UM RAIOZINHO DE LUAR
O. Zarref
Um finíssimo raio de luar atravessou a vidraça, passou pelo orificiozinho da branca gaze do cortinado, e foi beijar, travesso e brincalhão, os loiros caracóis do menino que dormia.
Ao contacto da doce carícia, o menino acordou.
Na semiobscuridade do quarto, os seus olhitos azuis-celeste cintilaram como diamantes quando o raiozinho de luar pousou sobre eles. Os seus pequeninos lábios entreabriram-se, felizes, como pétalas de rosa, sorrindo. Sempre gostara da Lua. Sempre quisera a Lua. E, agora, bastar-lhe-ia agarrar aquele raiozinho e puxar, puxar devagarinho, fazendo a Lua descer, descer devagarinho, como um balão, uma bolinha dourada, um novelo, que fosse descendo lá do Céu, descendo de mansinho, até às suas mãozinhas ávidas de luar... Estendeu os bracitos – as suas mãos aladas adejando como borboletas brancas ofuscadas pela luz – e o finíssimo raio de luar escoando-se-lhe, travesso e brincalhão, por entre os seus deditos...
Já seria muito tarde? Meia-noite?... Sentou-se. Aos pés da cama, divisou a negra carapinha da negra Osinha, que dormia profundamente. Era sempre assim. Depois do jantar, o papá saía. Ia para o café, falar com os amigos, desanuviar o espírito...
Coitado do papá! Trabalhava muito, lá na Empresa. Chegava a casa sempre cansado, e, é claro, depois do jantar apetecia-lhe distrair-se um pouco. Às vezes, saía com a mamã. Iam ao cinema. Mas, a maior parte das vezes, o papá saía primeiro e a mamã depois. Como hoje.
- Olha, Rosa. Virei tarde. Depois de arrumares a cozinha, deitas o menino e fazes-lhe companhia, ouviste?
Beijara-o muito, dizendo:
- Porta-te bem, meu amor. A mamã, logo, traz-te rebuçados, sim?
Tentou, mais uma vez, agarrar o raiozinho de luar. Baldadamente.
Deslizou da cama, sem fazer ruído, aproximando-se da alta janela da sacada. Ah! Se a pudesse abrir! Mas... Que sorte! Só estava encostada!... Abriu-a. O quarto inundou-se do surdo rumor que vinha da noite. Sentiu frio, ao receber na mimosa pele o impacto acariciante da brisa nocturna. Levantou os bracitos. O finíssimo raio de luar passava um pouco mais acima. Olhou em redor, os olhinhos muito abertos, procurando. O banco, o banquinho do toucador da mamã! Aquele, forrado, que tem veludo encarnado por cima!....
Coitada da mamã! Tinha tão bom coração! Por causa disso, não parava nunca. Conferências daqui, obras de caridade dacolá. A Liga dos Inválidos... A Sopa dos Pobres... O Lar dos Velhinhos... De dia, porque de noite tinha aquela maçadoria dos serões intermináveis em casa do senhor doutor, do senhor engenheiro, do senhor arquitecto, do senhor comendador... Às vezes, de manhãzinha, ainda deitados, ouvia a mamã dizer ao papá:
- Aquela senhora de...! Que horrível criatura! Uma sensaborona... E que mal jogava a canasta!
Pegou no banquinho – ele já podia com o banquinho, já tinha força, não tinha? -, passou, com infinitas cautelas, silenciosamente, pelo corpo prostrado da negra Rosinha, e pousou o banco no estreito varandim da janela.
Coitada da Osinha! Era tão boa para ele!... Cedinho, vinha fazer-lhe cócegas para o acordar. Depois lavava-o, vestia-o, dava-lhe o copinho de leite, e, a seguir, lá iam os dois, no elevador, até lá abaixo, esperar, à porta da rua, pela carrinha do Jardim-Escola. “É tão bom ir de elevador, não é, Osinha?”.
As senhoras do Jardim-Escola também eram muito boas. Ensinavam a fazer desenhos e a fazer bonequinhos de papel, todos de mãos dadas, muito engraçados, e também ensinavam a escrever. Ele já sabia fazer um O, uma bolinha muito grande, assim... E brincava com os outros meninos alegres de caras tristes e só não gostava do Carlitos que punha a língua de fora e que fazia chichi ali mesmo no chão. Mas do que ele gostava mais era de ir para casa, brincar com os seus brinquedos. Tinha muitos!... Mas havia um que o papá nunca lhe dera: a Lua. Era tão bonita, tão douradinha, tão brilhante e redondinha!... Mas hoje ia tê-la...
Subiu para o banco, agarrando-se ao resguardo de ferro da balaustrada. Olhou para baixo. Que engraçado! Os carros, vistos daquela altura, pareciam carrinhos de brincar... E as pessoas, muito pequenininhas, como formigas rabigas!... E as luzinhas dos anúncios, acende-apaga, acende-apaga, lembravam-lhe os pirilampos...
Olhou para cima. Piscou os olhinhos azuis-celeste. A luz rutilante da Lua ofuscava-o, hipnotizava-o. Levantou os bracinhos – e os seus deditos, trementes, tocaram, ao de leve, no raiozinho de luar. Se desse um saltinho...
Subitamente, os carrinhos de brincar, lá de baixo, começaram a crescer, a crescer, e a subir... E as luzinhas-pirilampos a aumentar, a aumentar!... E as formigas a engordar, a engordar!... “É tão bom ir de elevador, não é, Osinha?..”. Ih, que barulheira! O vento, nos seus ouvidos, fazia Vvuummm... Acende-apaga, os carros zum-zum, acende-apaga, o silvo agudo de um apito... E um baque surdo: Tchap!
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Agora já ia muito alto, todo envolto no raiozinho de luar. Era tão macio! Olhou para baixo. Viu os telhados escuros das casas, as luzinhas-pirilampos, os carrinhos de brincar, as formigas rabigas... Tinham-se juntado tantas à porta de entrada do prédio onde morava! Teria caído da janela alguma migalhinha?
Aconchegou-se ainda mais ao raiozinho de luar, e foi subindo, subindo – até se transformar num pontinho luminoso, perdido no Infinito…
F I M
Negage (Angola), Julho/1969