O meu dia de mãe
(Ao ensejo do Dia das Mães de 2009, a republicação deste meu texto homenageia os esquecidos dessa data: os pais que, por um motivo ou outro, foram obrigados a ser pai e mãe ao mesmo tempo para os seus filhos)
(Ao ensejo do Dia das Mães de 2009, a republicação deste meu texto homenageia os esquecidos dessa data: os pais que, por um motivo ou outro, foram obrigados a ser pai e mãe ao mesmo tempo para os seus filhos)
Minha segunda mulher, na tranquila observância do preceito de que cada um procura o melhor para si, num belo dia de 1979, decidiu abandonar casa, marido e dois filhos pequenos, atrás daquilo que ela chamava de seu sonho de felicidade: um jovem e bem apessoado malandro.
Foi-se embora e eu fiquei, aos 38 anos, com a incumbência de cuidar de uma menina e de uma menina, de 2 e 1 ano, respectivamente! E o pior é que eu era um dependente químico, embora lutando com unhas e dentes para escapar dessa tragédia pessoal, o que me fazia alternar crises de sucessivas e deploráveis bebedeiras com períodos da mais completa abstinência alcoólica.
De qualquer forma, tendo a mãe desaparecido completamente de circulação, fui criando as minhas crianças sozinho. Passou-se a fase do Jardim de Infância, quando à pergunta “Cadê mamãe?”, podia tranquilamente responder: “Mora em outra cidade. Um dia ela volta”. Mas, ao chegar ao Ensino Fundamental, não cabia mais o engano e tive que abrir o jogo: “Brigamos, separamos e ela foi embora”. Nunca, entretanto, expliquei-lhes os verdadeiros motivos, pois não poderia envenenar o coração dos meus filhos contra a mãe, cuja memória convém que seja sempre boa em corações adolescentes.
E como, por ironia do destino, a minha dependência química me acarretou uma fobia social que, por alguns anos, me impediu de manter um relacionamento sentimental saudável com uma mulher que se lhes servisse de segunda mãe, não havia, nessa época, dia mais temido por mim do que o Dia das Mães. Raiva, frustração, pena dos meus filhos me envolviam. Eu sabia que era penoso para eles não poder participar das homenagens às mães dos alunos no colégio em que estudavam. Onde uma mãe para acompanhá-los e homenagear?
Mas em 1986 ocorreu algo diferente, inusitado. A diretora do colégio era minha colega na Faculdade de Letras, uma mulher destemida, já tinha dado tiros em marginais na porta do colégio, e era uma das pessoas mais destravadas que já vi. Nunca vi Marlene colocar dificuldade para fazer alguma coisa. Na véspera do Dia das Mães desse ano, ela me chamou:
- Professor, amanhã teremos uma confraternização em homenagem ao Dia das Mães. Todos os alunos trarão uma flor para ofertar às mães.
- Marlene, a flor eles podem trazer, a mãe não. Tu sabes que sou separado e que nem mesmo sei por onde anda a mãe deles.
- Venha com eles, professor, não vejo problema nenhum.
- Mas sou pai, Marlene, e será uma homenagem ao Dia das Mães!
- Professor, quem é que provê o sustento desses meninos?
- Eu, claro.
- Quem cuida deles quando estão doentes, quem os educa e quem os ama?
- Sou eu.
- Então, professor, você é pai e mãe ao mesmo tempo. Sua presença nessa homenagem está duplamente justificada.
Fui. Mas quero confessar que me sentia completamente desconfortável, eu, um único homem, no meio de quase 50 mães. Por várias vezes, deu-me a tentação de me levantar da cadeira e cair fora. Mas a Marlene tinha uma língua terrível: se eu fugisse, o melhor dos elogios que me faria seria o de cabra frouxo. E fui ficando.
Passaram os discursos, recitação de versos, e, finalmente, cada criança foi se levantando e chamando a mãe para entregar a flor. Comecei a suar frio. Meu Deus, por que tinha me deixado convencer pela insólita sugestão da Marlene?
Chegou a vez de Marcus, meu filho, que disse:
- Essa flor é para o meu pai!
Levantei-me para receber, todo o constrangimento já transmudado em emoção. Aquilo tinha um significado incrível e todos captaram o momento mágico. Por isso soaram muitas palmas.
Chegou a vez de Daniele, que repetiu:
- Essa flor é para o meu pai!
Mas como sempre foi mais falante e mais cara-de-pau que o irmão, acrescentou:
- Porque o meu pai é minha mãe!
Houve uma gargalhada geral. Mas uma gargalhada estranhamente emocionada.
