Uma breve narrativa de Dois Mundos
Num ranger de dobradiças a porta se abre.
Ao fundo, uma luz branca em uma sala sem móveis; no canto à direita um homem...
* * *
Eram nove da noite quando comecei o passeio, neste dia as ruas estavam turvas, as luzes dos portes estavam amareladas, algumas já haviam apagado por completo e eu como vigia dos sons de pratos e colheres a tinirem das casas e das meretrizes que esperavam seus clientes nas esquinas, passeava como quem não quer nada. Fui até o canto do muro onde o vento frio daquela calmaria não era mais denso do que a vontade do fogo de acender meu cigarro. Parei. Risquei dois, três palitos; puxei a fumaça com a força que tinha nos pulmões de meu corpo franzino.
O prazer de caminhar pelas ruas à noite, ver o que os carros e o barulho dos comerciais tiraram da cidade, nesse horário, envolvia-me: os que amam não dormem; os devedores não dormem; os que sonham com um mundo melhor deitam e descansam para um novo dia que nunca vem; os empresários preocupados com a falência de suas empresas tentam dormir; os poetas ficam encubados por entre os gradeados de suas janelas esquivando-se de todo o perigo que possa existir e lamentando-se pelas perdas que não tiveram e os que praticam seus delitos camuflam-se por entre as sombras nas vielas e becos; e eu, carregado de insônia, deslizo meus pés por entre as calçadas à procura da felicidade – na esperança de encontrar o alimento para minha solidão.
Depois de muito caminhar paro em um boteco, nele apenas duas lâmpadas acesas, uma na parte de dentro do balcão e outra fora. Na parte interna havia uma mulher, na faixa de uns trinta anos, e mesmo com uma maquiagem bem forte dava-me a impressão de ter mais de quarenta anos, ela se aproximou e, de maneira bem macia, perguntou o que eu desejava, olhei dentro dos seus olhos esverdeados e vi neles o mesmo cansaço de ressaca dos meus. Dê-me alguma bebida, pode ser um rum, respondi. Não tivera notado de início a presença de um sujeito, sentado à mesa atrás da porta, mas de repente uma voz cortou o ar:
- Sente-se aqui, ele disse. Peguei meu copo e fui até sua mesa, cumprimentei-o apertando sua mão.
- Como você se chama? – perguntei.
- Henrique– respondeu com um ar de camaradagem, – e o seu?
- Glauco – disse, sentindo-me mais a vontade, enquanto sentava.
- O quê você veio fazer por aqui, está perdido ou está esperando alguém? – ele perguntou.
- Procuro o que o tempo tirou de minhas mãos!
- Então estou a falar com um poeta ou um filósofo? – voltou a me perguntar.
- Não, talvez estejas começando uma conversa com alguém que não teme falar o que sente! – minha voz num tom suave saía da minha garganta sempre rouca arranhada em uma lentidão.
Depois de um breve dialogo percebi que ele também estava só, e resolvi ficar à mesa, perguntei:
- E você o que faz?
- Eu?... Escrevo! – dei uma rápida olhada em seus olhos escuros quase fechados como de um asiático, o rosto arredondado com pequenas marcas de abscesso e sem barba.
- O que escreves? - perguntei, mas tinha quase certeza que ele escrevia romances. Contudo ele respondeu bem rápido antes que eu insinuasse qualquer coisa.
- Escrevo o pensamento das pessoas.
Olhei por entre o espaço que o copo fazia no momento em que eu o levara à boca e bebia em um só gole o álcool que a mim não saciava. Percebi de imediato que ele me dissera algo do fundo de seu ser.
- Tu és psicólogo? – perguntei. Senti que ele também me observava, e despercebidamente passei as mãos por cima de minha camisa preta para tirar algumas dobras e levemente cisquei com meus dedos as cinzas do cigarro que ficara na minha calça de brim.
- Hum, psicólogo, não, - disse pausadamente com ar de sarcasmo. – a psicologia só serve para aprender sobre a vida de pessoas, em outras épocas e outras circunstâncias e as atitudes tomadas por elas quando expostas à determinados fatores. Eu não quero saber isso.
- Então o que você é?
