A praça

À noite estivera sonhando com o assassinato de certa menina. Fora ele quem havia te matado. Não sabe se com uma faca ou se com tiros de revólver. Mas de certeza, tinha a visão do seu braço esticado, formando uma linha paralela com o chão e em sua mão direita o objeto do crime, cintilando e deixando a par das vistas de todos, a sua profunda malignidade. Estava duro como uma pedra e seus sentidos estavam muito longe do que é concreto e tangível.

Ficou durante uns dois minutos nessa posição, sem tomar-se conta da realidade ou sem que ninguém viesse cobrar-lhe satisfações pelo que havia feito. Todos olhavam-no apavorados e céticos sobre a sua presunção. Ninguém ousava dizer-lhe nada, pois sabiam que ter uma entrevista com um assassino logo depois que o mesmo comete o seu assassinato, é demasiada falta de neurônios que funcionem na cabeça. Por isso, todos permaneciam imóveis, não obstante, impassíveis, contemplando, boquiabertos, o homem, também impassível, que parecia desacordado de olhos abertos. De repente, voltou a si. Gestos agigantados, o tornavam mais tenebroso e faziam com que todos o temessem mais ainda. Girava de um lado para outro, mantendo o seu corpo preso num mesmo eixo durante todo tempo, intimidado pelo fato de ter vários olhos a lhe mirar. Girava louco com a cabeleira negra média, porém abundante e lisa escorrendo-lhe integralmente pelos olhos. Sua tez estava um pouco enrubescida e perceptivelmente molhada. Suor este que formava sulcos adelgaçados que se estendiam por todo rosto, deixando com que algumas gotas lhes entrassem nos olhos. Se ardia, ele nem percebia, pois não esboçava nenhuma aparência de dor, tampouco passava os dedos ou os nós do dedos nos olhos. Só permanecia com os mesmos esbugalhados e congelados em todos os rostos, como se cada um tivesse alguma coisa para falar-lhe. Então, quando caiu em sanidade, começou, por conseguinte, a impor suas sentenças.

- Não chamem a polícia! – elucubrou de maneira forte o homem. – Sei que vocês podem estar achando estranho o fato de eu ter matado esta menina, porém sou obrigado a vos dizer que todos nós estamos sujeitos a isso. Eu não tenho culpa.

- Mas você matou uma menininha inocente que nem te fez nada. Como você pode ver alguma razão nisso? – falou um velho miúdo que acompanhara a cena do crime.

- Como você pode ter certeza de que ela não me fez nada, se você nem sabe quem eu sou, o que faço, sem nem saber um só trecho dessa minha infeliz vida? Eu sei pessoal, é estranho mesmo eu fazer isso, é muito estranho, mas todos nós somos estranhos, está tudo meio estranho mesmo!

Os seus olhos pareciam desesperados, estavam esbugalhados e com um tom insano. Ele suava bastante e, os seus trejeitos automáticos, deixavam-no com uma aparência de louco. Saiu correndo em direção a um jovem que assistia tudo aquilo encostado num poste. Puxou-o de onde ele estava encostado e segurou-lhe o braço com incrível força, amarrotando, desta maneira, a vestimenta do rapaz.

- Vejam este daqui! Eu poderia acabar com a vida dele agora mesmo, num piscar de olhos! Vejam, vejam! Minha arma está prestes a matá-lo – nem ele nem ninguém conseguiam distinguir ao certo o objeto que trazia nas mãos, brilhava muito. Era impossível dizer ser um revólver, pois não deixara no corpo da menina nenhuma cápsula de bala. Presumir ser uma faca, também era um fato errôneo, já que não tinha ficado nenhuma espécie de marcas causadas por esse tipo de arma branca no corpo da garota. Mas podia-se dizer, abertamente, que havia uma arma, pois a menina estava estirada sobre a calçada de uma casa e sua cabeça estava sangrando. E ninguém sabia de onde aquele sangue saia, como ele brotava, já que não havia cavidades no epitélio da vítima.

