A quase infância
O Carteiro é um quarentão, homem gordo de baixa estatura sem compaixão por si próprio, utiliza a profissão para alimentar seu maior prazer: entrar na intimidade das pessoas. Abre sim todas as correspondências que lhe causam comichão de curiosidade. Ninguém sabe o que traz tanto conforto para ele saber sobre o que acontece na vida das pessoas cujas cartas ele entrega. O Carteiro não é tão diferente assim das demais pessoas que o cercam, ele apenas tem a vantagem de ter o destino de alguém nas mãos, ali em alguma daquelas cartas.
Criança ainda foi criado por Dona Marluci, empregada da casa já há muitos anos. O pai não suportava o fato de a esposa ter falecido no parto e passou a culpar o filho de ser o assassino da mãe. A empregada foi a responsável pela educação do menino. Batizou-o de Sebastião. O tabelião, como conhecia o pai do bebê, aconselhou Dona Marluci a acrescentar José e assim permaneceu: José Sebastião Cavalcante Filho, o Tião, como chamava a empregada.
A primeira carta que o Carteiro violou foi por acaso, quando este tinha nove anos de idade. Dona Marluci que já contava com idade avançada pediu para Tião entregar um envelope na casa de Seu Assis, um velho que vez por outra visitava a empregada. O menino respeitava muito sua mãe de criação, por isso nunca deixou de fazer por ela alguns favores. Chegando a casa tocou a campainha e ninguém apareceu. Decidiu ir ao centro da cidade onde Seu Assis era dono de uma venda. Quando passou em frente à sorveteria encontrou Maurinho, seu melhor amigo. Tião era quase um ano mais novo que o amigo, por isso teve que aceitar quando Maurinho puxou a carta e correu. O Carteiro estava acostumado com essas brincadeiras.
- Devolve Maurinho, por favor – pediu Sebastião.
- O que é isso, cartinha de amor? – perguntou o amigo enquanto abria o envelope.
- Carta de quê? Devolve, devolve. Tia Marluci pediu pra eu entregar, é pro Seu Assis.
Maurinho pôs-se a ler: “Meu amor, adorei o nosso primeiro...”.
Tião arrancou a carta das mãos do amigo e enfiou-a no bolso da calça. Os dois permaneceram em silêncio por um tempo. Sebastião não entendeu o que significava aquela carta, a própria Dona Marluci havia escrito, ele se viu no direito de ler o que nela continha.
“Meu amor, adorei o nosso primeiro encontro, em todas as visitas que me fez eu aguardei ansiosa o seu convite para sairmos. Agora sei que meu sentimento por você não vem apenas de minha parte. Adorei nosso passeio no parque, senti-me quarenta anos mais jovem. O desejo de viver mais cem anos floresceu graças a você, meu amor. É preciso que sejamos cautelosos discretos, não quero me precipitar com você. Não temos mais idade para aventuras, não posso simplesmente abandonar meu patrão e Tião, o menino que criei como o filho que nunca tive. Peço a você que tenha paciência e seja compreensivo, vamos nos encontrar quantas vezes mais você quiser. E se o amor exigir que eu largue tudo e vá viver ao seu lado, eu sou capaz e audaz de fazer. Um beijo da sua amada Marluci”.
Era a primeira vez que Sebastião desobedeceria a sua mãe de criação. Maurinho o acompanhou à venda de Seu Assis. Os dois passaram lentamente em frente à porta do estabelecimento. Podia-se ver o ódio nos olhos do Carteiro quando este viu o velho que seduzira a mulher que lhe criou, que lhe ensinou a andar de bicicleta, que lhe contou as histórias da Mula-sem-cabeça, do Saci Pererê, da Caipora e que lhe mostrou como fazer para a bola de meia não rasgar tão facilmente.
Chegou a casa e o pai não estava como sempre. Deu um beijo em Marluci e foi brincar com Maurinho no quintal.
- Entregou o envelope, Tião? – gritou a empregada de dentro da cozinha.
- Entreguei.
À noite o Carteiro leu mais uma vez a carta deitado em sua cama. Rasgou-a em muitos pedaços, jogou-a em uma lata de leite em pó vazia e ateou fogo nos papeizinhos.