O MENSAGEIRO DE DEUS NA TERRA DO SOL

Em algum lugar do sertão nordestino o sol castiga a terra e todo ser que há sobre ela. Os urubus devoram a carcaça de um boi morto pela seca enquanto Zé Onofre, no lombo do seu velho jegue, carrega no colo um caixão de “anjinho” para seu recém-nascido, vítima da subnutrição.

A falta de chuva há muito consome vidas naquele pequeno povoado. O açude mais próximo do lugarejo fica a uma légua e meia; as pernas fracas e cansadas do povo já não mais têm ânimo de irem em busca da água barrenta que resta no poço; o rio que cortava o sítio de Zé Onofre quando da sua infância, hoje é só uma enorme vala de chão trincado em que a meninada costuma brincar. As poucas cabeças de gado que restam ao Zé Onofre -apenas sete- são só o couro e osso, pois pasto naquela região não há faz tempo, somente uma plantação aqui outra ali de palmas. Água por aquelas bandas só de quinze em quinze dias, quando a prefeitura do município manda o carro-pipa para abastecer o povoado. Alimento, quando tem, só uma vez por dia, pois o dinheiro ganho na “frente de trabalho” é curto e as plantações de feijão e milho de Onofre e dos seus vizinhos perderam-se quase todas por falta de irrigação...

Zé Onofre chega em casa -uma pequena tapera feita de adobe e coberta de palhas- com o caixão. Os vizinhos já tinham levado o padre para batizar o “anjinho”, pois, segundo a crença deles, não se deve enterrar pagãos. Os cinco filhos de “seu Onofre” e dona Josefina, todos ainda crianças, brincam na sala de terra batida enquanto o corpo do irmãozinho caçula é velado.

A noite chega e Zé Onofre, cansado da viagem que fizera à cidade para comprar o caixão do filho, deita-se na rede para descansar o corpo... Preocupado com o destino da família, não consegue dormir. O filho que sepultara no fim da tarde foi o terceiro da prole num curto espaço de dois anos e meio. Uma lágrima escorre-lhe pela face. De longe, dona Josefina observa a tristeza do marido. Aproxima-se dele e enxuga-lhe a lágrima dizendo:

- Chora não, “home”, você fez o que pôde!... Foi Deus quem quis assim!...

- Eu sei, Zefa, mas me parte o coração chegar em casa e ver que você e os nossos filhos não têm o que comer. Hoje enterramos nosso caçula, o terceiro abatido pela fome. E amanhã, qual deles enterraremos? – pergunta apontando para as crianças que dormem amontoadas numa esteira.

- Amanhã não enterraremos ninguém!... As coisas vão melhorar, tenha fé.

- Fé em quê, minha filha, nessa terra esquecida por Deus?... A frente de trabalho está quase acabando... E depois, o que será de nós?... O dinheiro que recebemos é pouco, mas é com esse pouco que compro o “de comer” dos meninos. Sem trabalho, sem dinheiro, sem chuva, como sobreviver?... Da fé?!...

- Calma, “home”, calma!... Dá-se um jeito!...

- Que jeito?... Nem do nosso gado podemos esperar algo, pois estão só a carcaça! Não sei como ainda estão de pé!... A única saída que vejo é seguir o mesmo destino dos nossos conterrâneos, que não agüentaram a pressão da miséria e foram para a cidade grande em busca de uma vida melhor, longe dessa “caldeira do Diabo”. Se existe o inferno, aqui é a cozinha dele!...

- Fazer o mesmo que os nossos conterrâneos que deixaram para trás “viúvas de maridos vivos” e seus filhos?! – indagou Josefina.

- É a solução que vejo!... Irei na frente, depois mando buscar você e os meninos.

- Se você for, será igual aos outros: não retornará, tenho certeza.

- Como não?!. Vocês são tudo que tenho!...

- Eu sei que não retornará. Foi assim com todos que se aventuraram na cidade grande – insistiu dona Josefina. Se com você aqui, suando para sustentar nossos filhos, já está difícil, imagine você lá pr’aquelas bandas!... De que iremos sobreviver, eu e os “bacurinhos”, sem você por perto? Não sinhô, você não vai a lugar algum!... Tenha fé, Deus proverá!... Além do mais, família que sofre unida, morre unida!...- ironizou Josefina afagando-lhe os cabelos.

- Mas não vejo outra saída, minha nêga, não vejo!...

Enquanto conversavam, não perceberam que Zezinho, o filho mais velho, os observava.

Na manhã seguinte, Onofre levanta-se bem cedo e segue para a frente de trabalho. Dona Josefina está na cozinha preparando o jerimum para o desjejum dos meninos quando é abordada por Zezinho:

- Mãe, o “anjinho” me visitou ontem à noite e me pediu para não deixar o pai ir embora, pois para o mês vai chover... Ele disse para o pai plantar milho, feijão e aipim que chuva vem de “montão”.

- Ora, Zezinho, você tá variando!... Deve de ter sido o sol quente de ontem à tarde lá no cemitério... Bem que eu avisei para você ficar em casa!...