- Este rapaz está me dizendo não verbalmente, mas com o olhar, que sente muito medo. Eu vos pergunto: por que deixá-lo viver? Digam-me! Digam-me... – o rapaz sentia, de fato, muito medo. Não era pra outra, quem não iria sentir medo estando sob a guarda de um assassino louco? E este medo aumentava de acordo com que aumentava, também, a gravidade da voz do homem. O rapaz gemia, porém não arriscava palavra.

O velho que havia falado da primeira vez, tornou a falar:

- Todos nós temos medo, homem! Ora, estamos na condição de viventes: heterótrofos, liberdade, expectativas, malogros, morte, amor... Isso tudo, de certa forma, nos só traz medo e intranqüilidade. Mas da mesma forma que nos traz medo, nos traz, também, coisas boas. É como uma droga: quando usamo-la sentimos imenso prazer e satisfação, entretanto, quando não temos mais o dinheiro para comprá-la ou vemos alguma pessoa triste por estarmos usando aquilo, nos sentimos bem pra baixo. Ninguém pode manter-se em equilíbrio emocional durante todas as horas de todos os dias. É salutar que variemos os nossos sentimentos, que possamos proporcionar outras sensações para os nossos sentidos. É bom descobrirmos que a vida vai muito além de uma alegria forçada, e que precisamos, em certas horas, de momentos de pura escuridão e tristeza. E, no mais, você ainda está submetendo o jovem a uma situação de eminente e visível risco, garanto que se fosse você, mostrar-se-ia tão ou mais temeroso que ele, assim, também, como se fosse eu no lugar do mesmo.

- Vejo que apesar de velho, você é destemido. Fala como se tivesse o domínio dessa situação. E até dou créditos para as suas conjecturações, embora seja difícil, para mim, aceitar de maneira total o que você falou. E acho, também, até por motivos de educação, que mereces ter uma réplica tão boa quanto foi sua tese. – falou isso tendo o pescoço do rapaz envolto no laço que formava os seus braços. Trazia também certo sorriso de sarcasmo, que ornamentava perfeitamente o seu deletério.

– Façamos um teste, então, com este rapaz para ver se ele realmente merece viver! – sugeriu o velho, um pouco pensativo. – Bem, não é nada difícil e que ponha em risco sua guarda sob este homem. É bem simples e até interessante: vamos pedi-lo para simplesmente despir-se para todos nós, ficar completamente nu. A depender da atitude dele, poderemos julgar se ele merece ou não levar adiante sua vida. Só conhecemos a alma de um homem, quando este está completamente nu. E posso dizer-lhe com franqueza que isso não é uma tentativa de poupar a vida deste homem, mas de vermos se ele, sob uma situação de risco, consegue pôr em ordem os seus fluxos de consciência e sabedoria.

- Vamos, dispa-se! – falou o assassino, ora, olhando o velho, ora, voltando à cabeça para o rapaz. – Dispa-se... – tornou a pedir o homem em tom ameno, ainda olhando os dois quase que no mesmo instante, sem que a cabeça parasse de se movimentar.

Mostrava-se já um pouco extenuado em virtude dos vários acontecimentos, aos quais, em todos eles, sem nenhuma exceção, serviu de protagonista. Encontrava-se um pouco distanciado do jovem; cerca de uns quinze metros. A multidão que se formara, motivada pelo tom grave e altivo com que o homem elucubrava, abria-se de maneira quase que perfeita ao redor do velho, do rapaz e do assassino, todos meio temerosos, porém as suas abelhudices os encorajavam a ficar, e ficaram.

- Vamos, seu medroso, mostre-se para todo mundo! O que temes? Posso garantir-lhe que as moças que aqui se fazem presentes, não me recordam nada de virginal. – e ia falando isso acompanhando, abruptamente, o traçado oval do círculo humano que havia se formado. – Mostre-se logo, rapaz, teme mais que todos o vejam de colhões à mostra que o fato de perder a própria vida? Isto é uma infâmia.

