DEFICIÊNCIA PECUNIÁRIA
Sete horas da manhã, de uma segunda-feira como outra qualquer, em que o burburinho da cidade já se faz presente.
Em casa, Rita está em seus últimos preparativos, na luta diária da sobrevivência.
Apressada, sai de casa, vestida de modo simples, sem nem ao menos um cafezinho bebido e trás em seus braços uma pequena e surrada pasta de cartolina azul. Dirige-se a um ponto de ônibus, que dista alguns quarteirões de sua casa.
No ponto apinhado de pessoas na longa espera, todos têm em comum o olhar ausente, como se fossem zumbis perambulando pela cidade.
Olhar vazio, sem perspectivas, num vácuo de esperanças que movimentam o imaginário de quem quer que analise a cena. Ninguém se olha. Ninguém se nota. Ninguém se sabe. Mas todos têm o mesmo olhar comum. Todos carregam o pesado fardo da vida.
O ônibus atulhado, atendendo ao sinal feito pela maioria das pessoas faz sua parada. E numa luta frenética, onde vence o mais forte, um amontoado de pessoas entra num espaço que parecia não mais caber ninguém. Rita está entre eles.
Já dentro do ônibus, ambiente carregado, quase não se consegue espaço para que o pulmão realize a tarefa de respirar. O ambiente parece mais pesado. Um forte cheiro de boca mau higienizada, de roupa secada no sereno sem terem sido lavadas, de suor, perfumes baratos agressivamente entrando pelas narinas, se misturam naquele ambiente, onde o barulho que se ouve é um ou outro bocejo, misturado aos motores e buzinas dos veículos no transito.
Vez ou outra, um aroma de comida escapa de alguma marmita, chegando por vezes como que aliviando aquela mistura de odores, por vezes fazendo com que o cheiro se torne mais um inimigo das narinas.
O estômago de Rita está embrulhado. Aqueles cheiros, misturados ao seu estômago vazio chegam como uma faca a descer por seu corpo, cortando o caminho por onde passa e alojando-se nele, causando náuseas e um estranho ronco.
Parece ser uma linguagem comum este som, pois neste momento todos que estão mais próximos olham para a direção do estomago de Rita, saindo da ausência em que estavam, mas em seguida voltam a ela.
O tempo parece ser medido pela dificuldade que se tem de respirar, pois cada inflar de pulmão é uma vitória obtida. E a cada parada o processo se repete, num entrar constante de pessoas, vencendo-se a lei da física, onde dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço.
Naquele aglomerado de massa humana, sim porque não mais se consegue ver onde começa ou termina uma pessoa, parece que foi feito um bloco orgânico, numa só vida tentando sobreviver.
Para alívio daqueles que já estão perdendo a cor, daqueles que estão com a cor mais exaltada, o destino deles se aproxima. É somente uma pausa para que o pulmão recobre seus movimentos e se prepare para agora enfrentar um trem, que talvez leve a maioria a seu destino. Outros, não com tanta sorte, dependerão de mais uma condução.
E lá vai Rita, levada por essa multidão que num bloco corre em direção à estação ferroviária, agarrada àquela sua pasta de cartolina, que ela tanto protege.
Na plataforma a algazarra é geral. Gente do mais diverso tipo físico, idade, características estão já amontoados uns aos outros, aos trancos, numa disputa por um pedaço de chão que os equilibre. Nem mesmo a famosa faixa amarela de proteção é respeitada, mas ninguém se importa, nem mesmo a segurança do local que, se existir, não se faz presente.
E na parada do trem nota-se meia dúzia de gato pingado descendo pela porta de uns dos lados do vagão, enquanto o povo do outro lado luta para ficar em frente à porta que logo irá se abrir para que entrem. A luta agora é mais ferrenha. Parece uma praça de guerra, onde um batalhão de fuzilamento está pronto a atirar. As pessoas gritam, empurram, gesticulam... Não há respeito nem entre os iguais, o que dirá com os idosos ou mulheres!
Mais uma vez, Rita se vê levada pela multidão, entrando no vagão, se espremendo entre as pessoas, mas protegendo a sua pastinha.
E o longo caminho de quarenta minutos de seu destino, se arrasta num século de luta pelo direito de respirar e manter-se viva.
Ao chegar à estação central, onde é feita a transferência para outros destinos, toda a composição se esvazia, num despejar de pessoas, com se estivessem sendo vomitadas de um grande estomago mecânico.
Rita está com a fisionomia já cansada, abatida, mas tem pela frente um longo caminho até seu destino, agora talvez um pouco mais tênue, já que caminhará por dois longos quilômetros.
