No Pau-de-Arara...

Eu vi a fotografia. Pedra; lápide. O Che deitado, com os olhos entreabertos. Maldita fotografia. Era a comprovação? poderia ser forjada; um efeito especial; de Hollywood. Então porque me preocupar. Os capitalistas são espertos. Manipulam a opinião do povo.

Vamos de arranque, rumo a La Paz. Vamos levantar os mineiros, índios que se esqueceram de suas tradições, e passaram a trabalhar pela riqueza dos porcos, dos tremendos porcos, dos patinhos escrotos, dos ricaços que estão nos salões elegantes ouvindo sonatas antigas, musica de trezentos anos, que os vampiros adoram! Eu vi a foto, e preferiria não ter visto. Nada. Nenhuma palavra. Nenhum comentário.

Estou pronto para a luta, Ernesto, vamos lá, resolver de uma vez!. Por que esperar? Vamos lá, de enfiada, de roldão, não há o que temer, o povo quer libertação, quer felicidade, chega, chega, não queremos mais trabalhar para os porcos, para os porcos rubicundos, para os esnobes, chega Ernesto, é a hora é agora. Temos armas, munições que dá pra todo o mundo, vamos lá Ernesto, vamos lá, enfiar essa descarga pela goela abaixo desses porcos, desses malditos sugadores, que violentam a terra e o povo da terra! Estou cansado de ficar em buracos, quero ver a luz do sol, quero ver as estrelas, e tomar chimarrão junto às fogueiras, quero ver o mar, quero ver a baleia ser salva, vamos empurrar gente, vamos fazer força, vamos todos juntos.

Vamos rumo à La Paz, com as baionetas descaladas, com as metralhas saudando o novo mundo, vamos direto rumo à La paz., a paz esperada, à paz conquistada. E, se eles vierem defenderei, defenderei, defenderei, defenderei até o final dos tempos, defenderemos todos, nos fuderemos na defesa, nos arrebentaremos e não cederemos espaço, nenhum espaço, nada, não voltaremos atras. Nada de passo atrás, ouviu Ernesto. Nenhum passo atrás!

Não quero saber das conseqüências, essa luta é final, a ultima das lutas que está só começando, levará muito tempo, três mil anos, sem trégua, sem acordo. Não quero saber das dificuldades, estou aqui para entregar a minha vida, porque não quero viver senão for desse jeito, estou aqui para me sacrificar, para me morrer, para me fuder todo, para me entregar.

Quero lutar com facas, com espadas, com lanças, com mísseis, com foguetes, com o que tiver na mão, para deixar claro para todo o mundo que não pode continuar, não pode continuar assim, os safados estão destruindo a terra, arrasando o Vietnã, só ver aqueles meninos correndo pelas estradas com as bombas de ultima geração caindo sobre as cabeças, nojentos, desgraçados, lutem como homens, filhos da puta, não quero saber de trégua, venham lutar, venham a mim, filhos da puta, desgraçados, tirem as patas do Vietnã.

Morrer é fácil. É muito fácil. é facílimo. Satisfaço a todos com a imolação. tocar fogo as vestes atrapalhar o jantar, com um monge queimando, desgraçados, filhos da puta, venham lutar, vamos lutar quero dar porradas, nada de imolação, venham para a luta, safados.

Estar para o povo. Não me importo comigo. Podem me matar logo. É um favor, filhos da puta, vai dar choque na puta que o pariu, safado, lacaio, carrasco.

Quem sabe o que vai acontecer? O que vai acontecer no futuro? O que você está fazendo? Quem te mandou aqui? Aqui é a cova do Monte Cristo. Estou preparando a minha vingança. Vou pegar vocês todos, ouviu safado. você que está ai torturando. Vou pegar vocês todos, a minha vingança, espera para ver. Vou te colocar pendurado, e enfiar palitos de fósforos nas unhas. Vou apagar charuto no seu peito. Vou te dar choques na saco e dentro do cu. Ouviu safado? Vou te dar bolos nas plantas dos pés e bofetadas na cara. Vou te afogar numa barrica de aço galvanizado. Vou te arrancar os pelos com uma pinça. E as unhas com um alicate. Ouviu filho da puta. Deixa eu sair daqui. Deixa a gente invadir La Paz. Vamos botar aqueles generais de merda para lavar as escadas do palácio!

