Histórias do pescador Getúlio

HISTÓRIAS DO PESCADOR GETÚLIO

Terezinha Pereira

Findava abril. Sentado à beira da janela tinha ele a certeza de que a meta de escrever uma história a cada mês não havia sido cumprida. Havia chovido muito após o Natal. Naqueles primeiros dias de férias nada fizera a não ser levantar-se da cama para abrir e beber de mais uma garrafa de vinho das muitas que haviam sobrado das festas natalinas. A casa alugada conforme referência de amigos que já haviam estado naquele lugar de mar cristalino, montanhas e matas parecia-lhe a ideal. Havia decidido que passaria alguns dias isolado do mundo. Além da chuva que colaborava com seus anseios de nada fazer, havia o serviço do caseiro invisível. Ele vinha em silêncio, não era sabido a que horas, se do dia ou da noite, abastecia a casa de comida e fazia a limpeza com capricho. Uma locadora de imóveis alugava algumas casas de praia dessa forma. O assunto era tratado por telefone e o combinado é que os hóspedes encontrariam a casa sempre limpa e abastecida de comida e bebida de acordo com os pedidos feitos por escrito. Um cardápio estaria no local contendo os preços e as pessoas somente teriam o trabalho de anotar na folha do bloco de anotações o que desejavam para aquele dia, se precisavam ou não do serviço de limpeza e quando e onde esse deveria ser realizado. Se não houvesse alguma manifestação a respeito da comida ser-lhes-ia apresentada a sugestão do dia. Era o que havia desejado. Ficar sem fazer nada e ainda encontrar casa limpa e comida pronta, que a bebida havia levado com fartura demais. Uma casa sem telefone, sem televisão, sem rádio. O trabalho no jornal tomava-lhe todo o tempo com a realidade do mundo, da vida. Para a literatura, para a ficção nada sobrava-lhe. Ansiava um tempo de purificação. Os pássaros eram quem indicavam-lhe se estava começando novo dia ou se o dia terminava e era tudo o que ouvia de sons naquele lugar, além do chocalhar das ondas nas pedras. Escondido sob as nuvens o sol não clareava as frestas da janela favorecendo a madorra que parecia invadir-lhe por inteiro. A última garrafa de vinho foi esvaziada no primeiro alvoroço dos pássaros do último dia do ano. Resolveu que tomaria um banho e depois decidiria se escreveria na folha do bloco de pedidos que passava por debaixo da porta diariamente, se gostaria que trouxessem-lhe mais vinho ou se champanha. Encheu a banheira de água bem quente, colocou os sais que encontrou cuidadosamente arrumados na borda da banheira, despiu á única peça de roupa que havia usado naqueles dias, entrou na água e relaxou-se sentindo o perfume agradável dos sais. A

espuma que cobriu-lhe o corpo fê-lo querer ver o mar. Naqueles dias, do mar, a não ser da vista de uma vastidão de água escurecida pela noite quando ali chegara debaixo de um temporal, ouvia apenas os ressoantes ruídos. O temporal durara noite inteira para depois transformar-se numa chuva não muito forte mas constante. Saiu da banheira quando foi incomodado pelo frio. Se havia cochilado, não importava, a água da banheira havia ficado era gelada. Enxugou-se com vagareza, vestiu um roupão, pegou do bloco de anotações e redigiu um projeto para o ano seguinte. Haveria de escrever uma história nova a cada mês. Doze histórias vindas do mar.

Naquele dia solicitou ao caseiro que limpasse o quarto e o banheiro quando estivesse fora de casa. Preferia ele próprio escolher da bebida. Colocou uma bermuda e, de pés descalços, saiu caminhando pela praia. Não sentia falta do computador, do celular que tocava dia inteiro, da mesa empilhada de jornais e matérias, do café quente que queimava-lhe goela abaixo, dos pastéis gordurosos que engolia sem mastigar. Aquilo tudo era coisa de cidade. Percebeu que algumas pessoas preparavam fogos para a noite e que o sol arriscava-se a surgir entre as nuvens prometendo, quem sabe, uma noite agradável de passagem de ano.