- Olhe, o principal problema das pessoas que eu já conheci é que elas gostam de denominar tudo. Porém, meu amigo, poucos contemplam o que denominam, pois denominar é explicar o inexplicável em uma palavra.
Então veio o silêncio depois de sua voz grave e rouca dar um reposta tão complexa, esperei que ele prosseguisse com o seu discurso, mas ele hesitou. Disfarcei pedindo a garçonete que me trouxesse a garrafa e a pusesse sobre a mesa. Logo depois ele falou:
- Você também escreve?
- Não. Eu escrevi há muito tempo e depois parei, – esperei um pouco e continuei. – quando fui ler o que tinha escrito, vi que não eram meus aqueles pensamentos e não havia nada de mim neles.
- É... Vamos beber, como diria Baudelaire: A Arte é longa e o Tempo é breve.
- Ah, a arte, a ficção mais grosseira da mente humana, criada apenas para justificar a incapacidade do homem de se perpetuar; foge, esconde-se nela, mas acaba agindo por instinto.
- Vejo, Glauco, que você não gosta muito de arte. – essa afirmativa que saía de sua boca deu-me a sensação de estar sendo entrevistado, mas não me importei com esse detalhe.
- Na verdade, gosto, principalmente, da pintura, mas...
- Mas...
- Isso tudo é criação puramente humana, para encobrir o monstro que há por detrás de um sorriso.
- Que monstro seria esse?
Tentei não incomodar-me com tantas perguntas, que talvez nos levasse a um diálogo muito longo. Utilizei o método mais rápido, dando-lhe como exemplo, perguntei-lhe para provar a anomalia que é o Homem. E mesmo que sua resposta fosse sim ou não. Em sua mente, ele saberia que eu estava certo. Perguntei.
- Você, Henrique, sempre é tão educado ou só quando ainda não tem intimidade com a outra pessoa? – rapidamente continuei num tom mais eufórico – não precisa responder, mas isso significa que tu és falso ou que tens personalidade dupla?
- Olhe, tu fizeste uma pergunta, mas com base em que tu responderas com tanto confiança que minha resposta seria um não? – as palavras saiam sempre apressadas embora bem definidas num tom sempre grave e irônico, – talvez com base nas outras pessoas, que não pensam como eu, e não agem como eu... pessoas que por um motivo desconhecido em circunstâncias que eu desconheço, responderam não.
- Minha intenção não era de subestimar sua resposta, mesmo assim você não terminou.
- Eu sei. Você está procurando em minha resposta a justificativa para dizer que a humanidade em geral se esconde atrás de máscaras. Mas não é bem assim como tinha começado. Sinceramente não queria entrar em um assunto que possa parecer monótono para você. Tudo, tudo, todas as formas de pensamento e de ciência são ficção. Meu livro não está concluído e possivelmente nunca chegue a concluir, até o dado momento da pesquisa ainda não encontrei nada que fosse instintivamente humano. Então o fato da arte ser puramente humana, ou não, eu não posso afirma sem sombra de dúvidas.
- Desculpe-me, - tomei de um fósforo e acendi meu cigarro, soltei a fumaça para o alto e voltei à cabeça em sua direção – Henrique, pouco conheço de você, talvez seja o álcool que faça o tom e voz alterarem, não se incomode. Deixe-me explicar, talvez tu não tenhas reparado, mas todo ser humano age por instinto, pois o instinto nada mais é do que a reação de auto-proteção do organismo vivo.
- É! Eu já pensei nisso, mas quando o ser tira a própria vida?
- Me refiro à proteção e não à vida. O escorpião é um bom exemplo disso.
- Ora, por que um ser tão irracional está no alto desta cadeia instintiva?
- Felizmente para o homem o escorpião não é irracional – falei, deixando sair do canto da minha boca um sorriso – ele só não raciocina com a mesma cadeia de pensamentos que estamos acostumados, além de não ter a mesma capacidade cerebral isso não significa que ele não pense. O escorpião se colocado em situação que represente perigo para ele, ao ver que não há possibilidades de fuga, sem hesitar, enfia seu ferrão contra o seu pequeno e esquelético corpo que fenece em segundos.
- Então o escorpião não quis proteger a vida e sim evitar a dor.
- Exatamente, meu amigo pesquisador de pensamentos.
