O brilho de dezembro terminou
O brilho de dezembro terminou
Sempre no final da tarde, dava aquela vontade em Analu de espiar da sua janela, o grande espetáculo que é ver os faróis iluminados dos automóveis da avenida Jorge Amado. Carros velhos, novos, grandes, pequenos, bonitos, feios... passavam por ali todos os dias. Mesmo horário e pressa.
Do parapeito da janela, com a mão no queixo, Analu observava sempre as mesmas pessoas fazendo as mesmas coisas todos os dias. Seu Pedro do mercadinho, pondo as caixas vazias num cantinho isolado da calçada; dona Mariana fazendo sua longa caminhada pelo acostamento; o Betinho, morador do condomínio Holanda Portella, onde seu pai era porteiro, fazia o seu ciclismo pelas ciclovias e até os alunos saindo do colégio Christus, no outro lado da avenida.
Mas para ela, bom de verdade, era ver o momento em que o sol se despedia com o belo charme da cor vermelha. Simplesmente fascinante! Porém, tão bonito quanto isso... era ver mesmo as luzes dos veículos trafegando à noite na Jorge Amado. Os fimnais de tarde e começo de noite para Analu pareciam Natal. Tinham o mesmo brilho o ano inteiro. Para ela todos os dias era dezembro.
Porém, uma tarde, aconteceu algo diferente.
Como de costume no parapeito, observando as mesmas cenas, ela viu um homem, dirigindo um Corola preto, com a velocidade bastante reduzida. De pele clara, olhos verdes, usando uma camiseta azul e de cabelos escuros bem curtos, ele aparentemente era um rapaz normal, se não fosse o fato dele estar conversando sozinho. Além dele, não havia ninguém no automóvel, isso lhe era bastante claro. O jovem gesticulava com uma das mãos e a outra usava para segurar o volante. Analu ficou perplexa. Sentiu um arrepio em todo o corpo e seus pés gelaram.
Permaneceu ali extasiada. Confusa. Seria uma impressão sua? Ou de fato ele era uma espécie de louco, esquizofrênico? Talvez ele gostasse de conversar sozinho, como modo de se expressar melhor ou até fosse um desses atores decorando seu texto. Mas por que no trânsito, numa avenida tão movimentada e perigosa como a Jorge Amado? Não dava para entender mesmo a cabeça do jovem, pensou Analu.
No dia seguinte, lá estava ela novamente na sua janela. Logo avistou o Corola preto surgindo na curva da avenida. O carro demorou quase uma vida inteirinha para chegar até a frente de sua casa. Uma coisa Analu percebeu: ele era cuidadoso no trânsito. Parava na faixa de pedestres para os alunos do Christus passarem. Obedecia o sinal, mesmo não vindo nenhum outro carro no cruzamento com a avenida Tomáz Queirós. Mas outra vez dialogava sozinho. Ele aproveitava as interruptas paradinhas da Jorge Amado para falar consigo mesmo.
Os pelos do braço dela arrepiaram com o que presenciava da janela.
Houve um dia em que ele chegou a gritar tão alto, que os clientes do seu Pedro saíram alvoroçadamente. Dona Mariana, que passava na hora, chegou a parar de correr. Todos ficaram assustados, com aquelas caras de espanto, perguntando uns aos outros o que havia acontecido. Ninguém sabia.
No mesmo instante, sua mãe correu para o portão, dizendo: “Mataram outro aluno do Christus! Já falei, não dá para ter uma escola para crianças perto dessa avenida cheia de motoristas assassinos. Mas ninguém me escuta!”. Ela estava certa, nos últimos anos, muitos acidentes aconteceram próximo a sua casa, mas nem todos foiram com os alunos do colégio da frente. Sua mãe, como sempre, exagerava. Mesmo que um acidente houvesse acontecido, não teria sido por causa daquele jovem, porque ele parecia respeitar todas as regras de trânsito.
Desde o incidente, passaram-se três dias sem que ela pudesse vê-lo novamente. Durante esse período, nem foi tão legal assim observar as luzes dos carros, porque na realidade todo o brilho da Jorge Amado era refletido única e exclusivamente por aquele belo jovem de olhos verdes.
No quarto dia, à espera dele, ao ver seu belíssimo Corola surgindo, ela correu para o jardim secreto de sua mãe, pegou uma linda rosa branca e foi espera-lo no sinal. Quando o semáforo abriu, Analu sorriu aliviada. Com a velocidade com a qual ele vinha, não daria tempo dele encontrar o sinal aberto e teria que esperar bem pertinho dela.
Ao se aproximar mais com seu carro, ele fez surgir nela uma onda de arrepio. Pôxa, seu coração parecia sair pela boca. Para acalmar-se, Analu sentiu o perfume da rosa que lhe iria entregar.
Quando ele parou o carro no semáforo, ela deu dois passos em direção a ele. O vidro escuro do banco do carona estava aberto. No ar, o cheiro do perfume másculo vindo do seu corpo. Por fim, ela chegou bem perto, agachou-se; os olhos verdes dele cruzaram-se com os seus. Permaneceram calados, se encarando.
Olhando-o, fixamente, Analu viu que ele usava no rosto um daqueles microfones que os apresentadores de televisão usam pertinho da boca e que vai até a orelha, onde eles ficam passando várias informações para o apresentador pelo famoso “ponto”. Então, estavam explicadas aquelas conversas esquisitas noutros dias.
Lá atrás, os outros carros buzinavam feito loucos. Obedecendo aos protestos dos demais motoristas, ele partiu, mas ficou olhando-a pelo retrovisor até sumir em seu carro. Os outros o acompanharam, enquanto ela continuou à margem da avenida, segurando o botão da rosa semi-aberta tão forte que as pétalas soltaram-se quando ela abriu a mão.
Nunca mais a avenida Jorge Amado foi a mesma. Nunca mais ela o viu. Sempre que vê um Coroila preto, seu coração dispara, suas mãos gelam, seus pés suam, suas pernas ficam bambas e dá aquele friozinho na barriga. Foi como se houvessem lhe roubado a luz que refletia na sua janela.
Marciela Taylor ( Marciela Rodrigues dos Santos )
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Os textos aqui publicados, salvo indicação outra, são dedicados às amigas Juliana Lopes e Ângela Denise
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