Mas nos porões dos palácios estão os prisioneiros, enquanto nos níveis mais elevados tudo é luxo, luz e festa. Tocam musica, um quarteto de cordas, uma fuga. Ou seria uma orquestra, com trombetas, com coro de vozes celestiais, com órgão, profundo que faz vibrar os ares por todos os lado, anunciando os bons tempos de fartura, o ano novo, o Cristo, o oratório de Natal de Bach? O som penetra em todos os buracos e frestas das paredes até chegar aos teus ouvidos, você pendurado como um frango. Ou será a morte que chega com uma promessa de libertação, trombetas que vibram, anjos que cantam, para ti, somente para ti? Ti, ti, ti, ti, ti que daqui a pouco não vai mais existir, que já não existe, que nunca existiu, que passou pela terra sem rastro, sem família, sem amor? Amor é tudo que tenho? Quem é esse eu que tem? Traga-me aqui. Esse eu que sofre. Quem está com medo? Traga-me numa bandeja, a sua cabeça. Ou o que está dentro da sua cabeça. Traga-me aqui esse patife desse eu. A dor é suportável. Fico aqui por uma eternidade. Não tenho raiva. Queria te beijar, meu torturador, dar a outra face, todas as mil faces que tenho, te entregar todo os meus eus, se você me livrasse deles estaria me fazendo um grande favor. Respirar, absorver o ar junto com o sofrimento, manter a fogueira acesa, porque não se sabe o dia de amanhã, manter-se vivo, porque é bom sorver a vida até o ultimo momento, como uma taça de champanha, até o ultimo grão de arroz, tirando os sete que dediquei aos meus ancestrais, ou ao velho Buda, que está parado na porta do paraíso olhando a humanidade sofredora e esperando entrar o ultimo sofredor, só então ele entrará, só então transporá as portas do paraíso, porque esse é Buda; nasceu para sofrer, fugiu do palácio onde os servos lavavam as escadas para ele, onde tudo era festa e coros de vozes celestiais que outro paraíso ele queria? Ele queria? Ele não queria nada, nada com o que se preocupar, ele abriu mão de tudo, para não se preocupar, para não ter que tomar conta de suas posses, para não ter que criar o seu filho, para não ter que escutar reclamações de sua mulher, era descansado esse Buda, que passou nove anos de mortificações, até resolver relaxar. Não precisa se preocupar, meu amigo; fico aqui por um tempão; não ligo para o sofrimento físico. O físico é sempre sofrimento, enquanto o espiritual é sempre a dor verdadeira. A dor é a ponte entre o corpo e a alma. Vocês estão atacando meu corpo, mas na verdade vocês querem me atingir na alma. E a minha alma, vocês não vão encontrar. Porque ela se foi. Se foi para o nirvana. E isso é maravilhoso. Portanto, fico aqui por muito tempo, nessa batida vou até o Havaí, devagar, piano, piano, step by step, but always well, como dizia o lorde inglês ao arrancar a pele do leão, ou serrar as presas do elefante, ou o rei da Bélgica quando mandou cortar as mãos dos congoleses que não cumpriram suas cotas de látex de borracha. Hand by hand. Com muito amor pelo que se faz. Trabalho compassivo é isso, lições de civilidade européia para todos; vou ensinar esses negros a trabalhar. Vou botar os elefantes para carregar pesos. Vou arrancar eletricidade das águas do lago Titicaca. Ou do rio Nilo. Ou das ondas do mar. Vou espalhar a felicidade pela terra. Deixar todo o mundo satisfeito. Temos uma missão nessa terra. Mesmo que tenha que cortar umas mãos, ou fuzilar uns indianos, ou enforcar uns vadios, ou uns marinheiros rebelados com a chibata, como João Cândido, que depois virou integralista. Jogá-lo num buraco e tascar cal viva em cima. Como é que você escapou, mano velho? Para meditar temos que arrumar um aposento confortável; como este, confortável e silencioso: apenas uma música agradável, de trombetas e de vozes celestiais, o oratório de natal. Depois a postura. espinha ereta, mas aqui qualquer espinha serve, desde que você ainda a tenha. Depois se concentrar na respiração. Pensar além do pensamento. Arrancar as ervas daninhas, adubar a terra, irrigar. A semente brotará ao seu tempo. Não se pode apressar o surgimento da planta. Ela aparecerá no devido momento. Pensar além do pensamento, é pensar como se não pensasse. Não se pode evitar o surgimento das idéias; elas são como nuvens que passam ao sabor dos ventos; mas não se deve reter os pensamentos, nem alimentá-los com o fogo dos desejos. Deixá-los ir como nuvens que passam. E então, num segundo, terás a ausência de pensamentos; poderás enxergar a realidade nesse instante; tens que prestar atenção; senão perdes o momento. Como perdes um trem. Ou ficas preso pelas pernas, como agora. É um favor; é uma grande oportunidade. Estar. Só estar. Como Anselmo, pendurado na rede, estando, esperando, a grande oportunidade. De sentir dor. O que assusta não é a dor presente. O que assusta é a dor imaginada do futuro? Toda dor é a promessa da dor do futuro? A certeza de que a dor não acabara, nunca. E que ela será sempre maior. Porque essa já passou; e eu agüentei. Mas o que virá agora? Que nova bosta esse cara está arquitetando? Ele que imaginou, novas formas de infligir dor? Ou fez um curso, um treinamento; um curso de graduação, um mestrado, um doutorado, um pós doutorado? As formas científicas da produção da dor? O controle do paciente no pau-de-arara? Doutor Lobo-mau andou por aqui? Doutor Mengele? O gênio dos óculos de aros metálicos? Aquele que trás óculos no nariz e o inferno no coração? Ou o inferno no nariz e os óculos no coração? Ou o nariz no coração e o inferno nos óculos? Isso aqui é uma sala de cirurgias? Com assepsia perfeita? Uma mesa com instrumentos brilhantes. Aparatos eletro-mecanicos. Só está faltando o anestesista para me tirar do ar. Ou para garantir que vou sempre sentir dor. Um anestesista ao contrário. Uma ciência às avessas. Fico aqui como poderia ficar em qualquer parte. Isso não intimida. Ou intimida? Pra que serve esse alicate aí? E essa serra? Vão fazer uma trepanação? Vão me esmagar os bagos? Queria estar com Gândi aqui. O que iria fazer? Será que pegaram ele alguma vez? A grande alma perdeu a sua dignidade? Se manchou, se rebaixou, pediu por compaixão, chorou, gemeu? Posso gemer? Pode, pode, Anselmo. Posso, posso, eu. Posso gemer de verdade? Posso gritar? Gritar alto, para espantar todo o mundo, urrar como um animal, gritar como um porco sendo sangrado, ou um escravo no tronco, ou um marinheiro do Potiomkim? Pode.