- Interessante pensamento. – o vento fazia com que os seus cabelos grandes e embaraçados, caíssem sobre a sua testa, cobrindo-lhe parcialmente o rosto em quanto falava.
Segurei o copo e fui até a porta de entrada da alcova, olhei para o céu e estava estrelado, pensei há quanto tempo eu bebia, comia, dormia, mas não me sentia vivo; virei o copo em direção à minha boca e senti que aquele pensamento já se havia escapado, voltei e sentei.
- Henrique, e você? O que acha?
- Estou impressionado, onde você se formou, aliás, onde trabalhas?
- Nunca terminei os estudos, eu achava que aquilo que eles queriam que eu aprendesse nunca iria servir, olha que cabeça infantil era a minha, hoje, graças ao meu egocentrismo, não tenho uma posição de prestígio, se bem que essa foi a vida que eu quis. Respondendo sua pergunta, eu não trabalho, como não terminei os estudos, nunca fui aceito em muitos locais de emprego.
- Mas pelo pouco que conversamos você demonstrou domínio com as palavras e parece entender de vários assuntos.
- E o que isso importa, nós vivemos numa sociedade que tem regras, não posso fugir delas. Eu viajo por ai, um dia aqui outro ali. Pelo menos eu posso dizer que nada me prende.
- Assim como nada te pertence. – falou e senti insinuar que meu modo de vida era absurdo, mas não me irritei, muitas pessoas falam sem pensar coisas que não compreendem. Prossegui:
-E você, em que é formado?
- Eu sou em psiquiatria, mas não é grande coisa assim, pensava que ia descobrir algo novo, uma nova perspectiva, no entanto, lá ensinam apenas a padronizar as pessoas.
- A vantagem é a posição que ocupam como médicos de si mesmos.
- Posso dizer que é normal conviver com as diferenças, mas lembro, como se fosse hoje, a primeira aula. O professor fez questão de dizer que o amor não existia, nem o ódio, e começou sua aula falando de hormônio. Eu criticava muito os teóricos, era muito complexo, com fundamentos pouco convincentes, pura dialética.
- E agora?
- Sou pesquisador. –a calça de cetim escuro, a camisa de algodão branca, os botões cor de bronze, as mangas longas, mas dobradas à altura dos cotovelos davam àquele sujeito um toque de elegância.
- Mas você disse que não gostava de teorias.
- É, mas certas coisas fazem a nossa vida tomar rumos que não esperava tomar.
- Eu, quando pequeno, nunca tive fascínio por nada, a professora passava trabalhos de pintura e eu odiava pintar, passava de escultura com sabão, odiava transfigurar algo a sua imagem. Uma vez fiz uma escultura de uma pessoa correndo, todos pensaram que era apenas um ovo. – Henrique sorriu – parece engraçado agora, mas eu me senti estranho, para mim parecia óbvia a imagem, para os outros não passava de estorvo.
- E você o que acha sobre a imagem?
- Se ti deres uma foto do sol e cinco tonalidades de amarelo. Será que você usará a mesma tonalidade que eu usei?
- Não.
- Então acho pouco provável que a imagem realmente exista como se vê. Pode até ser mais uma ficção, uma forma dimensional e multicolorida que sinceramente nada me agrada. E não comprova que o que eu vejo realmente tenha configuração própria, apenas que tem uma configuração reconhecível ao procedimento humano de interpretação.
- Já que estamos falando sobre imagem – fez uma pausa com que se estivesse indeciso – como então vê as coisas?
- Eu vejo como você. As formas definidamente geométricas não vão deixar de ser como nós a concebemos. Isso é inevitável, como é difícil ver as coisas de outra forma já que este é o modelo adotado e... Aliás, criado por nós. Sendo assim eu não posso elaborar um sistema de discernimento de imagens, pois estaria inevitavelmente sendo influenciado por imagens já existentes.
- Eu acredito que você não faz a mínima idéia do que esta falando! – ele me interrompeu.
- Eu não posso criar um sistema novo, pois o meu cérebro, assim como o seu, está lotado de memórias organizadas numa seqüência que chamamos de Lógica. Influenciadas pela matemática e física que, até o dado momento, são ciências exatas.
- Na hipótese de poder criar um novo sistema? – num tom de escárnio.