O rapaz começou a desabotoar a camisa. Botão por botão da sua blusa de linho. Todos o acompanhavam, desenxabidos, por verem o sensaborão que ia se tomando os fatos. Fato é, que, diante de todo desfecho presente, muita pouca coisa era possível de se fazer. Todos estavam tão vidrados no que se sucederia que, nem da polícia lembravam. Continuava a desabotoar-se. Terminado o trabalho com a camisa, e já clareando a todos com a palidez do seu corpo magro, passou, sem demora, a despir-se da parte de baixo. Começou por desabotoar a calça, passando, rápido, a descer o zíper. Logo depois desceu a calça, deixando aos olhos de todos a imagem de suas também brancas pernas. A partir daí, massificou-se. Mover-se, tornou-se impossível. De tal maneira, que, mesmo com toda a pressão psicológica que se sucedeu por parte do homem, ele não esboçou nenhuma atitude, deixando a cargo do destino, decidir o que iria acontecer com ele.

Parado, também, o velho acompanhava tudo. Conjeturava em pensamento. Olhos altivos, porém, distantes. Esquecido, talvez, de si; esquecido, decerto, das horas.

Só saiu da sua posição, quando, ao ver o homem, já sem paciência, correr com seu objeto em punho na tentativa de arremetê-lo sobre o garoto. Ao ver a atitude do homem, saiu de encontro ao mesmo, e, um tanto nervoso, disse-lhe tentando pôr lógica aos fatos:

- Calmo rapaz! Por que matá-lo, se este se mostrou estupefatamente bravo? – falou o velho empossado de certo idealismo e de razão no que falava. – Será que não pode perceber a atitude de bravura deste? – começou a conjecturar. – Veja bem, se o rapaz tivesse tirado integralmente a roupa, mostrar-se-ia um perfeito medroso, porém, não largou mão de sua bravura ao manter-se de cuecas levantadas. Ele poderia muito bem, como forma de satisfazer as suas vontades, que é quem tem todo o domínio da situação, livrar-se de todas as roupas e, talvez, livrar-se, mediocremente e sem honra, de você. Mas não! Optou por fazer o mais inviável e difícil, não rebaixando sua cueca. Contrariando, totalmente, a ordem do que presumíamos que ele fosse fazer. E isso, se me permite a conjectura, é a atitude mais em conta em tempos tão previsíveis, como é o nosso. Você ir de confluência com aquilo que parece mais viável e aprazível é, sem dúvida alguma, uma atitude louca. Eu mesmo não seria capaz de tal; talvez, por me faltar a coragem que, agora, sobrou neste rapaz. Veja, olhe bem pra mim, sou bem velho para ficar brincando com as pessoas. Poderia muito bem ficar falando meia dúzia de lamúrias a você, mas não! Optei, unicamente, pela lógica, colocando, assim, um pouco mais de emoção e razão aos fatos. Decerto, que você pode está achando esta experiência que os seus olhos agora foram testemunhas, um pouco evasiva; e, de certo modo, o é. Mas se pararmos para pensar sobre o que é a lógica, veremos que ela nada mais é que isto, uma busca por alguma resposta evasiva. Se algum matemático ou físico procura uma forma de resolver algum problema demasiado complexo e pomposo, é racional pensarmos que ele faz isso não para tornar as coisas palpáveis e fáceis, mas, para com o problema já resolvido, evadir para algo mais difuso, no entanto, bem mais complicado. Foi o que fizemos aqui: lancei uma maneira racional de resolvermos a questão da temeridade ou não do rapaz e, agora, depois de já evadirmos a primeira etapa, chegamos a uma etapa bem mais complexa que, no nosso caso, seria sujeitarmos o garoto as suas análises e conjecturas, deixando a cargo das suas emoções e noções de escrúpulos, a jurisdição do tal. E não acho ruim que isso aconteça, pois se o achasse não lançaria tal proposta. Mas vejo, claramente, que a melhor maneira de resolvermos os problemas que dizem respeito às emoções dos homens, é sujeitarmos, os mesmos, a elas. Sendo que, aqui, não só o rapaz e você, estão participando disso, mas eu e todos que aqui estão presentes, também estamos. E cada olhar, cada atitude de cada pessoa deste círculo, pode ser fundamental às atitudes e palavras que, respectivamente, fazemos e falamos. O importante, preciso deixar claro, é somente os juízos.

