Contos de outros tempos
Conto de caça
Tenebrosa noite, escuridão compacta como piche, lancinantes gritos do animal ferido, perseguido, acuado pelo bicho-homem, predador que usa potentes projetores de luz vergastando as sombras, tonitruantes e aterradoras máquinas de matar...
De repente, ali, pertinho, olhos irrealmente luminosos sob o feixe de luz e exaustos na inútil corrida pela vida que se esvai pelos ferimentos já recebidos, parecem olhar diretamente para mim, comunicando-me sua resignação pela sorte que lhe coube e rogando pela bala de misericórdia que lhe acabe com o sofrimento.
Faço com todo o cuidado coincidir a mira no espaço entre seus lamentosos olhos...mas nada mais acontece! Como que petrificado, tenho meus sentidos paralisados e sou impedido de prosseguir o fatal movimento do meu dedo sobre o gatilho da arma!
Meu estupor acaba abruptamente com três tiros rápidos de fuzil automático disparados bem junto de mim. Seguem-se a visão do animal desabando e a escondida e silenciosa depressão do guerreiro de merda que friamente dispara foguetes, morteiros e metralhadoras sobre seus acoitados inimigos, mas se viu vencido, de coração mole, por um par de olhos suplicantes e indefesos...
Os soldados riem felizes em volta do braseiro, se banqueteando com as carnes tenras do nunce abatido, enquanto à distância, eu vou roendo lentamente um pedaço de mandioca nova que acabei de desenterrar...
Nunca mais comi um miligrama de carne de um animal selvagem.