Vive la Liberté!
Vera acordou cedo e o marido resmungou ao levantar:
- Não ouse desejar bom dia! Jantar com teus pais é o auge da minha demonstração de amor por você! Não abuse! - Armando falava em tom de brincadeira e ela sorriu com uma ponta de compaixão.
O conflito resistia após quinze anos de casamento. Ela nunca entendeu os motivos que o levaram a perseguir o olhar de aprovação da sogra. Apenas dela, pois o pai de Vera era um sujeito pacato e calado. E o mais estranho: não por temperamento, pois quando iam ao estádio de futebol ou jogar sinuca, um outro Nestor surgia. Alegre e espontâneo, aquele senhor de cabeça reluzente parecia tirar férias de si mesmo ao gritar em francês: "viva a liberdade"!
Um dia, Armando não resistiu e perguntou ao sogro:
- Por que em francês?
Nestor respondeu sem rodeios:
- Ondina foi reprovada nesta matéria.
A frase soou como uma divertida confissão e os dois riram cúmplices.
A sogra era um capítulo à parte. Não poderia ser definida como uma pessoa difícil, pois isto a tornaria normal. A palavra impossível também não a retratava com justiça por ser leve demais. Talvez a língua portuguesa, tão rica e repleta de sentidos, não seja suficiente para classificá-la. Nada poderia se aproximar mais de uma definição publicável do que isto: Ondina era uma mulher enlouquecedora!
Uma semana antes de seu aniversário, Armando ganhou duas camisas da sogra. E sabia que estava em apuros. Naquele dia, conversou com a mulher:
- E agora? Estou perdido! Sua mãe fez de propósito!
Vera, admirada com o jeito aflito dele, minimizou a situação:
- Meu anjo, você tem prevenção com mamãe! Ela quis ser gentil!
Armando sentou-se na poltrona da sala e enterrou a cabeça entre as mãos. O olhar continuava fixo no tapete quando resolveu falar:
- Você não percebe? Ela sempre me deixa sem saída. Se usar a camisa azul, vai dizer que não gostei da branca e vice-versa! Deixa de ser ingênua!Tua mãe se pós-graduou em me atormentar.
Vera fitou o marido com a mesma expressão de anos: um misto de solidariedade e impotência. O que poderia fazer? Diferente da mãe, não apenas na aparência, sua personalidade se assemelhava ao jeito conciliador e calmo do pai. Cresceu acostumada a ouvir os comentários de que as semelhanças só não eram maiores por Nestor ser careca enquanto ela exibia com orgulho sua vasta cabeleira.
Pensou em uma forma de animar o marido e a expressão em seu rosto mudou ao anunciar a solução salvadora:
- Tenho uma idéia! Na hora do jantar você derrama um pouco do vinho na camisa azul. Pede licença e volta com a branca! Assim mamãe não poderá falar nada, afinal você terá usado as duas!
Armando balançou a cabeça num gesto de desalento. A ingenuidade de sua esposa poderia ser mal interpretada pelos mais sarcásticos. Depois de certa idade não ficava bem ser tão tola!
O homem, então, levantou-se e perguntou:
- Qual o segredo para ver as coisas com lente cor de rosa?
A mulher retrucou com ar magoado:
- Minha sugestão é muito boa! E nosso jantar será mais simples do que você pensa!
O marido demonstrava os primeiros sinais de cansaço ao responder:
- O mundo seria um parque de diversões se fosse feito de pessoas como você. Pena que neste parque sua mãe chegou antes e fez uma ligeira reforma. Tirou os brinquedos singelos e nos colocou no trem-fantasma!
Armando, impaciente, andava de um lado para o outro como se buscasse forças e elevou ligeiramente o tom de voz ao continuar:
- Você acha, realmente, que ela me daria a chance de sentar à mesa do jantar sem nenhuma farpa a respeito das camisas? Por favor, meu anjo, reconheça que sua mãe não veio ao mundo para facilitar a nossa vida! Principalmente a minha!
