DESAFIO LITERÁRIO - "MEIA NOITE E TRINTA MINUTOS": Duelo Imortal

 
O grito dela encheu a sala mas eu não ouvi. Ainda tinha a pulsação de seu coração em minhas entranhas e seu sangue viscoso borbulhando em minha boca. Depositei calmamente seu corpo no chão, observando a expressão de terror que estava estampado no rosto, já pálido pela morte.
Ela vestia uma lingerie vermelha, com a cinta liga da mesma cor. Houve uma época em minha existência em que eu ficaria enlouquecido com um corpo como o que ela tinha. Agora, somente o pulsar de seu sangue quente me excitava.
Alcancei a porta e ganhei a rua no mesmo momento em que o velho sino da igreja balançava lamuriosamente anunciando a transição de um dia para o outro. Eu somente precisava esperar, agora.
Eu vestia naquela noite um sobretudo negro, que me cobria até os calcanhares. Era tudo o que estava visível, além de meu rosto muito pálido, meus cabelos totalmente brancos caindo pelos ombros e meus olhos, azuis como um céu de verão que eu não via havia séculos. Mas eu não tinha tempo para qualquer pensamento fútil. Ele chegaria a qualquer momento.
E foi exatamente quando minha mão esquerda tocava o cabo dourado da minha adaga que eu senti sua presença. Um sopro gelado de vento percorreu a alameda vazia onde eu estava, parado, no meio da rua. A única luz presente no local, acesa em um pequeno poste à minha esquerda, se apagou abruptamente.
Os lobos começaram a uivar, anunciando que ele estava próximo. Sem que eu pudesse fazer qualquer coisa senti meu corpo sendo abraçado pela brisa congelante, que parecia ficar cada vez mais poderosa. Senti meus dedos se congelando, apesar do sangue ainda quente que agora corria em minhas veias.
E um momento depois uma dor insuportável invadiu-me, alastrando-se por todo meu corpo a partir da ferida que acabava de ser aberta em meu pescoço. Ele se materializou.
Vestia-se exatamente como eu, pelo que pude notar da posição em que eu estava enquanto o sangue saltava de meu pescoço para seus lábios sedentos, mas foi seu cheiro que me chamou a atenção, assim como fazia todas as noites.
Ele exalava um cheiro de morte, de trevas e dor, tão forte e intenso que os humanos não suportariam sequer sua proximidade. Mas eu suportava, todas as noites há exatamente trezentos e quarenta e nove anos, desde nosso primeiro encontro.
Quando sentia minha visão se turvar em direção à minha morte, consegui alcançar mais uma vez o cabo da minha adaga e, um momento depois, a lâmina fria refulgia languidamente em seus olhos negros antes de penetrar fundo em suas costelas, por baixo de seu braço esquerdo.
Ouvindo seu grito de dor eu caí de joelhos no chão frio de pedras. Enquanto tocava o ferimento em meu pescoço com as pontas dos dedos e o sentia fechar-se, olhei na sua direção.
Ele dera três passos para trás e me olhava atônito, com o sangue se esvaindo pelo largo corte deixado por minha lâmina certeira. Eu o vi passar freneticamente sua mão no ferimento, talvez tentando fechá-lo assim como eu fizera. Mas não tinha esta habilidade, este meu inimigo.
Mas eu cometeria um erro mortal se o subestimasse. A esta altura, após tantos combates mortais sem fim, eu já sabia que não era o sangue que o mantinha vivo, mas algo muito mais poderoso, mais intenso. E o que aconteceu depois provou que eu estava certo.
Rapidamente a expressão de pânico de seu rosto foi substituída por uma de sarcasmo insuportável e ele começou a rir. Seu riso foi lentamente se transformando em uma gargalhada tão poderosa que as janelas das velhas casas ao redor tremiam e logo as portas se soltaram das fechaduras e pendiam soltas em seus batentes.