Desgraçado, filho da puta. Ai, tira essa merda daí. Não vou falar nada, só vou te xingar, filho da puta, safado. Chega aqui perto pra eu te cuspir. Nenhum passo atras, seu filho da puta. Somente passos pra frente, vamos avançar no rumo de La Paz. Ernesto largou o palácio. Renunciou ao poder. Não deixaremos morrer. Defenderemos para sempre. Ele está por aí. Deve estar cavando a sua fuga. Deve estar no meio dos matos. Já deve estar longe. Vai voltar com um exercito de cem mil homens. Prontos para a luta. Ai, seu filho da puta. Deixa eu te pegar. Quando eu te pegar. Ernesto já está morto, o Che já está morto, o que queres mais de mim? Ele vai voltar com um exercito invencível, varrer os trogloditas da face da terra, limpar a terra da coisa suja que és, o império de mamutes, de mamutes industrializados, desgraçados vão destruir a terra, vão envenenar a terra, como já envenenaram a cabeça das pessoas. Podes rir, filho da puta, um dia você vai estar aqui, no meu lugar, o dia da caça, o dia da graça, o dia do redentor. Por ora, agüento, pode torcer a manivela, filho da puta, pode apertar o torniquete, aí. Mas eu agüento, porque sou muito macho, queria te ver aqui no meu lugar, um dia ainda vou ver, mas isso não vai acontecer, vamos meter uma bala na tua cabeça logo, sem sofrimento, no paredão, na rua do paredão, em Wall Street, vai ser lá, vai ser lá, justo na barriga do jacaré, na barriga macia do jacaré. Posso gritar, não tenho vergonha de gritar, é grito de macho, é grito alto de macho...

