Barba por fazer - um conto

Havia mais de dez anos que não o via, nem tinha notícias dele. Sabia sim que havia se casado cerca de dois anos depois que se separaram, e nada mais. Por que então esse sonho assim, tão sem propósito, tão fora de hora? Não entendia. Só tinha a certeza de que havia sonhado com ele. Um sonho delicioso, relembrando os momentos de carinho que havia vivido com aquele namorado, por quem havia sido tão apaixonada. Ele, um rapaz lindo, de seus vinte e poucos anos, cabelos encaracolados e fartos, e um jeito malandro de deixar displicentemente, ainda que totalmente de propósito, sua barba sempre por fazer...

Acordou leve, com um sentimento misto de saudade e melancolia. E um estranho ardor no rosto.

Ao olhar-se no espelho, ficou atônita: seu rosto estava avermelhado, sensível ao toque, como se a pele tivesse sido exposta a um atrito. Pensou em sua dieta do dia anterior, em seus cremes, em seu sabonete... nada lhe dava pistas. Então se lembrou do sonho.

Um frio percorreu seu corpo, sendo mais sentido na barriga. Arregalou os olhos, ficou assustada; depois, riu com vontade. Ora, onde já se viu!... Deve ter sido o gato da amiga. Ou um perfume. Provavelmente comera alguma porcaria cheia de corantes de que agora não se lembrava. Lavou o rosto com água gelada, usou um creminho suave, e seguiu seu dia. "Alergia", pensou.

Final da tarde, seu celular toca: número desconhecido. Atendeu displicente; mas, ao ouvir o interlocutor, o frio que havia percorrido seu corpo pela manhã voltou fortalecido. Reconheceu a voz: era ele!

Combinaram um café naquela mesma tarde. Ela correu ao espelho para retocar a maquiagem e verificar, com grande alívio, que a vermelhidão de seu rosto havia sumido. Agradeceu a todos os deuses que conhecia - e aos que não conhecia também - e se preparou para o inesperado encontro.

Continuava lindo, apesar da vasta cabeleira já apresentar alguns fios brancos que, na opinião dela, aumentavam-lhe o charme. Porém ela não acreditava que ele pudesse, após tantos anos, ainda manter esse hábito juvenil de cultivar a aparência de desleixo (cuidadosamente elaborada) da barba por fazer!

Mas não era bem isso: contou a ela que, depois de muitos anos, há cerca de uma semana sentiu-se impelido a uma atitude de revolta, como uma vingança pela campanha que sua agora ex-mulher fizera com insistência, durante todo o tempo em que estiveram juntos, em prol de seu rosto sempre perfeitamente escanhoado: deixou propositalmente a barba por fazer. E que na noite passada havia inexplicavelmente sonhado com ela, daí o café: queria vê-la, sabe-se lá por que...

No dia seguinte, ao acordarem, o rosto dela e outras partes de seu corpo amanheceram avermelhados. "Alegria", pensou.

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EC - Exercício Criativo

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