Na total escuridão em que estávamos mergulhados, vi que ele começou a caminhar na minha direção. Chegou bem perto de mim, que ainda estava ajoelhado e, quando fiz menção de me levantar, senti sua mão fechar-se como uma morça sobre minha cabeça.
Um momento depois eu estava suspenso no ar gelado da noite, sentindo meu rosto ser esmagado por suas mãos de aço. A dor que me invadia era insuportável e eu sentia o sangue viscoso escorrer pelos meus olhos e meu nariz destruído por entre seus dedos, que se fechavam cada vez mais.
Sentindo que se aproximava o momento em que minha consciência finalmente abandonaria meu corpo, e extraindo forças do fundo de minha alma imortal, saquei mais uma vez da adaga dourada e, de um golpe certeiro, fiz o sangue jorrar livremente do pulso de meu inimigo.
Meu corpo bateu no chão ao mesmo tempo em que sua mão decepada. O grito que saiu de sua garganta mais uma vez encheu toda a alameda mergulhada em trevas, e eu sabia que tinha somente uma chance de sobreviver.
Eu senti naquele momento que a extensão dos ferimentos era muito maior do que eu esperava. Não só todos os ossos do meu rosto foram quebrados, formando uma massa disforme e ensanguentada, como meus olhos, língua e nariz estavam despedaçados. Meu próximo movimento tinha que ser certeiro.
E confiando mais em meu instinto sobrenatural apoiei as mãos no chão por um momento e depois saltei, com uma fúria que eu não imaginava restar ainda em mim. Um segundo depois eu estava agarrado aos ombros de meu oponente, com meu rosto inteiramente mergulhado em seu pescoço.
Não sei como consegui abrir o ferimento, mas o que restava de meus dentes rasgaram a carne gelada dele e minha boca se abriu ávida para receber o néctar ardente que me daria vida.
Eu senti o calor do sangue invadir meu corpo. Inexplicavelmente o ardor da regeneração avançou pelo meu rosto e em poucos segundos eu não sentia mais dor, apenas uma suave sensação de saciedade.
Afastei-me dois passos e olhei para ele. Meu oponente estava caído desajeitadamente no chão frio, seu rosto um pouco mais pálido que o normal e um filete de sangue escorrendo de seu pulso sem mão.
Após mais de três séculos eu o tinha caído inerte aos meus pés. A chance que eu esperara por tantos anos tinha finalmente se revelado a mim e eu certamente não a desprezaria.
Peguei uma terceira vez minha adaga dourada. Por um momento meu olhar se perdeu em seu reflexo, no cabo feito de ouro e entalhado com figuras e símbolos que eu não entendia. Meu criador me presenteara com aquela arma no mesmo ano em que eu havia sido criado. Era a única arma em todos os mundos por onde eu havia passado que era capaz de ferir aquele homem que estava agora caído quase morto à minha frente. Ela e minha sede de sangue.
Eu lancei a adaga para o alto e a peguei novamente, deixando a lâmina para baixo e um brilho frio passou por um momento pelo fio de metal ancestral. Ajoelhei-me ao lado dele e fitei seu rosto. Vi seus olhos se moverem por baixo das pálpebras já acinzentadas.
E quando levantei a adaga acima de minha cabeça e me preparava para baixar o pior de meus pesadelos aconteceu.
Naquele exato momento o som insuportável do sino da igreja tocou uma única vez. A brisa gelada mais uma vez invadiu a alameda, congelando uma vez mais todos os músculos de meu corpo.
Quando consegui olhar para baixo, vi que meu irmão não estava mais lá. De algum modo tinha sido levado para longe de mim ao soar do sino, como todas as noites há exatamente trezentos e quarenta e nove anos, desde nosso primeiro encontro.
Era meia noite e trinta minutos e meu tempo tinha se esgotado.
Limpei o sangue da adaga em meu sobretudo, levantei-me e caminhei lentamente na direção da cidade. Eu estava faminto.
 
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Fábio Codogno
Enviado por Fábio Codogno em 14/04/2009
Reeditado em 28/04/2009
Código do texto: T1539203
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