Posso gritar? Posso gemer baixinho, para ninguém perceber? Que estou chorando; chorar sem lágrimas, deixar a dor sair pelos poros como um suor fedido. Enquanto mais dor vai entrando, pelos buracos naturais e pelos buracos artificiais abertos pelos instrumentos de tortura. Gente especializada. Nem marca vão deixar. O legista não vai encontrar nada. Será que vão queimar o corpo? Ou jogar numa vala comum, com outros prisioneiros, como aqueles buracos dos campos do tipo Auschwitz; os tratores empurram o monte de corpos, que vão rolando, até cair centro da cova. Vai ver o forno crematório não dava conta de tantos corpos, tantas carnes impermanentes mas que permaneciam o suficiente para incriminá-los. Os dignos oficiais de farda elegante, com a caveirinha no casquete. Suas esposas, gordotas e louras em algum bangalô onde não se sente o cheiro fedido da carne doente, ou a fumaça de cabelos queimados, cheiro ruim da morte provocada. Varrer da superfície da terra o que não querem ver, não querem tocar, não querem sentir, pasteurização universal, igual o fim do mundo pelo fogo. É um crime o que está acontecendo? As leis do julgamento devem estar escritas em algum lugar, gravadas nas tábuas de pedra, das boas leis imutáveis com o tempo, algum dia a sentença será executada. Quero chorar, não tenho lágrimas! Se eu chorasse, talvez desabafasse! Nossas roupas comuns dependuradas; a vala é que vai ser comum; roupa suja e laranja bichada, como bandeiras desfraldadas, parecia um estranho festival, que o apito da fábrica de tecidos, joga fumaça pelas chaminés, das telhas de zinco, da gata em teto quente, dos furos por onde entra a luz da lua, pisando distraída, no dedo que aponta o chão, não confunda a lua com a calça, e um cântaro cheio de água que refletia a lua e caiu ao chão, se espatifando, chorar o leite derramado, chaminés por onde os cadáveres vão ao céu, grossos rolos de fumaça escura, que Eisenstein rodou no filme ao contrário para fazer passar o tempo para trás, o leão se alevanta, das ocidentais praias lusitanas. Mas que desgraça! Mas que vergonha para a revolução, a cabeça de Danton sendo erguida para o povo ver e se rejubilar! O rei é morto, viva o povo! Agora estamos livres! Podemos fazer um belo carnaval, nos vestir de nobres, como Luís e Maria Antonieta, evoluir pela avenida, com pompa, graça e elegância, muito mais do que os nobres de verdade, apesar da pele escura, porque graça é o que não nos falta, cabrocha! E graça é o que temos todos. Para dar e vender. Como ela vai toda requebrada, parece cabrocha desmiolada! Mas fuja, a polícia está ali... Com jatos d’água e areia. Vamos jogar bolinhas de gude para derrubar os cavalos da tropa! Vamos para a porta do Jotabê, na avenida, rápido, sem perda de tempo, vamos para a frente da embaixada americana, vamos até o Calabouço, pegar o corpo do Edson Luís, vamos carregar ele pela avenida. Vamos receber a seleção, com uma bandeira enorme, vamos. Será que eles tem atestado de óbito para todos esses corpos? Para essas covas, essas valas comuns? A guerra suprime todas as necessidades legais? Estado de sítio, toque de recolher, leis de exceção. E quando a exceção vira regra? Os franceses fuzilaram um regimento inteiro, em 1918; por confraternizar com o inimigo. Os generais franceses; os mesmos que imaginaram a linha Maginot; os mesmos que massacraram a Argélia, o Vietnã, em 1954. Aquela refinada educação