A gaveta das meias – você acha que vou conseguir viver com isso?


Nunca fui de mexer nas coisas de meu marido. Foi assim que ela começou a contar sua história. Eu lia um livro quando ela chegou e assentou – se junto a mim em um banco da Praça. Nunca a tinha visto antes . Sorri e apesar dela ter retribuído notei seus olhos tristes. É uma bonita praça, ela disse. Embora não estivesse a fim de papo, fitei-a com um meio sorriso, tentando ser gentil, mas não a encorajando a continuar. Mas ela continuou. Não sou daqui. Trouxe meu marido para internar no hospital. Pensei que deveria falar alguma coisa, precisava demonstrar interesse e solidariedade, mas ela não esperou que eu abrisse a boca e continuou: Um homem fora de série. Desde que nos conhecemos foi amor a primeira vista. Almas gêmeas, ele dizia. Você acredita nisso? Não, ela não queria respostas. Queria apenas que eu a ouvisse e continuou, sem interrupção. Eu acreditava. Nunca duvidei do seu amor por mim. Não fui boa dona de casa, mas ele não se importava. Não implicava. Mas era muito organizado, mantinha tudo que era seu em ordem. Acabou se tornando o responsável pela arrumação de nossos armários. Tudo organizadinho, as minhas coisas e as dele. Houve um tempo em que ele viajava durante a semana e quando voltava encontrava uma baderna só. Mas ele arrumava tudo. Eu nem colocava as mãos nas coisas dele, não que ele tivesse proibido, mas eu achava que devia respeitar suas manias. Era tudo tão ordenado! Às vezes eu até ficava com vergonha, mas ele ria de mim. Bobagem, dizia, cada um é do jeito que é. Por isso nós damos tão certo. Sempre quis um filho e não tivemos. Essa era a única sombra em seus olhos.Nunca adimitiu. Mas eu percebia quando o via brincando com os sobrinhos. Se tocava no assunto dizia:” Pra que um filho? Nós nos bastamos. “Era verdade, para mim . Mas sabia que ele só dizia isso por amor a mim. Não a interrompi nem quando ela ficou calada .Mas fechei o livro. Eu não sabia quem era aquela mulher, mas achei que precisava respeitá-la. Estava dividindo comigo uma dor muito forte. Depois de algum tempo, secando discretamente os olhos ela continuou. Foi aí que ele ficou doente. Um AVC o deixou inerte na cama. Não podia falar. Ficou muito tempo no hospital, mas se mostrava tão inquieto que achei melhor levá-lo para casa. Foi a decisão certa. Quando lhe disse isso seus olhos brilharam. Sim, ele queria ir para casa. Foi no dia seguinte a sua volta que tudo aconteceu. Já tínhamos um código estabelecido, uma piscadela para sim, duas para não. Percebi que estava indócil e que olhava fixamente ora para a cômoda ora para mim. Eu não sabia o que ele queria. Por fim, desesperada, assentei-me na cama e acariciei os seus pés gelados. Perguntei: - você quer colocar meias? Uma piscadela. Sorrindo fui até a gaveta das meias pegar uma. Peguei aleatoriamente e assim que me virei com o primeiro par, duas piscadelas. Não, não era aquela que ele queria. Experimentei mais uns três pares e já estava desistindo quando peguei uma mais grossa. Vi que tinha acertado. A meia tinha uma espessura diferente. Percebi que dentro dela tinha um papel. Retirei cuidadosamente: um papel dobrado. Dentro o retrato de um garoto bonito, os olhos tão azuis quantos os dele.No verso do retrato, li. Poucas linhas. Letra de mulher.:”Seu filho quer muito conhecê-lo. Acho que ele tem esse direito e você também. Ele não quer nada de você, só conhecê-lo. Não pretendemos atrapalhar a sua vida. O endereço é este.”Acabei de ler e olhei para o meu marido. Perguntei: - é isso que você queria que eu visse? Uma piscadela. Pois bem, vi. Depois sai do quarto lentamente. Voltei com uma tesouro e cortei em pedacinhos o retrato e joguei no lixo. Enquanto fazia isso meu marido piscava desesperadamente, repetindo não, não, não! Ele nunca mais falou comigo. Você acha que eu vou conseguir viver com isso? Bem, dessa vez era uma pergunta direta. Respondi dizendo que ela poderia investigar, partir em busca do rapaz, alguém devia saber alguma coisa. Ela olhou, deu uma risadinha, levantou-se e me disse as últimas palavras: Agora não adianta mais. Faz uma hora que ele morreu. E assim dizendo foi embora carregando todo o peso do mundo nas costas encurvadas.
 


Este texto faz parte do IV Desafio Literário do Recanto das Letras. Os outros participantes poderão ser encontrados na link abaixo. O meu texto é um conto embora tenha sido colocado entre as crônicas por uma decisão do grupo participante.
http://www.escritoresdorecanto.xpg.com.br/desafio200904.htm