Uma parada de alguns segundos para tomar fôlego e enfrentar a nova, porém mais leve tarefa, o caminhar.
Um vai e vem de pessoas, com o mesmo olhar ausente e passos apertados, numa urgência do chegar. Mas já se ouvem entre buzinas e ronco de motores um outro canto de pássaro. Já se sente, entre um ou outro cheiro desagradável, o perfume das poucas plantas que permeiam o ambiente. Já se pode respirar, mesmo esse ar poluído, dando ao pulmão a plenitude de ser inflado com vontade. A esperança parece que faz brilhar nesse momento os olhos de Rita. Não é mais o olhar ausente da maioria. Traz dentro dele, se espelhando ao mundo, a esperança de chegar ao seu destino e encontrar o “seu destino”.
Ela começa a olhar os números da rua, onde tem seu compromisso. Faltam poucos metros para a sua chegada. Uma parada para que pegue na bolsa um espelho, retoque o seu batom, discreto, em tom da pele, para que ajeite o cabelo desalinhado pelos empurrões recebidos no ônibus e no trem. Ela está dando o seu melhor.
Coração disparado ao encontrar o número de seu destino, que pode ser identificado de longe, dado ao número de pessoas que estão na porta a espera de serem atendidas. Rita solta um longo suspiro, ergue sua cabeça e aproxima-se do local.
Na entrada, uma fila de pessoas a espera de um crachá de visitante. É necessário fazer uma triagem. Ela se posiciona à espera, pés latejando, coração disparado, pensamentos torturantes de mais uma entrevista de emprego. Será que desta vez irá conseguir?
Sua mente viaja no espaço e ela se vê em casa. A mesa lotada de contas atrasadas, a dispensa vazia, a energia elétrica prestes a ser cortada. Seus olhos marejam diante da situação e mais um longo suspiro brota de seu peito.
Ela é filha única de pais já com idade avançada, tendo só como sustento da casa a parca aposentadoria do pai, que, assim como a mãe por motivos de saúde, encontra-se incapacitado para trabalhar.
Vindos de família pobre, poucos podem ajudá-los, pois todos têm a mesma luta comum. Contam com a bondade de alguns vizinhos que vez ou outra dão uma cesta básica, mas que não garantem a sobrevivência, apenas aliviam um pouco o fardo pesado da pobreza.
Já passa das dez horas, e o sol já está fazendo arder os corpos expostos naquela longa fila. O suor se fazendo presente, resultado de vários fatores... O sol, o cansaço, o nervoso...
Chega a vez de Rita ser entrevistada. Sala ampla, em variados tons de cinza, os funcionários da empresa usam uniforme azul marinho, com camisa azul claro, dando um ar maior ainda de ausência de sentimentos a todo o ambiente.
Ela discretamente senta-se à frente de uma selecionadora de pessoal, coloca sua pasta no colo e aguarda a moça atendê-la.
O telefone toca. Numa breve conversa a moça diz já estar indo e desliga o telefone. Pede a Rita que aguarde um instante. Instante esse que fará com que o psicológico de Rita fique um pouco mais vulnerável, um pouco mais frágil.
Rita já não sabe como sentar, como se portar, a vontade é de largar o choro que está represado em sua garganta. Mas o descontrole nesse momento só faria com que perdesse a chance de uma colocação. Jamais seria visto como o desabafo de uma guerreira que enfrentou uma luta bravia para chegar até esse local.
A sede seca sua garganta, mas ela não sabe onde encontrar o bebedouro e todos estão ocupados demais para poder lhe dar atenção.
Quando a selecionadora volta, formalmente pede desculpas pela demora e começa a entrevista, pedindo seu “curriculum vitae”.
Rita abre discretamente a sua pastinha de cartolina, já um tanto gasta e amassada pelos trancos sofridos e retira de lá uma simples folha de papel sulfite com seus dados impressos.
Apesar dela não possuir computador, seu histórico trabalhista está bem feito, devido à bondade de uma vizinha que pediu ao seu filho que o redigisse e o imprimisse, dando a ela algumas poucas cópias que ela sempre que precisa tira xerox, pois sabe que se este acabar, não poderá pedir mais, pois lhe faltaria coragem para tanto.
Seu rosto parece pegar fogo. Todas suas esperanças estão direcionadas a essa simples folha contendo um amontoado de letras. Não só as suas esperanças, mas todo o futuro de sua família e o suprimento de necessidades básicas.
Naquele breve instante em que estende o papel em direção às mãos da selecionadora, um filme passa por sua memória.