de pessoas brutas: vá pra puta que o pariu, mon chere! Regras de etiqueta para esconder o fato de que querem se engalfinhar, se matar. O pendural, o pendural de madeira. O cara está voltando; acabou o recreio, mon cher; acabou o café, mon ami; vá se fuder, mon cher; me deixe em paz, mon amour. O cara está voltando; meu semelhante, homem como eu, com todas as angústias humanas, será que ele apenas trabalha, ou será que ele acredita no que faz? Está fazendo o certo, está prestando um bom serviço ao mundo; me eliminando, aos poucos. Não vai tocar na minha alma; vai arranhar o meu corpo. E la’ vai. Tinha até me esquecido. Lá vai. Vai mais forte; taca o machado no tronco da imbuía; toca fogo no mato; põe escravo no tronco; o ferro e a carne são coisas que combinam; o aço das espadas combina com a cor do sangue. As armaduras se colorem de vermelho, e ficam belas. Vou jurar lealdade à rainha, de joelhos como ela gosta, e receber meu título de nobreza; depois beijo a mão cabeluda do papa, e ganho um pedaço da América. Para fazer o que bem entender; com a terra e tudo que ela contem. Como Napoleão, vou me coroar a mim mesmo, e fazer o que bem entender. Enquanto Buda abandonou o palácio; não se pode renunciar ao que não se tem. Ou pode? Abrir mão do potencial de conquista. Da capacidade de destruição. O cara; meu algoz, o homem que nasceu para me torturar. O que querem? Chega, conto tudo que quiserem. Assino, qualquer papel, assino um cheque em branco, qualquer confissão, qualquer testamento. Ou não? Agüento mais um pouco, dentro da linha Maginot, como um tatu na toca. Um texugo, de Kafka. Uma pena capital, escrita na carne; um processo; uma América para escapar; um castelo aonde estão os poderosos senhores; E então, mister K, vamos botar pra quebrar? Antes de virar barata? Sai barata que está dentro de mim, sai texugo da toca, sai ego miserável, morrer não é novidade, sofrer é próprio do homem, sentir dor não é tão insuportável assim. Só para a barata que mora dentro de mim. Vou anular tudo, com uma respirada; assim, dez, nove, oito, dois um, agora. A energia percorre a espinha curvada; a energia elétrica; ascende até o centro do coração, sobe rumo ao topo da cabeça, penetra pela reunião de todos os yangues, e explode como flor de milhares de pétalas, se abre numa explosão de vida; luz brilhante que clareia a sala escura; o bico de um sapato de couro, o anel no dedo mínimo, outro anel de formatura, é um profissional com formação universitária. Ah!, não é um ignorantão! Graças, graças. É só mais um coração que sofre, alguém que teve que pedir favores para arrumar um emprego público e que agora retribui a graça concedida anulando a própria consciência. Mas também pode gostar do trabalho; nasceu para ser carrasco, é a sua sina, o seu destino, veio ao mundo para fazer isso, tem que fazer isso para acertar as contas do passado; e arrumar um monte de contas para o futuro. Ou não? O homem mau dorme bem? Ganha bem, come bem, tem mulher e filhos e uma família adorável? Vai à igreja, se confessa, obtém o perdão? Ou só pensa na morte? E acha que matando se torna imortal? Que batendo, é invulnerável? Quero chorar. Chorar. Se toda a emoção saísse com o choro, para sempre, seria a paz. A paz dos corpos cansados. A paz dos corpos mortos. É muita sensação; não pode continuar por muito tempo. A sensação tem que acabar. Para ficar só a presença; como agora.