A praia onde ficava localizada a casa consistia numa pequena baía cercada de verde e fechada por pedras. Tão denso, tão profundo o ruído do mar que ouvia de casa! Quando subiu nas pedras viu descortinar outra praia ainda mais bela. A chuva caía fina e não o impedia de caminhar. E quando chegava no final da baía atravessava outro monte de pedras e avistava outra praia. Foram os pássaros revoando em bando que o alertaram que deveria voltar. Chegou em casa sem nada para beber. Havia um recado escrito com elegância e com a letra bem feita de sempre solicitando-lhe que informasse como gostaria de comer lagosta e quando poderia ser servida. Gostaria de ter um caseiro como aquele no seu dia-a-dia da cidade.

A chuva deu a entender que comemoraria o encerrar do ano em outras praias. Não aconteceu um céu cheio de estrelas, mas um tempo bom o suficiente para as pessoas do lugar deslocarem-se até a praia para festejar iemanjá. Chegavam com barquetes floridas e cheias de oferendas para a rainha do mar. Crianças, idosos, jovens, todos vestidos de branco. Mulheres com túnicas enfeitadas de rendas dançavam em roda. A maré baixa daquela hora oferecia maior espaço na areia para que pudessem se espalhar pela praia. Ele chegou vestindo a única camisa branca que havia trazido, pés descalços e, nas mãos uma garrafa de champanha que não havia solicitado mas que havia surgido sobre a mesa da copa.Abriu-a no momento dos estouros dos fogos. Sentiu o líquido escorrer-lhe pelo braço e pela primeira vez naqueles dias sentiu falta de alguém para partilhar da bebida.Olhou em volta e ofereceu champanha aos desconhecidos.

- Moço, aqui a gente não costuma beber desta garrafa de luxo. Olha, aceita um pouco da nossa, disse um deles pegando de um garrafão de cachaça e colocando um pouco numa caneca para depois jogar no chão dizendo que era para o santo. Experimente moço, que esta é da boa.

O jornalista colocou a garrafa no chão e experimentou da bebida que o homem de seus sessenta, sessenta e cinco anos, oferecia-lhe. Estava acostumado a beber das cachaças mais finas e aquela parecia-lhe acre, tosca. E tomou mais outra dose, mais outra e acabou entrando na roda das oferendas e das bênçãos do pai-de-santo. Acordou no dia seguinte sem lembrar-se de como havia chegado em casa. Na folha de pedidos escreveu que gostaria de comer lagosta do modo que serviam no lugar e que estaria em casa ao entardecer.

- Moço, o senhor pode caminhar pelas matas que não há perigo. Cuidado com as folhas dos carrapichos para não arranhar as pernas. Preste atenção no caminho para não se perder na volta, foi o que alguém lhe disse com gentileza.

Ele caminhou pelas trilhas, passou por uma cachoeira, mergulhou na água do rio raso, escorregou-se no barro dos caminhos, enlameou-se todo, arranhou-se nas folhas espinhentas, subiu morros e lá de cima viu o mar que nesse dia mostrava um azul cristalino. Prendeu a respiração e deu-se por realizado. Se a vida era feita de momentos felizes, aquele era um deles. Na volta passou pela praia do porto. Uma porção de homens conversavam e mexiam com redes de pescar. A primeira pessoa que o viu foi o homem que havia oferecido-lhe a cachaça.

- Moço, o senhor andou pelas matas, não lhe disseram para ter cuidado com os picões? Hoje não fomos para o mar. Estamos ajeitando as redes, que amanhã vai dar dia bom para a pesca e sairemos pela madrugada. Moço, o senhor é bom de copo. Se eu não soubesse onde estava hospedado, o senhor teria passado o resto da noite aqui mesmo na praia. Olha, moro ali, disse apontando um barraco próximo ao porto. Passe por lá para tomarmos mais uma. Moro sozinho, a mulher Deus levou no ano passado e filho ele não havia dado a gente.

O jornalista chegou com uma panela de barro tampada.

- Trouxe o tira-gosto.

- Moço, isso não é tira-gosto. É um banquete. Bom o cheiro dessa moqueca de lagosta.

Se o jornalista foi até a casa do pescador movido pela curiosidade ou se pelas instâncias de ter com quem conversar nem ele saberia. A noite foi vencida pelos casos e o garrafão de cachaça permaneceu quase cheio.

