O poliglota
O fazendeiro espalhava que o filho seria doutor e falaria inglês. Quem falava inglês falava no mundo inteiro, pronunciava em bom tom.
A idéia de aprender o idioma surgiu num fim de semana. Louco por boates, mulheres, uísque, sinuca, cartas e o que se relacionasse à boemia, escreveu ao pai pedindo acréscimo de duzentos reais ao orçamento mensal. Para estudar inglês, destacava com caneta vermelha.
O pai desconfiou. Achava um absurdo o filho abandonar a terra. Além de doutor, queria falar inglês. Ele enriquecera sem nem assinar o nome. Por que o filho precisava aprender inglês?
Chamou o empregado da venda que mantinha na beira da estrada, deu-lhe caneta e papel e iniciou o ditado da recusa. Humilde, o empregado enumerou os possíveis benefícios que o garoto, sabendo falar inglês perfeitamente, traria aos negócios da fazenda.
- Lembra do Jovino? Ele começou a vender pros estrangeiros e enriqueceu. A filha dele que falava inglês fechava os negócios. Até casou com um brancão do outro lado do mar.
Por um minuto os olhos do fazendeiro perderam-se em terras oniricamente povoadas de bois de todos os tamanhos, de todas as raças, de todas as cores. Os bois falavam inglês e enchiam o bolso do fazendeiro de dólares.
Em três tempos a carta gritava na caixinha de correio improvisada no portão: o consentimento e o envio mensal não de duzentos, mas de trezentos e cinqüenta reais. Talvez precisasse comprar uns livros, discos para aperfeiçoar a audição, cadernos importados. Quem sabe se não precisaria comprar uns dólares?
O pai pagou o curso de inglês durante quatro anos. Todo quinto dia útil o dinheiro depositado de manhã batia asas no fim da tarde. À noite, o filho:
- Pode fechar! Tudo por minha conta.
Quando entrou no último ano de faculdade, o pai o chamou à fazenda para tratar de alguns negócios. Passava das dez quando ouviu a voz da mãe na cozinha.
- Tens certeza do que vais fazer? Nem falaste ao menino que esse povo de língua enrolada vem aqui para tratar de boi. E se ele ficar nervoso?
- Que nervoso que nada! Sorria o pai. Filho meu tem que ser macho. Faz três anos que todo mês eu mando dinheiro para aprender inglês. Então, tem que falar inglês. De trás para frente e de frente para trás. Não engulo desaforo de ninguém. Nem do meu filho.
Encolheu-se na cama, revirou-se, pensou na enrascada em que se metera. Quatro anos jogados fora e nem palavra de inglês.
- Acorda! Acorda! O pai entrou gritando e batendo forte na porta. – Quero te ver de pé em dez minutos.
Enquanto fazia a barba, um violento desconforto estomacal o atacou. Suava frio, respirava com dificuldades, sentia vertigens. Quatro anos e nem palavra de inglês? Pior seria a mãe. Decepcionada, choraria ao descobrir a mentira.
Dois homens de paletós pretos, gravatas impecáveis e lenços nos bolsos sorviam o resto da terceira xícara de café e partiriam para a quarta caso o filho não aparecesse e o pai não se levantasse, apontando-o e abrindo um sorriso orgulhoso.
- Good morning, Mr. Silva. We are here today for buying some cows. Good cows.
O filho estendeu a mão, olhou para o quadro de São Francisco de Assis pendurado na estante, pediu arrependidamente sua intervenção, porém previa o desastre ao apertar a mão do inglês e retrucar amistosamente:
- Good Morning. How are you?
Os compradores iniciaram as propostas por vacas leiteiras que produzissem dezessete litros diários. A quantidade seria impossível na Inglaterra, mas tinham notícias consistentes de que as vacas daquela fazenda alcançavam a meta sem grandes dificuldades.
Da maleta retiravam planilhas da área agrícola da empresa assim como da industrial que transformava o leite em produtos de consumo exportados inclusive para o Brasil. O filho ouvia como se entendesse, alternando feições de sorriso e de seriedade, de aprovação e de restrições.
O pai olhava ora os ingleses, ora o filho, as planilhas repletas de desenhos incompreensíveis, novamente o filho. Este nada entendia. A angústia aumentava. Vez por outra fitava a imagem de São Francisco de Assis, rodeado de coelhos, gatos, cachorros, passarinhos, tartarugas. Provavelmente precisaria recorrer a Santo Expedito ou Santa Rita de Cássia, mas lembrava o tempo de fazenda, o trato com os animais. Quantos galos, galinhas, leitões e bezerros não livrara do forno? As vistas forçadas e a testa enrugada desviaram a atenção dos compradores que elogiaram o quadro singelo, mas de profunda manifestação da arte, exclamava o mais gordo.
Explanação finalizada, perguntavam sobre a qualidade do leite, a imunização das vacas, a expectativa de vida do bicho. Sem entender nada, o filho inicialmente limitou-se a repetir good morning. Depois, inventou palavras sem nexo. Os ingleses se entreolhavam espantados.
O pai quis saber o que falavam. Sem escapatórias. Via-se expulso, escorraçado, amaldiçoado. Deu-lhe um frio na barriga, uma moleza nas pernas, um suor frio escorrendo imaginariamente pela testa. Acabaria com o teatro, mas um fio de sol quente espumou sobre o retrato de São Francisco de Assis que pareceu piscar o olho esquerdo.
De repente, o filho começou a revidar bruscamente, a gesticular estupidamente, a sentar-se e a levantar-se insistentemente.
- O que está acontecendo? Perguntava o pai, aflito.
- Acho melhor o senhor não saber.
- Tenho que saber. Sou o dono da casa, da fazenda. Eles vieram aqui para comprar minhas vacas.
- Eles estão falando desaforos.
- Como assim? Desaforos?
- Desaforos contra o senhor e contra a mãe. Que o senhor é um matuto, que a mãe é uma caipira e que as casas dos porcos da Inglaterra são mais limpas do que a nossa.
- Mande eles saírem daqui agora.
- Já mandei. Eles não saem.
O fazendeiro entrou no quarto, saiu carregando uma espingarda de cano duplo à vista da qual os visitantes puxaram as maletas, puseram os chapéus e saíram ligeiros para o carro, atingido na lataria por dois tiros.
- Aqui eu não engulo desaforo. Nem na minha língua, nem em nenhuma outra.
*Publicado originalmente em “Contos selecionados de novos autores brasileiros” (CBJE, 2009).