A Minha
Diria que sutil. Foi um movimento sutil. Vi suas mãos levando o copo de leite até a boca. Não era gosto pela bebida, era sede, ela tinha sede. As unha um pouco sujas, as dobras da mão marcadas pelo tempo em que ficou naquela mesma posição. Sabia exatamente como me punir. Os olhos voltados exclusivamente para a mesa. Seu silencio ensurdecedor maltratava aquele tempo em que estava vivendo ao lado dela. Toda vez que pensava ELA, algo material empurrava meu coração contra as paredes que o protege. Não sabia distinguir o que estava sentido. Havia perdido todo o espaço a minha volta, a presença dela inundava todo o meu ser e tudo a minha volta, não havia mais espaço para mim, não havia mais espaço para minhas desculpas, ela preenchia tudo, cada espaço do meu tempo, cada informação que minha retina mandava ao meu cérebro para estabelecer meu lugar naquele espaço e naquele tempo, era ela, ela estava em tudo. Talvez não fosse ela, talvez fosse minha culpa que se ocupava em me amedrontar pelo erro cometido. A mão sensata bateu três vezes no copo e não o derrubou. Ela não podia vomitar uma palavra a mim, caso acontecesse eu me transformaria em algo solúvel e a cena de meu corpo de despedaçando aos poucos como uma pedra exposta ao vento e a chuva, fosse constrangedora a ela.
As pernas suavam, o calor que desejei por meses havia chegado. Ali estava eu, rígida diante dela, um deus, uma erva daninha que crescia pelo meu rosto, que cobria minha razão, que me fazia objeto diante dela, me submetia a um olhar, a um cheiro que eu sabia desde de sempre ser o dela. Aquela pessoa fitando, ainda, a borda da mesa era ela, esta era tudo o que mantinha minha mente trancada ao meu corpo, foi quando, de repente, ela se levantou. Limpou o vestido de farelos inexistentes. Sempre quis vê-la de vestido e justo hoje, sentada nesta mesa sórdida ela o vestiu. Eu paralisada como se cada contração de meu pulmão dependesse da vontade dela. Deu as costas a mim, e olhar suas costas me deixou confusa. Ao mesmo tempo em que me vi livre da visão dos suores daquele rosto, podia ver o vestido grudado nas pernas e nas costas pela maior intensidade com que o suor se mostrou. Ela abriu a janela, senti o vento salvador tomar conta dos meus ombros, pondo para trás deles alguns fios de cabelo, começaram a perder o controle as lágrimas dos meus olhos. Nada mais do que enxergava era o que eu realmente queria, ou estava enxergando. Ela fez com que meus sentidos todos mudassem. Sentia o cheiro dela pelo toque na toalha de mesa, a ouvia respirar quanto mais vezes eu inalasse aquele ar, podia vê-la quando salivava e engolia o líquido. A imagem dela molhada dentro da minha boca, o cheiro macio nas palmas das minhas mãos, o som doce da sua respiração, dos seus pensamentos. Ela era tudo o que confundia o meu ser naqueles segundos. Ela era tudo o que era capaz de me fazer duvidar sobre a aparência do meu ser. Quando ela me olhava não conseguia me distinguir. Se era uma formiga ou uma abelha passeando por aquele espaço, eu não sabia. Tão forte que ela era, me tirava do meu estado racional de ser pensante. Tudo o que eu queria era que depois que ela se virasse olhasse nos meus olhos e me permitisse descobrir o que eu realmente era. Um ser ou uma quimera dela?
Pude ver sua silhueta contornada pela luz de uma lua inconfundível. Era lua cheia, e ela estava lá, dentro de um material sendo capaz ainda, de ser belamente e merecidamente iluminada pela luz divina. Aquele foi um momento indecifrável, de informações impassaveis, o que recebi naquele momento, literatura nenhuma, tecnologia nenhuma é capaz de explicar. Enquanto esperava respirando algumas palavras que ela delicadamente suspirava, senti uma dádiva; estou viva, posso ouvi-la, posso senti-la, posso vê-la, posso tateá-la, e nada mais me importou. Aquela dádiva estava a minha frente, calma, compreensiva, e dona de mim. Não podia haver outra situação para que eu percebesse a beleza inexplicável daquele ser tão forte que de tão frágil me destruiu, me pôs a prova. Era ela a minha frente, não só ali, mas desde sempre. Nunca havia existido um minuto sem ela a minha frente, sem aquele cheiro tomando conta de tudo o que considero mais belo; ELA. Pura e simplesmente ela estava lá a minha frente me mantendo estática, protegida, ferida mas completamente curada. A lua gritava a suas costas. Eu olhando no fundo confiei, estava viva, eu tinha a ela e ninguém mais como eu podia receber aqueles sentimentos todos que ela era capaz de ter apenas e exclusivamente para com uma pessoa, que de tão distinta, não difere em nada. Fruto maduro, que caiu na hora certa. Tão feliz quanto eu ela não estava, nem podia. Eu podia tê-la quando quisesse, ela não. Um belo tão belo que fazia a lua continuar gritando, invejosa, pois era por mim que ela orava, era comigo que ela gritava, era por mim que ela sentia, era por mim que ela doía.
Um grito de desespero, um por quê solto no espaço, escondendo-se no tempo como a lua que naquele momento se apagou. Vi os cabelos claros dela se espalharem pelo ambiente e esqueci de tudo. Passado, futuro, erros, desculpas, presente. Ela era minha, eu podia senti-la mas antes de tudo ela me fazia sentir. Ela, tão forte em mim, tão forte em tudo em mim, tão forte a minha lua. Ela, só ela. Eu, tudo ela. O impulso forte e solitário, infantil, desprotegido, ingênuo, amor cheio de dádiva, longe e eternamente presente. Um encontro já atrasado de troncos, de braços, de suores e mais ainda de ritmos cardíacos que já se encontram na mesma altura. Um abraço inesperado por nós duas e por ela há tempos desejado. Não pude soltá-la antes que tudo voltasse ao normal, antes que todos os meus enganos fossem reconhecidos, todos os desejos perdoados e todo o tempo redescoberto. Aquele espaço era agora nosso. Aquele tempo havia parado junto a nós. O tempo nos observava e esqueceu de passar. Ali estava ela e eu também, mas dela era só um pedaço.
Ali havia um Ela tão profundo, formado unicamente de amor. Forte. Eterno. Ali, agora fazendo parte física e sensivelmente de mim, havia uma árvore. Ali estava a Mãe. A minha.