- Moço, se quiser, pode dormir aqui mesmo. Já vou para a lida do dia.

Saíram juntos do barraco. Os pescadores tiravam os barcos das amarras, falavam alto, cantavam e davam gargalhadas, coisa rara na cidade.

- Vou falar com os companheiros e amanhã, se quiser, pode vir pescar com a gente. É só para dividir melhor a turma nos barcos. Volte à noite no barraco para experimentar de outra pinga. Olha, não precisa trazer o tira-gosto que vou trazer o peixe.

Quando chegou à casa do pescador este mostrou-lhe um peixe grande, marrom claro, ventre esbranquiçado, como um troféu.

- É um bijupirá. Peixe de primeira qualidade que a gente pega de vez em quando. Escondi o bicho debaixo da lona para o comprador não ver, senão, adeus. Pesquei esse na linha. Senta aí e toma da pinga que vou fazer um guisado para nós.

Depois do peixe limpo e partido em postas, o homem foi mostrando os ingredientes que usaria para fazer o guisado: salsa, o coentro de que o moço nunca havia visto as folhas, a cebola, o leite de coco, a pimenta-de-cheiro, o dendê. E não foi ainda nesse dia que fizeram baixar a cachaça do garrafão. Difícil comparar o guisado feito por aquele homem simples, que nada havia visto na vida senão aquele mar e aquelas matas, com as comidas servidas na cidade. Sentiu falta de um certo vinho francês branco seco mas até que já estava gostando do sabor da bebida do garrafão. Também, as histórias que ouvia do pescador o extasiavam mais do que o álcool.

Os dias foram transformando-se num vagar de horas pelas matas e pelas praias e horas e horas de conversas com aqueles homens do mar que foram se achegando e em grupo de oito a dez bebiam uns goles da cachaça do garrafão, contavam casos e queixavam-se da pequenez da noite, que o dia anunciava-se logo com o burburinho dos muitos pássaros que povoavam a vasta vegetação. No último dia das férias, quando deveria retornar ao bulício infernal da cidade, pediu ao caseiro invisível que fosse até a vila e que passasse um telegrama para o jornal. Pedia licença do trabalho por tempo indeterminado. Havia feito as contas e sabia que o montante que havia guardado pelo esforço de dezesseis horas diárias de trabalho seriam suficientes para passar uns tempos naquele lugar. O que não poderia era afirmar se algum dia seria capaz de viver para sempre num mundo tão distante e afastado da sua realidade de homem da imprensa que vive das palavras, das notícias, da vida em transformação constante. Janeiro estava para ir-se mas ainda teria tempo para escrever sua primeira história do ano. Quando contou ao amigo pescador que ficaria naquele lugar durante mais um tempo recebeu o convite de ser dele um hóspede no barraco.

- Moço, o quarto que seria do filho que nunca Deus mandou para nós esteve sempre desocupado. Gosto de comer do peixe bom que trago da pesca e seria de bom proveito ter com quem dividi-lo.

Acertou as contas com o caseiro invisível e nunca abriu o monte de telegramas que recebeu. Combinou com o pescador que ficaria uns tempos como hóspede dele se esse concordasse que ele pagasse pela hospedagem e pela comida servida.

Enfrentou o mar, aprendeu conduzir embarcações de pesca, lançar redes, pesca de linha, de espinhel, de armadilha. Enfrentou ventos, sol e tempestade. Teve a pele curtida pelo sol e ficou alguns quilos mais magro. Apesar do turbilhão de idéias que o pensar a vida fê-lo passar noites e dias em agonia, seu semblante já estampava a serenidade própria da fisionomia das pessoas daquele lugar. Os casos amorosos regados a ruidosas brigas e muita bebedeira nos seus quarenta anos de vida haviam sido substituídos pelo calor terno e doce de uma moça que ali fincara morada há uma década.

Findava abril e três anos haviam se passado desde que ele ali chegara numa noite de tempestade para passar alguns dias de férias. A meta que deveria cumprir... Escrever... Havia chegado o momento. À beira da janela, olhando o mar, pegou da caneta e do bloco de papel que havia mandado trazer da cidade e escreveu o título: “Histórias do pescador Getúlio”.

Terezinha Pereira
Enviado por Terezinha Pereira em 07/05/2005
Código do texto: T15517