- Tô variando não, mãe, tô variando não!...

- Como não?... Você mesmo testemunhou o sepultamento do seu irmãozinho!... Então, como é que ele haveria de lhe visitar ontem à noite, meu filho, como?

- Deus que mandou ele aqui, oras! – respondeu dando com os ombros -. Ele disse que só poderia entrar no céu depois que nos desse o recado... Disse isso e foi-se embora, flutuando numa nuvem branca como se estivesse sendo puxado por um feixe de luz.

- Você conhece o seu pai: cabeça dura como ele é, não vai nem dar ouvidos! – retrucou a mãe.

- Mas precisamos convencê-lo, mãe!... O lugar dele é aqui, perto da gente. – insistia o menino.

Nesse exato momento, entra “seu Onofre” com a velha enxada sobre os ombros e pergunta:

- Me convencer de quê, gente?

- Oxente, home!... o que faz aqui a essa hora?.. Não deveria estar trabalhando?

- Isso mesmo: deveria, mas... infelizmente não tem mais nada para se fazer na frente de trabalho e fomos todos dispensados, por isso estou em casa mais cedo... Voltando ao início da conversa, de que vocês precisam me convencer? – indagou Onofre.

- É o Zezinho!...

- O que tem o Zezinho?... Tá doente? – perguntou colocando a mão direita na testa do menino, verificando se estaria ele com febre.

- Não!... – respondeu Josefina. Ele num tá doente não, mas parece que acordou variado e taí com uma conversa esquisita!...

- Que conversa? – perguntou.

- Fala pro seu pai, Zezinho, fala!...

- Quando o sinhô chegou, eu tava falando prá mãe que o “anjinho” me visitou ontem à noite... e ele me pediu prá não deixar o sinhô ir embora, pois para o mês vai chover – falou Zezinho.

- É, Zezinho, sua mãe tem razão: você tá variando sim!... Sabe quanto tempo faz que não cai uma gota d’água nessa terrinha “disgramenta”, esquecida por Deus? Nem eu me lembro mais!... – desdenhou “seu Onofre”.

- Pai, nossa terra num foi esquecida por Deus não!... Tanto é verdade, que foi Ele quem mandou o “anjinho” ontem à noite prá avisar que vai chover, que o sinhô num precisa ir embora daqui não, nem o sinhô nem ninguém. Ele disse que água vem em abundância, o suficiente para encher os açudes da região; o bastante para a gente se manter até as próximas águas...

Antes que Zezinho terminasse de dar o recado do “anjinho”, Onofre interrompeu-o:

- Meu filho, você sonhou com o seu irmãozinho, isso é normal. Daí a dizer que ele veio aqui avisar que vai chover, estaria eu variando também se acreditasse nessa estória!...

- E num foi só isso que ele disse não – continuou Zezinho.

- E o que mais ele disse? – perguntou Onofre com ar de deboche.

- Ele disse pro sinhô plantar milho, feijão e aipim. Disse ainda que essa foi a tarefa que ele teria de cumprir para poder entrar no céu – concluiu o menino.

- Tá bom, meu filho, amanhã mesmo começarei a plantar. – esboçou um sorriso de desdém, afagou a cabeça do menino e foi guardar a enxada.

Os dias foram passando, a reserva de mantimentos esgotando-se e a angústia apossando-se do coração de Zé Onofre... No céu, nenhuma nuvem escura que pudesse alimentar-lhe a esperança de chuva.

Vendo-se num beco sem saída, Onofre decide partir para a cidade grande em busca de uma vida melhor, mesmo contra a vontade de Josefina que, com os olhos encharcados de lágrimas, pedia-lhe que ficasse, que não os deixasse ali, sozinhos, naquele lugar amaldiçoado, “esquecido por Deus”... Zé Onofre tira da velha mala um envelope amarelado pelo tempo; e de dentro dele, alguns trocados, sobra do que recebera pelos últimos dias na frente de trabalho, e os entrega a Josefina:

- Toma, Zefa, foi o que restou dos meus dias trabalhados – disse ele -, mas pode ficar tranqüila, acertei tudo que devia ao seu Joaquim da Bodega. Ah, na despensa tem meia saca de feijão e o mesmo tanto de farinha, tem ainda um pouco de farinha de milho, açúcar e café... recebi junto com o pagamento, a título de “cesta básica”, da frente de trabalho...

- Pensa direito, home, se aqui, que é o seu lugar, tá difícil, imagine só lá pr’aquelas terras estranhas, de pessoas mais estranhas ainda! – indagou Josefina.

- Já está decidido, minha nêga: amanhã bem cedo, eu, o seu Joca de dona Fininha, Miguelão de dona Berê e Zezito de Noca, embarcaremos no Pau-de-arara que parte para São Paulo. Se tudo der certo, mandarei buscar você e os meninos; caso contrário, retornarei para casa.