Vera tentava acalmá-lo:
- Tenha um pouco mais de paciência, Armando! Mamãe não vai mudar. Se fosse com a tua mãe, eu faria o mesmo!
Ele riu antes de falar:
- Minha mãe? Ora, você nem a conheceu! Como pode fazer alguma comparação? Como sabe o que é sentir isto, ano após ano? No começo imaginei que era ciúme do nosso namoro calmo e feliz, mas tua mãe permaneceu hostil. Veio o noivado e as frases envenenadas, os olhares desaprovadores, os silêncios pesados aumentaram. Depois o casamento. E aí, ainda acreditei: agora Ondina sossega!
Ela o interrompeu:
- Não seja cruel! Tenha compaixão! Você não percebe como mamãe é infeliz?
Armando encontrou na franqueza a coragem para dizer:
- Quem é mais cruel? Eu ou sua mãe que te inveja, mas não admite? E para isto me elegeu como o alvo da sua hostilidade! É mais fácil ser hostil a mim do que te invejar, afinal não sou filho dela!
Vera parecia ter sido atropelada pelas palavras do marido. Sentiu que estava tão distanciada dele que não o reconheceria mais. Por alguns instantes, a confusão. Depois tudo ficou claro e triste ao entender que não era mais uma questão de ressentimento com a sogra. Se permitisse, o marido se transformaria em um homem parecido com seu pai. E era uma sensação tão dolorosa quanto um soco na boca do estomago.
Enxugou as primeiras lágrimas porque as lamentações nunca a levaram a lugar algum e era preciso chegar no ponto que desejava:
- Você tem razão. E ter razão neste caso e nesta casa deve ser muito solitário. O que você pretende fazer com toda a razão que tem?
Armando sorriu para a mulher. Talvez não fosse tarde demais para eles. Tirou do bolso do casaco as passagens aéreas para aquela noite e as exibiu com uma alegria inesperada. Vera arregalou os olhos ao ver os bilhetes e apenas conseguiu dizer:
- Paris!
O marido lembrava o sogro ao gritar:
- Vive la liberté!
Vera acordou cedo e o marido resmungou ao levantar:
- Não ouse desejar bom dia! Jantar com teus pais é o auge da minha demonstração de amor por você! Não abuse! - Armando falava em tom de brincadeira e ela sorriu com uma ponta de compaixão.
O conflito resistia após quinze anos de casamento. Ela nunca entendeu os motivos que o levaram a perseguir o olhar de aprovação da sogra. Apenas dela, pois o pai de Vera era um sujeito pacato e calado. E o mais estranho: não por temperamento, pois quando iam ao estádio de futebol ou jogar sinuca, um outro Nestor surgia. Alegre e espontâneo, aquele senhor de cabeça reluzente parecia tirar férias de si mesmo ao gritar em francês: "viva a liberdade"!
Um dia, Armando não resistiu e perguntou ao sogro:
- Por que em francês?
Nestor respondeu sem rodeios:
- Ondina foi reprovada nesta matéria.
A frase soou como uma divertida confissão e os dois riram cúmplices.
A sogra era um capítulo à parte. Não poderia ser definida como uma pessoa difícil, pois isto a tornaria normal. A palavra impossível também não a retratava com justiça por ser leve demais. Talvez a língua portuguesa, tão rica e repleta de sentidos, não seja suficiente para classificá-la. Nada poderia se aproximar mais de uma definição publicável do que isto: Ondina era uma mulher enlouquecedora!
Uma semana antes de seu aniversário, Armando ganhou duas camisas da sogra. E sabia que estava em apuros. Naquele dia, conversou com a mulher:
- E agora? Estou perdido! Sua mãe fez de propósito!
Vera, admirada com o jeito aflito dele, minimizou a situação:
- Meu anjo, você tem prevenção com mamãe! Ela quis ser gentil!
Armando sentou-se na poltrona da sala e enterrou a cabeça entre as mãos. O olhar continuava fixo no tapete quando resolveu falar:
- Você não percebe? Ela sempre me deixa sem saída. Se usar a camisa azul, vai dizer que não gostei da branca e vice-versa! Deixa de ser ingênua!Tua mãe se pós-graduou em me atormentar.
