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joão é o seu nome. não vive em lugar algum. passeia durante o dia pelas ruas apinhadas de gente mas não vê ninguém. não sendo cego, prefere não ver. para ele, o mundo é obsceno. as pessoas que nele vivem também. as mesmas que o chamam de louco, apenas porque ele não obedece aos seus parâmetros.

a fisionomia de joão é semelhante à de jesus cristo. barba e cabelo comprido, rosto magro, corpo franzino, olhos escuros e dóceis, contudo incompreendidos, magoados e algo revoltados. um olhar que divaga pelas ruas por onde anda, a passos indecisos, umas vezes encolhidos outras ansiosos, como se se sentisse ameaçado. num bolso de um casaco desbotado vai mantendo o que resta de um pão ressequido que encontrou na praça e que escapou à atenção das centenas de pombos que ali vão matando mais um dia a observar os transeuntes do cimo de edifícios e monumentos ou confundindo-se por entre uma multidão de pés.

joão (re)nasceu. para aquela personagem que desperta olhares alheios, uns de pena, outros de julgamento e outros ainda de mera curiosidade, sabe-se lá porquê. mas ele parece que nem os sente. caminha sem objectivos comuns apenas divagando, arrastando o seu corpo magro, de mãos nos bolsos sem forro, ouvidos abafados por um capuz de lã e olhos fixos no chão. nem uma palavra. nada de emoções. um corpo apenas que só parece viver porque caminha.

mas joão não é nenhum iceberg. os seus cérebro está sempre em actividade. a filosofia toma conta dele, está-lhe empregnada. os porquês disto e daquilo. não a mera filosofia mas a busca de respostas das quais pensa estar cada dia mais próximo. subtilmente, vai observando as pessoas. sim, mas ninguém o sabe. estuda-as tendo como instrumento os primeiros sentimentos, crus, cruéis até. apercebesse dos olhares demorados, escuta as conversas quase silenciosas mantidas num tom de voz absurdamente baixo. ele sabe que não passa despercebido e sabe também que muitos dos que o olham adorariam ter a mais pequena hipótese de o despertarem da inércia, daquele sono do qual não quer acordar. porque no dia em que dele acordar voltará a carregar o fardo das exigências e terá que medir palavras e atitudes e que renegar ao seu mundo de crenças. não, não o faria nunca mais. como lhe sabe bem percorrer as calçadas sem rumo, sem agenda, sem ninguém que o espere numa casinha de matérias confortáveis mas impessoais. quem o compreenderia ao ponto de olhar nos seus olhos e sentir os seus medos, a sua energia, as suas verdadeiras necessidades. quem se prestaria a não negar-lhe o espaço que o alimenta?

maria não se prestou a isso. casou-se cedo com ela. era um rapaz ainda, com toda a sua imaturidade e vontade de viver. já tinha as suas manias, como ela própria o dizia quando não suportava vê-lo a viajar em pensamentos, alheando-se dela e da criança que não foi planeada.

joão juntou-se a maria logo após a notícia que ela lhe deu à porta da farmácia. primeiro olharam-se, os olhos reservados de joão questionavam os de maria, estes assustados, descontrolados, abismados. a resposta estava dada, com a cumplicidade do silêncio e a enorme capacidade dele em ler pensamentos.

gabriela nasceu nove meses depois. linda, delicada, sem pecados. o jovem pai olhou-a demoradamente, gravou na memória o seu rosto despreocupado, a sua serenidade. depois, pegou-a ao colo, respirou o seu cheiro suave e reteve-o nos pulmões. aconchegou-a e sentiu o seu calor. Gabriela – disse por fim, completamente rendido.

maria observou o ritual. escorreram-lhe lágrimas pelo rosto. joão não tinha olhado para ela. no seu egoísmo involuntário, chamou-o privando-o daquele momento que para ele era divino. joão não se apercebeu das lamentações dela. mesmo assim, aproximou-se e beijou-a nos lábios, olhando-a de seguida com ternura.

os meses, os anos que se seguiram foram um inferno. dizia joão que o inferno existia na vida e não na morte. maria suportava cada vez menos as viagens não planeadas. retorcia-se por dentro quando a meio de uma conversa joão deixava de ouvir. olhava em direcção a ela, mas na realidade estava longe. não noutra região, país, continente, planeta, mas no seu mundo, que não estava localizado geograficamente. ela acabava por ir para a cama. envolvia-se nos lençóis floridos oferecidos pela mãe, fechava os olhos e chorava. ele deitava-se horas depois, com o sol quase a nascer na pequena cama da pequena gabriela, que o fazia sentir-se protegido na sua inocência.

gabriela herdou o cabelo da mãe, o nariz, os olhos, os lábios. mas a expressão do rosto, os movimentos do corpo, a doçura dos olhos era definitivamente do pai. apenas com três anos, ela já viajava até ao seu mundo. E contava histórias inventadas onde distinguia sabiamente o bem do mal. joão escutava-as com todo o seu amor, revendo-se em cada palavra. esta era a sua gabriela, o mais lindo malmequer que ele alguma vez houvera colhido. a menina via o pai como uma criança grande, inocente nos seus actos, que ria, gatinhava, pulava com ela. já maria ficava a um canto a vê-los rebolar, trocar histórias, rir como dois doidinhos. e volta e meia vestia um ar indignado e abanava a cabeça em sinal de reprovação.

-és pior que ela. não tens respeito por mim. vestiste umas calças lavadas e passadas a ferro e olha como elas estão?! – argumentava, deixando-o indeciso entre sorrir ou ir dar uma volta para fugir a mais uma longa noite de discussão.

maria estava casa dia mais fria, mais revoltada. não deixava escapar um sorriso. maria perdeu a memória. fechou-se na sua conchinha de egoísmo, de pura ciumeira. ela queria ser o céu, as estrelas e a lua de joão. sabia que era bonita, com os seus olhos azuis que sobressaiam de uma tez morena. mas joão não se deixava envolver por essa beleza. inicialmente, quando se conheceram, dava-lhe gozo a fragilidade daquela menina-mulher. e ela recorria a todos os encantos para o fascinar, mal imaginando que os encantos não duram para sempre quando são tão artificiais.

um dia joão, envolvido pelos pensamentos, foi agitado por uma berraria que não era mais que a urgência de maria em traze-lo para perto de si. ela surgiu frente a ele com aqueles olhos indignadíssimos, inconformados. as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. dizia que não aguentava mais. que ele vivia no mundo da lua. que ela corria lugares públicos à espera que os homens olhassem para ela. porque ela era bonita e não compreendia. em momento algum compreendia por que é que joão passava tanto tempo a divagar e a deixava sozinha. nesses momentos ela esquecia a cumplicidade, a transpiração nos lençóis floridos depois da entrega.

possuída de raiva, ela não parava de berrar. joão olhava-a, ainda estremunhado pela brusquidão que o tirara do seu mundo. escutava-a, sem pronunciar uma palavra que fosse. os olhos nos dela. e então compreendeu que o seu lugar não era ali. que a sua solidão voluntária trazia tristeza àquela casa.

lunapensativa
Enviado por lunapensativa em 10/05/2005
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