Saí do Dia das Mães de 1986 com duas flores umedecidas por minhas lágrimas de gratidão: meus meninos haviam reconhecido que, dentro do meu peito, batia um coração de mãe!
E eu, que era um cabra da peste nordestino que, apesar da vida dura, nunca soubera chorar, caminhava agora de volta para casa, apertando as frágeis mãos daqueles pequeninos, não me importando absolutamente com as copiosas lágrimas que rolavam pela minha face e pelo meu coração!
Foi-se embora e eu fiquei, aos 38 anos, com a incumbência de cuidar de uma menina e de uma menina, de 2 e 1 ano, respectivamente! E o pior é que eu era um dependente químico, embora lutando com unhas e dentes para escapar dessa tragédia pessoal, o que me fazia alternar crises de sucessivas e deploráveis bebedeiras com períodos da mais completa abstinência alcoólica.
De qualquer forma, tendo a mãe desaparecido completamente de circulação, fui criando as minhas crianças sozinho. Passou-se a fase do Jardim de Infância, quando à pergunta “Cadê mamãe?”, podia tranquilamente responder: “Mora em outra cidade. Um dia ela volta”. Mas, ao chegar ao Ensino Fundamental, não cabia mais o engano e tive que abrir o jogo: “Brigamos, separamos e ela foi embora”. Nunca, entretanto, expliquei-lhes os verdadeiros motivos, pois não poderia envenenar o coração dos meus filhos contra a mãe, cuja memória convém que seja sempre boa em corações adolescentes.
E como, por ironia do destino, a minha dependência química me acarretou uma fobia social que, por alguns anos, me impediu de manter um relacionamento sentimental saudável com uma mulher que se lhes servisse de segunda mãe, não havia, nessa época, dia mais temido por mim do que o Dia das Mães. Raiva, frustração, pena dos meus filhos me envolviam. Eu sabia que era penoso para eles não poder participar das homenagens às mães dos alunos no colégio em que estudavam. Onde uma mãe para acompanhá-los e homenagear?
Mas em 1986 ocorreu algo diferente, inusitado. A diretora do colégio era minha colega na Faculdade de Letras, uma mulher destemida, já tinha dado tiros em marginais na porta do colégio, e era uma das pessoas mais destravadas que já vi. Nunca vi Marlene colocar dificuldade para fazer alguma coisa. Na véspera do Dia das Mães desse ano, ela me chamou:
- Professor, amanhã teremos uma confraternização em homenagem ao Dia das Mães. Todos os alunos trarão uma flor para ofertar às mães.
- Marlene, a flor eles podem trazer, a mãe não. Tu sabes que sou separado e que nem mesmo sei por onde anda a mãe deles.
- Venha com eles, professor, não vejo problema nenhum.
- Mas sou pai, Marlene, e será uma homenagem ao Dia das Mães!
- Professor, quem é que provê o sustento desses meninos?
- Eu, claro.
- Quem cuida deles quando estão doentes, quem os educa e quem os ama?
- Sou eu.
- Então, professor, você é pai e mãe ao mesmo tempo. Sua presença nessa homenagem está duplamente justificada.
Fui. Mas quero confessar que me sentia completamente desconfortável, eu, um único homem, no meio de quase 50 mães. Por várias vezes, deu-me a tentação de me levantar da cadeira e cair fora. Mas a Marlene tinha uma língua terrível: se eu fugisse, o melhor dos elogios que me faria seria o de cabra frouxo. E fui ficando.
Passaram os discursos, recitação de versos, e, finalmente, cada criança foi se levantando e chamando a mãe para entregar a flor. Comecei a suar frio. Meu Deus, por que tinha me deixado convencer pela insólita sugestão da Marlene?
Chegou a vez de Marcus, meu filho, que disse:
- Essa flor é para o meu pai!
Levantei-me para receber, todo o constrangimento já transmudado em emoção. Aquilo tinha um significado incrível e todos captaram o momento mágico. Por isso soaram muitas palmas.
Chegou a vez de Daniele, que repetiu:
- Essa flor é para o meu pai!
Mas como sempre foi mais falante e mais cara-de-pau que o irmão, acrescentou:
- Porque o meu pai é minha mãe!
Houve uma gargalhada geral. Mas uma gargalhada estranhamente emocionada.
Saí do Dia das Mães de 1986 com duas flores umedecidas por minhas lágrimas de gratidão: meus meninos haviam reconhecido que, dentro do meu peito, batia um coração de mãe!
E eu, que era um cabra da peste nordestino que, apesar da vida dura, nunca soubera chorar, caminhava agora de volta para casa, apertando as frágeis mãos daqueles pequeninos, não me importando absolutamente com as copiosas lágrimas que rolavam pela minha face e pelo meu coração!