E Rita se vê criança, alegre brincando suja pelas ruas de seu bairro pobre, sem asfalto, onde as crianças ficavam livres do trânsito dos bairros mais desenvolvidos, onde não se tinha tanta violência e a inocência banhava nossas vidas. Em que casas, mesmo pobres, tinham um amplo quintal onde sempre se plantava uma ou outra verdura, alguns legumes e sempre se tinha uma árvore frutífera.
Vê-se em seu primeiro dia de aula, com a mesma sensação de coração apertando no peito, mas a alegria recompensadora das novas amizades, das brincadeiras no pátio na hora do recreio. Da descoberta das letras, da magia dos desenhos colorindo o papel, formando jardins, lugares sonhados que jamais foram visitados!
É quando a voz da moça interrompe sua viagem no tempo chamando-a para que falasse um pouco de sua experiência profissional.
Rita começa o seu discurso um tanto quanto ensaiado, falando sobre seus conhecimentos, sobre as empresas onde trabalhou, sendo interrompida de tempos em tempos por perguntas que devem ser respondidas nessa espécie de conversa informal.
Enquanto Rita discorre sobre o assunto, a selecionadora faz umas anotações, raramente olhando nos olhos de Rita, que faz com que seu entusiasmo inicial comece a cair numa espécie de depressão, de constrangimento. É muito difícil falar sem olhar nos olhos da pessoa. Sem poder ler em seu olhar a reação que suas palavras estão tendo. Sem ter a interpretação de sua performance.
Rita começa a ficar também um tanto dispersa na conversa, falando como se estivesse num grande palco de teatro, apresentando sua fala mecanicamente olhando ao seu redor, analisando as pessoas que estão passando pela mesma situação e nota que isso se repetia em todas as mesas que estavam selecionando pessoas que provavelmente seriam seus colegas de trabalho, pessoas que poderiam fazer parte de suas vidas, talvez serem confidentes, e estariam tão presentes no seu dia-a-dia.
Uma estranha sensação se apoderou de seu coração. Um misto de pena e raiva por essas pessoas que hoje estão empregadas, mas que tratam com tanto desdém aqueles que vêm em busca de um emprego, como se tivessem todos esmolando uma oportunidade.
Tinha vontade de gritar aos quatro cantos que ela era uma pessoa. Com sentimentos e necessidade tanto quanto todos aqueles já funcionários da empresa. E que ela não estava ali mendigando e sim vendendo o seu trabalho e que, mesmo sabendo que nunca teria um preço justo por ele, se sujeitaria sim a um mísero punhado de dinheiro, porque o mercado de trabalho assim o exigia, porque os seus pais precisavam ter uma vida mais digna, assim como eles lhe proporcionaram até o momento que a vida lhes permitiu.
A selecionadora pede a ela que aguarde um momento, pois iria encaminhá-la para uma sala de testes, que seriam feitos em conjunto com aqueles outros que pleiteavam a vaga.
Uma sala onde se encontravam várias cadeiras de estudante, onde todos os presentes estavam com um semblante pesado, carregando no peso do corpo, o peso do desemprego.
Aos poucos, a sala vai se entulhando de pessoas de todas as cores, raças, mas que tinham em comum o aspecto cansado da uma longa busca no mercado de trabalho.
Ninguém se falava. Parecia que vinham todos de lugares diferentes, com línguas diferentes, pela difícil comunicação existente. Ao mínimo barulho feito, eram olhados com ar de reprovação, como se o primeiro teste fosse o do silêncio absoluto.
A hora do almoço se aproximava o que fazia com que o estômago de Rita parecesse sair pela boca. De tempos em tempos ele mostrava a sua insatisfação, fazendo ruídos que chamavam a atenção dos que estavam mais próximos, porém, ao contrário dos outros ruídos que causavam olhares fulminantes, estes pareciam que faziam as pessoas se encolher mais ainda ao seu interior. Talvez fosse por, nesse momento, verem o quanto a situação de todos era parecida.
Após longa espera e uma agitada sinfonia dos estômagos presentes naquela sala, entra um rapaz, que parecia ser um Office-boy, novo, de comportamento alegre, falando gíria, que trazia com ele um bloco de papeis que começou a distribuir.
Uma das selecionadoras que o acompanhava, começou a explicar o que todos deveriam fazer, mostrando o formulário entregue numa grande planilha e explicando campo por campo a ser preenchido. Até os campos mais simples, como o preenchimento do próprio nome e endereço foi explicado, numa total perda de tempo e falta de respeito ao conhecimento dos que ali estavam.
Tratavam todos, nivelando-os por baixo, com se fossem animais sendo identificados por números em currais.