Ele acompanhou tudo que o velho falava atentamente, não deixando escapar nenhuma palavra que servisse de argumento contra ele mesmo. Durante algum tempo da conversa, o velho ficou segurando o seu braço, mas ao ver que o mesmo não iria fazer nada ao garoto, soltou-o e deixou com que o homem ouvisse tudo com o braço liberto. O tempo continuava nublado e parecia que não iria sofrer alterações, pois todas as lojas que se estendiam pela rua que rodeava a praça onde a multidão se encontrava, não haviam acendido suas luzes. Tudo permanecia imóvel, estático; ar bucólico de fim de tarde, onde era possível de se sentir um pouco de cheiro de terra umedecida. Fazia um pouco de frieza, mas ninguém estava vestido em roupa de frio, aliás, todos vestiam a mesma roupa, pareciam manequins de uma marca só. A distinção só era possível, pois os rostos, somente, eram diferentes. Vestidos de maneira diferente só se viam as peças que compunham aqueles fatos: a menina, vestida num vestido verde que se estendia até os seus joelhos e que possuía uma túnica para proteger contra o frio; o rapaz, vestido com sua camisa de linho e uma calça azul; o homem, vestido numa jaqueta de couro negra e numa calça também negra; e o velho, que vestia uma camisa de seda branca bem folgada e uma calça bege que, de tão grande, cobria-lhe totalmente o bico dos sapatos.

O homem meio em dúvida e pensativo sobre tudo que ouvira, calou-se por certo período de tempo, sentou-se no meio do círculo e pôs a cabeça por entre os seus joelhos, o que levou a todos pensar que ele estava chorando. E continuou no seu fechamento, sem que o mundo nem ninguém pudessem ver resquício do que pensava. Deixando somente que o tempo nublado que arriscava chuva, lhe tocasse. E todo mundo silenciou. Todos estiveram durante todo tempo emudecidos. Só se ouviam respirações sôfregas, palpitar de corações acelerados, bocejos de hipocondríacos; olhares tão duvidosos quanto ou mais que o do homem, e alguma agonia para se ver logo o desfecho de tudo aquilo.

O velho segurava o rapaz, deixando com o seu braço direito se estendesse pelas suas costas até chegarem à outra margem de ombro do jovem. Ele tinha um olhar néscio, talvez não tivesse enxergando tudo aquilo ou seus olhos fossem incapazes de enxergar realidade. E ele olhava, olhava, olhava. E todos o olhavam, talvez com pena, tristeza ou outra coisa qualquer que significasse algo parecido com pena. Desprovido praticamente de todas as roupas, não arriscou colocá-las por, talvez, não ser tão corajoso quanto o velho dissera. Só permaneceu nos braços do senhor, esperando, enxabido, a deliberação do homem que permanecia sentado e pensativo.

Tocava à praça um mormaço friorento que começava a despertar em todos uma vontade de fim. O relógio, que ficava no patamar mais alto da igreja que se localizava na mesma praça onde se sucedia o ocorrido, havia parado desde o começo dessa cena toda. A menina continuava, com a sua túnica empapada de sangue, estendida no chão. O rapaz, aos braços do velho e desprovido de suas roupas, começara a chorar e pôs a cabeça de supetão ao encontro do dorso do senhor.

O homem resignou-se profundamente ao ver que as pessoas estavam desaparecendo aos poucos. Formou-se um turbilhão de gente à sua volta e todos diziam odiá-lo. Milhares de chicotes cingiam nas mãos ensangüentadas de uns e, a despeito do poder que ostentava no começo, todos começaram a levá-lo para um calabouço estendido às margens dum rio cheio de corpos. As lágrimas crispavam por seus olhos e sentira um medo incrível por ver-se diante de uma paisagem tão densa.

Tendo o relógio de cabeceira tocado às 05h40min da manhã, percebeu que enfim estava liberto.

Jean Maldit
Enviado por Jean Maldit em 16/04/2009
Código do texto: T1543087
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