Vera fitou o marido com a mesma expressão de anos: um misto de solidariedade e impotência. O que poderia fazer? Diferente da mãe, não apenas na aparência, sua personalidade se assemelhava ao jeito conciliador e calmo do pai. Cresceu acostumada a ouvir os comentários de que as semelhanças só não eram maiores por Nestor ser careca enquanto ela exibia com orgulho sua vasta cabeleira.
Pensou em uma forma de animar o marido e a expressão em seu rosto mudou ao anunciar a solução salvadora:
- Tenho uma idéia! Na hora do jantar você derrama um pouco do vinho na camisa azul. Pede licença e volta com a branca! Assim mamãe não poderá falar nada, afinal você terá usado as duas!
Armando balançou a cabeça num gesto de desalento. A ingenuidade de sua esposa poderia ser mal interpretada pelos mais sarcásticos. Depois de certa idade não ficava bem ser tão tola!
O homem, então, levantou-se e perguntou:
- Qual o segredo para ver as coisas com lente cor de rosa?
A mulher retrucou com ar magoado:
- Minha sugestão é muito boa! E nosso jantar será mais simples do que você pensa!
O marido demonstrava os primeiros sinais de cansaço ao responder:
- O mundo seria um parque de diversões se fosse feito de pessoas como você. Pena que neste parque sua mãe chegou antes e fez uma ligeira reforma. Tirou os brinquedos singelos e nos colocou no trem-fantasma!
Armando, impaciente, andava de um lado para o outro como se buscasse forças e elevou ligeiramente o tom de voz ao continuar:
- Você acha, realmente, que ela me daria a chance de sentar à mesa do jantar sem nenhuma farpa a respeito das camisas? Por favor, meu anjo, reconheça que sua mãe não veio ao mundo para facilitar a nossa vida! Principalmente a minha!
Vera tentava acalmá-lo:
- Tenha um pouco mais de paciência, Armando! Mamãe não vai mudar. Se fosse com a tua mãe, eu faria o mesmo!
Ele riu antes de falar:
- Minha mãe? Ora, você nem a conheceu! Como pode fazer alguma comparação? Como sabe o que é sentir isto, ano após ano? No começo imaginei que era ciúme do nosso namoro calmo e feliz, mas tua mãe permaneceu hostil. Veio o noivado e as frases envenenadas, os olhares desaprovadores, os silêncios pesados aumentaram. Depois o casamento. E aí, ainda acreditei: agora Ondina sossega!
Ela o interrompeu:
- Não seja cruel! Tenha compaixão! Você não percebe como mamãe é infeliz?
Armando encontrou na franqueza a coragem para dizer:
- Quem é mais cruel? Eu ou sua mãe que te inveja, mas não admite? E para isto me elegeu como o alvo da sua hostilidade! É mais fácil ser hostil a mim do que te invejar, afinal não sou filho dela!
Vera parecia ter sido atropelada pelas palavras do marido. Sentiu que estava tão distanciada dele que não o reconheceria mais. Por alguns instantes, a confusão. Depois tudo ficou claro e triste ao entender que não era mais uma questão de ressentimento com a sogra. Se permitisse, o marido se transformaria em um homem parecido com seu pai. E era uma sensação tão dolorosa quanto um soco na boca do estomago.
Enxugou as primeiras lágrimas porque as lamentações nunca a levaram a lugar algum e era preciso chegar no ponto que desejava:
- Você tem razão. E ter razão neste caso e nesta casa deve ser muito solitário. O que você pretende fazer com toda a razão que tem?
Armando sorriu para a mulher. Talvez não fosse tarde demais para eles. Tirou do bolso do casaco as passagens aéreas para aquela noite e as exibiu com uma alegria inesperada. Vera arregalou os olhos ao ver os bilhetes e apenas conseguiu dizer:
- Paris!
O marido lembrava o sogro ao gritar:
- Vive la liberté!