Logo bem cedo, Zezinho levanta-se e depara-se com a mãe chorando e pergunta:

- O que aconteceu, mainha, tá doente?

- Tô, meu filho, tô!.. Tô doente de tristeza, pois o seu pai foi-se embora para São Paulo, e algo tá me dizendo que ele num volta mais.

- Fica assim não, mãe, ele volta sim!... – falou Zezinho abraçando-se à mãe.

- Tomara Deus, meu filho, tomara Deus!...

- É uma pena, mainha, que o pai não tenha acreditado no aviso do “anjinho” e foi embora sem plantar o que ele mandou – lamentou o garoto, agora órfão de pai vivo. - Eu queria tanto que ele estivesse aqui para ouvir o que o “anjinho” mandou dizer!...

- O “anjinho” veio lhe visitar de novo, meu filho? – perguntou a mãe.

- Veio – respondeu cabisbaixo -. Mas que importância tem isso?... Ninguém acredita mesmo que ele vem me visitar! – resmungou Zezinho.

- Num fique assim não, filho, eu acredito no que você disse - interferiu Josefina -. Nós dois plantaremos o que recomendou o “anjinho”, e juntos esperaremos a chuva, que está bem próxima. Mas... antes me conta uma coisa: o que disse o “anjinho” desta vez?

- Ele disse para plantarmos o mais rápido possível, e quando for chegada a hora da colheita, não devemos demorar muito para fazê-la, pois muita chuva vem aí. Um verdadeiro dilúvio, como há muito não se vê!... Foi o que ele disse – completou Zezinho.

E assim fizeram: com o pouco que Onofre deixou, Josefina comprou feijão, milho e algumas mudas de aipim e plantaram. O mesmo fizeram as demais esposas abandonados pelos maridos que também resolveram arriscar a sorte em São Paulo.

Tempos depois começou a chover, era uma chuva bem fina, mas o suficiente para irrigar a plantação de dona Josefina e das demais “viúvas de maridos vivos” que ficaram no povoado. Todos os dias chovia um pouco... e mais um pouco... e outro tantinho assim... O tempo passou; a plantação brotou; os brotos cresceram e finalmente chegou o dia da colheita. Foi o dia mais feliz na vida daquelas lavradoras desde a partida dos seus maridos para a cidade grande. E por falar neles, quem menos estava feliz era Josefina, pois desde que Onofre partiu, nunca mais ela teve notícias do marido. Nem ao menos uma carta ele mandou. “O que terá acontecido com ele?... Será que está doente?... Se ao menos ele me mandasse uma carta!..” – pensava ela.

Poucas semanas após a colheita, o céu parece que se abriu e muita água de lá desceu. Foram muitos dias e muitas noites de incessante chuva. Choveu tanto que os açudes trasbordaram; os riachos, há muitos anos sem água, também ficaram cheios; a terra, antes castigada pelo sol, hoje vê-se encharcada com o volume de água mandada por Deus. “Um verdadeiro dilúvio”, conforme dissera o “anjinho” ao seu irmão.

A notícia sobre a abundância de água na região trouxe de volta para casa muitos dos retirantes que se aventuraram na cidade grande, para a alegria das muitas “viúvas de maridos vivos” que viram seus homens partirem. Porém, uma delas estava inquieta, incomodada, infeliz: dona Josefina, pois os companheiros de viagem de Zé Onofre -Joca, Miguelão e Zezito- voltaram para casa, ele não. “E ele, por que não voltou?” – consumia-se ela absortamente.

Zezinho era agora o homem da casa, o chefe da família, papel esse assumido após o “sumiço” do pai. Cuidava de tudo sozinho, com a astúcia e a experiência de um homem já amadurecido. Deixava para a mãe somente os afazeres domésticos.

Dona Josefina nunca mais foi a mesma desde a notícia que lhe dera Zezito de Noca. Disse ele que Onofre, desesperado em busca de trabalho, deixou-se levar pelas falsas promessas de pessoas de má reputação. Envolvido até o pescoço com essas pessoas, não dava ouvidos ao que diziam seus amigos e entregou-se ao vício da bebida e ao uso de drogas. Sem condições de sustentar os vícios, resolveu praticar pequenos furtos. A última notícia que se teve dele foi a que após uma batida policial a uma “boca de fumo” muito freqüentada por ele, algumas pessoas morreram e outras foram presas, mas o seu paradeiro não se sabe ao certo.

Naquele lugarejo, antes castigado pelo sol, não se fala mais em seca, em miséria ou em fome. Fala-se apenas no “anjinho” que, devido às suas aparições presságicas para Zezinho, foi considerado um “Santo” pela gente daquela região. Todo ano, desde a sua última aparição, no aniversário da sua morte, uma legião de romeiros costuma visitar seu túmulo, diante do qual fazem pedidos e promessas e agradecem pelas “graças alcançadas”... Dizem, inclusive, que estão tentando torná-lo padroeiro do povoado.

Joésio Menezes
Enviado por Joésio Menezes em 12/05/2009
Código do texto: T1589288
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