Os mesmos métodos; o mesmo plano; por todas as Américas, Ásias, Áfricas, Europas; Mais internacionais que o partido comunista... Que a Internacional socialista, que a igreja católica, universal. Um mundo, um sol, um universo, um progresso, um fuehrer. Toda a vida vivida assim; dentro da camisa de força.

Urro de tigre ferido, apanhado nas redes, aprisionado. Quero sair daqui. Encontrar o Che. Aonde ele estiver. Nenhum passo. Absolutamente nenhum. Ficar aqui, por toda eternidade, escavando um buraco, com uma colher de sobremesa. A terra, que está logo abaixo; uma laje de concreto das boas. Segura as calças, e come milho, mastiga bem, para depois sair mais fácil, essa gororoba sem graça. Buraco escuro e umidade, limo verde nas paredes. Limo verde em mim. Já sou parte da parede. Vejo a vila, Lelé, e a escola. Tabuada, reguada, coisas fáceis de se levar. Vejo o Che, apoiado a uma arvore; fugir, correr, salvar a vida, arfando e engolindo o ar, como se engole um remédio precioso. Dizem que ele foi pego vivo; e depois morto por um sargento. Dentro de uma escola, ou um posto de saúde, para ninguém tomar conhecimento. Deve ter dito para o sargento fazer o que devia ser feito, sem constrangimentos. Sem ilusões, é chegado o momento. Será que foi assim? Já tinham o Che, e ainda precisavam de mim? Precisavam, tanto que estou aqui. Não me julguei tão importante. Uma cela só pra mim, que maravilha. Acham que sou perigoso, eu? Ficar, ficar parado, nenhum passo, absolutamente nenhum. Ou muitos passos para trás? Ficar parado. Apenas ficar.

Olhar o muro branco. Querem me mostrar em juízo? Não. É só a visita do capitão. Segura as calças, e anda, com os pés que tanto apanharam. Chão pedregoso do caminho. Nome? Endereço? Filiação? Profissão? Endereço comercial? Será que me lembro? Será que já tive todos esses atributos? Impressões digitais? Carteira de identidade e CPF? O processo, o maldito processo. Fico mais um pouco, meu capitão? Fico com prazer. Não saberia mesmo aonde ir. Olhar o muro branco é bom. Escutar os toques dos clarins, sem poder escrever uma sinfonia, como Mahler. Tá, tá, tátá, lá longe, ao lontano. O muro branco é suficiente. Nele se pode escrever qualquer coisa; e apagar; e reescrever, para sempre, como Bodidarma, Daruma, na China, com a missão. Nada de sagrado; traga-me aqui o eu que te aflige. Aonde está ele? Viu, não há nada com o que se afligir, porque não há ninguém para se afligir. Muito fácil de conseguir, é só se deixar levar, não resistir. Mesmo que apenas em um único momento, esse momento vale por toda a eternidade. É só olhar o muro branco; nove anos, no mínimo. E nove anos vale por um momento, que é igual a toda a eternidade. Porque é assim; e é maravilhoso.

Como as ondas que refluem. Lento, seguro, gradual. Já destruíram os opositores, não se precisam mais de ditadores. É contraproducente. Como vamos falar contra as ditaduras do leste europeu, se aqui no nosso quintal estamos cheios de ditadores? Direitos humanos para todos; papa polonês, secretário de estado também polonês. Preparavam o caminho para o que viria depois: sem oposição, desmontaremos as máquinas estatais; é o fim do nacionalismo. É começo da nova era. Um só plano; uma só diretriz, um só ideal, um só mundo, um só fuehrer. Um império para mil anos.