Mas ninguém ousava reclamar ou esboçar qualquer reação. O medo de perder a chance de concorrer à vaga, aliado à necessidade de uma remuneração, por pior que fosse, fazia com que todos os presentes se sujeitassem a todo tipo de constrangimento e maus tratos.
Rita continuava com sede, cansada, faminta, revoltada... E começa a preencher aquela ficha de “Solicitação de Emprego”, completamente desnecessária, já que no “curriculum” entregue constam todos os dados pedidos nessa ficha.
Pega em seguida o próximo formulário que é um teste de matemática, onde se solicita serem feitas contas um tanto quanto primárias. A revolta em seu peito aumenta. Será que o diploma que ela possui não deixa intrínseco esse conhecimento? Será que a empresa não possuía máquinas que fariam contas bem mais complexas que estas? Qual a necessidade do teste? Porque se perder tempo em situações tão primárias, em avaliações tão supérfluas?
Pedem tantas coisas aos candidatos, mas e o departamento de seleção não vê o ridículo dessa situação? Porque o nivelamento por baixo de todo tipo de candidato? Não deveria ser feito um plano melhor de capacitação para as diversas vagas da empresa? Não seria uma forma de se ganhar tempo, economizar papel, e em contra partida aumentar o lucro da empresa?
Mas Rita seguiu adiante. Precisava desesperadamente dessa vaga, assim como todos os ali presentes.
Seguiu-se um teste de português, este sim de um nível um pouco melhor, já que analisava a forma com que a pessoa se expressava na escrita, se tinha um raciocínio lógico e conseguia formular uma idéia de modo que todos entendessem.
Havia também uma interpretação de texto, tão temida por todos, mas que Rita sempre se saia bem.
Deu-se um tempo para que os candidatos preenchessem os testes. Quanto tocou uma campainha, a selecionadora pediu a todos que entregassem os testes e que aguardassem o horário de almoço, para que selecionassem os aprovados para a próxima fase de testes.
Um ar de reprovação geral invadiu a sala e algumas reclamações baixas explodiram das bocas dos candidatos, mas que foi imediatamente respondida pela selecionadora, com a frase:
- Obviamente, aqueles que estiverem interessados na vaga!
Silêncio geral. Saíram todos cabisbaixos, perambulando pelas ruas à espera do tempo solicitado, para que os empregados almoçassem.
Pouco importava se os candidatos passavam fome! Afinal são mesmo desempregados...
Rita anda de um lado para o outro, dá voltas no quarteirão e libera as lágrimas que correm quentes por seu rosto. Quem sabe essas lágrimas possam acalmar seu coração e até matar a sede de sua garganta seca.
Seus pés ardem, suas pernas doem. O sol castiga mais ainda seu corpo cansado e faminto. A fome é tanta que às vezes chega a ter tontura. O estômago agora num cantar sem fim a faz se sentir mais desconfortável com a situação, porém mais tolerante, já que fica imaginando seus pais na mesma situação.
O peso da falta daquele que move o mundo, a falta do dinheiro, que no caso dela, não será o alcance da boa vida, mais sim da própria sobrevivência, faz com que ela se submeta as mais torpes situações, afinal ela é uma desempregada, que muitos chamam de vagabunda.
Quando a porta da empresa abre, para o retorno dos candidatos, uma pequena espera faz com que ela se saiba selecionada para a próxima etapa de testes.
A alegria e esperança invadem o seu coração. Surge em seu olhar um brilho ofuscante, misto de lágrima e alegria, pois enfim poderá ter a chance de manter a sua família.
Os selecionados voltam àquela mesma sala, onde são submetidos a testes de conhecimentos específicos, testes psicológicos individuais e de dinâmica em grupo, acabando com o pouco de forças que Rita ainda possuía.
Acabada a atividade, foram convidados a se retirarem, e que esperassem um telefonema da empresa, chamando os candidatos escolhidos para uma entrevista com o chefe da seção responsável pela vaga.
Rita abraça-se a sua pasta de cartolina, e cabisbaixa se encaminha para casa, sabendo que terá que passar mais uma vez por toda viagem sofrida que enfrentou para chegar até a empresa.
Mas o pior seria encarar seus pais, que sempre a esperava com os olhos repletos de esperança, com o coração aos pulos pela expectativa, mas que recebiam sempre, um balde de água fria, com a não resposta de um emprego.
Não tinha como fugir da situação. Essa era a sua realidade. Num esforço descomunal de resistência física e psicológica, ela chega à porta de sua casa.
Desta vez havia uma esperança, mas Rita continuaria a sua luta pela sobrevivência...