Relatório 21

Relatório 21

- O que é aquilo, vovô?

Acabamos de atravessar as Plêiades. Já lhe falei que são os anéis de Saturno. Ele parece não ouvir. Crianças são assim mesmo.

- Por que chamam a Terra de Planeta Azul? Quase todos os planetas são coloridos e tem vida. É porque eles não conseguem ver?

Aquiesci e fechei as páginas.

- Agora, calma – peguei a mão dele na minha – apesar da velocidade em que estávamos, o dinamismo arrefece quando entramos na atmosfera.

A comissária de bordo avisa-nos que as seções de cinema terão início. Apesar de ser a mesma tela lá na frente, quando se coloca o fone de ouvido, cada um vê o filme que lhe é devido. Meu neto ainda não está na idade apropriada para isso, e eu fui dispensado dessa tarefa, em virtude de meu desígnio. A câmera dele capta as imagens contidas nas aureolas temporais, servindo como passatempo e instrução.

Vimos a construção de templos no Laos, vimos tropas de mulas carregadas de ouro, atravessando o sertão da Bahia em direção ao porto de Itacaré, vimos um escultor de Samos moldando a argila para terminar uma estátua - expliquei para ele que os olhos eram de ágata, embora com as batalhas subseqüentes, tudo desaparecesse. Vimos Chicago nos anos 30, com centenas de trabalhadores andando sob uma borrasca terrível, vimos navios vindos do Havre para o Brasil, no século 16.

Estamos agora bem próximos da Terra.

Meu neto se dispersou, retirou o fone e olhou pela janela. Eu já esperava pela pergunta.

- O que é isso, vovô?

- É a espaçonave Arturiana, ancorada sobre a cidade etérica de Darjeeling.

A comissária nos avisa que dentro de 10 minutos começaremos a entoar o mantra que orienta processos psíquicos de natureza emocional. Devido a densidade em que nos encontramos, foram escolhidos trechos da Carta Solar. Ela nos pediu também que ajustássemos nossos equipamentos de bombeamento de sangue e capacidade respiratória.

- Oh..eh...é? – fez meu neto, prendendo a respiração e o rosto colado no vidro.

- Sim. Mestre Jesus e suas legiões. Saíram de Darjeeling e se dirigem para o reino etérico sobre Santo Domingo, na República Dominicana. Acontece sempre nesta época.

Tem início a leitura da Carta Solar.

No Absoluto:

- Existência em Imanência, Nada em Ser, Passividade inconsciente em Atividade consciente...

No Universo:

Menos do menos em mais do menos, Energia densa em Energia fluída, Divisão anárquica em multiplicidade coordenada...

No Humano

Eu individual em Eu universal, Agressividade em Amor...

Meu neto levantou da poltrona antes do final, para ir ao toalete.

Crianças. Ao voltar, algo lá fora prendeu sua atenção. Ele me cutucou, depois apertou meu braço com força. Sua respiração estava ofegante.

Era uma menina, brincando numa carrocinha puxada por um bode.

Sorri e coloquei-o no meu colo.

- Ela? Vocês irão se encontrar. Sim, definitivamente vocês irão se encontrar. Sorte sua. Ela é uma das melhores pessoas que conheci.

Estamos chegando. Reconheço a casa. São Paulo, 1960. O chato é que já sei como ficará essa rua, dentro de duas décadas. O prazeroso é que irei esquecer. Descemos cuidadosamente, eu carregando a maleta dele. Desejaram-nos boa sorte. Acenamos.

Há uma mangueira bem na entrada. Sabiás e bem te vis nos dão as boas vindas, voando de um galho para outro.

- E agora, vovô? – seus olhos negros como jabuticabas, arregalados.

- Agora você será meu avô e eu serei seu neto. Mas antes devo terminar o relatório.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 09/05/2009
Reeditado em 26/04/2013
Código do texto: T1584901
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