- Isso vai além da minha cadeia de pensamentos, assim como um cego não pode definir as cores por não possuir o instrumento da visão... A menos que este sofresse influência de um ser que fosse capaz de diferenciar, caracterizar e retransmitir com precisão a imagem ao cego. Então precisaríamos de um ser que fosse capaz intelectualmente para retransmitir parâmetros para um novo sistema.
- Ou seja, nunca vai acontecer!
- Não, que dizer que é uma dízima periódica.
- Se não me engano a dízima é infinita?
- De forma alguma, ela apenas não possui um final que conhecemos ou ainda não fomos capazes de chegar até o fim... O que eu estou dizendo é que para criarmos um novo valor devemos sair primeiro deste valor aproximado. Até que isso aconteça continuaremos acrescentando casas decimais.
- Tu não deixas de ser uma pessoa interessante, e cheia de idéias. Conte-me como foi sua infância, deve ter carregado debaixo do braço os livros de Sartre e Heidegger?
Olhando-o disfarçadamente não entendi por que o interesse. Contudo veio uma sensação de bem-estar, daquelas que só se sente nas primeiras doses de álcool, lembrei das coisas que havia feito e com elas a vontade de falar. Então lhe contei uma breve história:
- Na minha casa, meu pai falava-me que eu poderia estudar, mas sem influência nunca seria nada, isso servia de estimulo para lhe mostrar que eu poderia superá-lo, – pausa – mas não consegui... Ele queria que eu andasse com os rapazes de boa condição, conhecesse suas famílias, pois isso me seria útil no futuro, eu preferi andar com os meninos do bairro. Meus amigos eram fiéis uns aos outros, isso significava muito; podíamos não ter dinheiro, mas tínhamos união e criatividade, entretanto, isso também durou pouco, gradativamente nos distanciamos e deixamos de nos falar... A vida parecia estar cada vez mais longe do que eu recordava, e com o passar dos anos esse humor negro também veio a meu rosto e o sorriso que antes era grande agora pouco se via por entre os olhos que se demonstravam cansados em uma náusea de semblantes deprimentes.
Certas vezes sobe em mim fragrância amena e quase imperceptível que oscila um leve toque de rancor. Não pelas frases de meu pai, nem pela traição de meus amigos, mas por assistir todas as formas de maldade humana e de interesse capitalista, e mesmo assim ainda não ser capaz de criar pilares para me sustentar, mesmo com toda a minha inteligência isso não foi suficiente para superar o sistema.
- Um pensamento pessimista, não. – interrompeu, talvez este monólogo estivesse tão pouco interessante.
- Pode ser, mas não creio que seja diferente do que eu disse.
- Você demonstra sempre certeza, contudo não pode mudar nada do que fez. Parece-me que você é uma dessas pessoas que já nascem pensando em morrer.
- Não, meu amigo, posso até não ser muito vivaz como se espera que uma pessoa seja, mas como lhe disse, não temo falar o que penso e nem contarei as coisas como se espera ouvir, com todos os aplausos ou com grandes tragédias. – em um tom quase surdo prossegui – contarei as coisas como foram e não há nada de heróico nisso.
- Mas, tu ainda podes mudar.
- Não há nada em mim que possa ser mudado, não sou uma máquina e por mais que queria as minhas ações levam sempre um toque de sentimentalismo e até quando eu perco fico feliz por quem ganha, não existe nada no mundo que se consiga mudar.
- Você me parece – falava enquanto tirava a madeixa que o vento empurrara para seu rosto – um daqueles filósofos naturais, fatalistas e conformados.
- Meu amigo pesquisador, o bom da teoria é que nela todos os problemas de um século são descritos em poucas palavras e resolvidos em poucas ações.
- Deve ser porque um homem teve coragem de escrever aquilo que outros quiseram esconder.
- Ou então inventar. – completei com a suavidade irônica das palavras. – não existe uma só ação pré-definida, todos os meios que hoje possibilitam que eu seja livre valem apenas para mim. Suas teorias e suas certezas só valem a você.
- Não estou aplicando uma Lei Universal, mas deve existir uma que te beneficie.
- Quando estávamos a conversar, recordo-me que falei que as pessoas gostam de denominar e não de contemplar. Todavia esse sistema evita que tenhamos em nossa mente uma quantidade enorme de informações que, segundo muitos cientistas, é desnecessária.
