e restos de salgados jazem no chão borrados, vazias e mordidos pelos alunos da grande escola, localizada perto de uma grande avenida da cidade.
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