- Sim.
- Ou seja, esta ficção varia de pessoa para pessoa em maior ou menor grau.
- Explique melhor.
- Algumas pessoas são pintores, pois ali estão a criar a realidade a seu modo, outros são músicos e criam uma sonorização que pode parecer ruim para uns e boa para outros. Todavia têm pessoas capazes de criar um mundo inteiro e detalhadamente caracterizá-lo, dimensioná-lo; o céu ou inferno tudo que querem e o quanto desejam, são capazes de estar em qualquer lugar a qualquer hora, de ser quem quiser e de conseguir o que quiser.
- Isso é loucura.
- Pode até ser...
- E se isso fosse verdade, como essas pessoas saberiam que o que elas criaram não foi apenas uma ilusão.
- Elas não saberiam nunca, caso contrário não seriam capazes de criar.
– E você será que é uma dessas pessoas?
– Todos nós somos. Assim como o paraíso, assim como Deus, isso tudo é uma criação nossa.
– Já chega dessas estórias. Vamos falar a sério, Glauco de Alencar, desculpe-me quase esquecia do primeiro nome., Jean. Vamos falar a sério! – o tom foi irônico
Fiquei assustado, como esse sujeito que eu mal conhecia sabe o meu nome completo. O que ele está escondendo?
– Como tu sabes meu nome, eu não me lembro de tê-lo dito a você?
– Glauco, tu chegaste ao assunto que estava procurando a meses! A criação fictícia, que conversávamos agora a pouco. Você, Glauco, infelizmente é uma dessas pessoas. – ele falou num tom que saía da camaradagem em direção ao agressivo.
– A nossa conversa termina aqui se não me disseres como sabes meu nome?
– Glauco, entenda, - falou novamente em um tom grave e veio em mim a sensação de que ele estivesse bêbado. – aqui é um hospital e você não está cooperando.
De repente as luzes do bar ficaram mais fortes e apareceu a porta dois sujeitos que não eram comuns àquela hora.
– Henrique, eu não sei o que deu em você, mas procure se acalmar, – chamei a garçonete. Não compreendo porque você está tão alterado?
– Glauco, pare, entenda, estou tentando há meses ser paciente e parece que você não está progredindo, teremos que mudar o método.
– Garçonete venha rápido, alguém por favor, preciso de ajuda!
– Pare com isso, a garçonete não virá, você não percebe, isso não é um bar. Ele fez sinal para os dois sujeitos que estavam à porta para fecharem-na.
– Você está em tratamento, precisa se curar.
– Não Henrique, eu estou bem, minha vida eu levo à minha maneira. Você não pode mudar isso, como eu não posso mudar a sua.
– Glauco, tudo que você está fazendo não existe.
– Não podes dizer isto, com quais provas tu me mostras que o que eu vejo não existe! Porque eu não poderia dizer o mesmo de você, que você está louco e não eu?
– Eu sou psiquiatra e seu médico.
– Talvez, mas eu não sei mais o quê é verdade ou mentira. Eu poderia dizer que você está inventando isso tudo. Por favor – em um grito desesperado - alguém! – onde está a garçonete, talvez seja uma emboscada?
– Enfermeiros não o deixem sair!
– Larguem-me, você não faz idéia do que está fazendo. Tudo isso é um criação sua, é uma doença apenas sua. Deixe-me!
– Se você não calar teremos que anestesiá-lo, acalme-se!
– Você pode me prender, mas não pode me enganar. Não mintas, tudo é falso, assim como a vontade que tens de que seja verdadeiro, tudo é ficção, o mundo é uma ficção, abra os olhos, por que fazes isto, não, não, não, ah...
– Apliquem-no o sedativo.
– Não...
* * *
O homem caí novamente em um sono profundo.
O ranger das dobradiças é sinal que a porta se fecha... Pouco se sabe sobre a verdade, talvez seja o que vimos, ou escutamos, ou nada disso é verdade, nem o que sentimos ou o que queremos sentir, quem sabe sejamos formigas seguindo a trilha, talvez sejamos deuses perante as formigas. As luzes se apagaram e os cadeados trancaram um mundo e abriram outro.