Aquela noite com Anita


 
          Apertei repetidas vezes o botão do elevador como se isso pudesse, de alguma forma, acelerar sua viagem desde o andar térreo até o último piso, onde me encontrava. Ali, no décimo nono andar, a janela no fim do corredor mostrava ao longe, na paisagem urbana, a noite escura engolindo aos poucos o fim de tarde. 

          O visor sobre a porta do elevador indicava, agora, que ele estava subindo: quatro, cinco, seis… Interrompida sua marcha, fiquei a imaginar porque, afinal de contas, alguém poderia demorar-se tanto em liberá-lo novamente ao movimento. Afinal, a porta de um elevador não oferece mais do que uma opção para quem está lá dentro. Ficou parado ali no sexto andar por quase um minuto, quando esmurrei levemente a porta à minha frente, na esperança que, lá em baixo, alguém percebesse que existiam outras pessoas que dependiam daquele elevador. O edifício contava com dois elevadores, mas o outro estava parado em manutenção. 


          Minha ansiedade não se justificava até porque, àquela altura, eu deveria sentir-me o mais relaxado dos seres do planeta, pois tivera um encontro maravilhoso com aquela mulher fantástica e insaciável. Creio que minha aflição era a de sair logo dali para encontrar algum amigo a quem pudesse relatar minha incrível aventura: bebericos na “happy hour”, uma morena do outro lado do balcão, sinais de interesse, um papo descontraído, convite para um cafezinho em seu “apê” e prazer… muito prazer! O único problema era encontrar uma boa desculpa para dar à minha esposa quando chegasse casa. Mas isso eu resolveria no caminho. 


          Passados alguns instantes o elevador já estava no décimo terceiro andar, depois de ter feito escalas no oitavo e décimo primeiro. Minha espera já estava por terminar quando, de repente, as luzes ficaram intermitentes até que apagaram-se de vez. O elevador parou bruscamente e a campainha do alarme começou a tocar quase que de forma instantânea. A iluminação de emergência ativou-se automaticamente, revelando a economia burra feita pelo síndico, pois boa parte das lâmpadas de emergência não estava instalada e a restante delas era de poucos “watts”. O resultado era uma penumbra espalhada pela extensão do longo corredor, em muito pouco diferente da escuridão quase completa. 


          Por algum tempo aguardei que a energia fosse religada. Talvez o prédio fosse munido de gerador próprio. Talvez fosse um problema momentâneo na rede elétrica externa. Porém, os aflitivos toques do alarme do elevador e as vozes abafadas que chegavam até mim revelaram-me que aquela espera poderia ser longa; muito mais longa do que seria desejável. Meu atraso era grande e, com certeza, dizer em casa que faltou energia elétrica onde eu estava ia parecer uma desculpa esfarrapada, até porque, não sei bem onde eu poderia dizer que estava àquela hora. 


          Dirigi-me até a porta que dava às escadas tateando pela parede, já que mal se conseguia vislumbrar as indicações da saída de emergência. Dezenove andares escada abaixo e, ainda por cima, no escuro, iria ser uma jornada arriscada, porém inevitável. Lancei-me, titubeante, pé ante pé, procurando os degraus, um de cada vez. A iluminação de emergência ao longo das escadas não era em nada melhor que a do corredor onde até momentos antes eu me encontrava. Mesmo assim, prossegui descendo degrau após degrau. 


          Eis que, antes mesmo que eu terminasse o primeiro lance das escadas, minha mão pressentiu um corrimão que soltou-se da parede e, sem que eu pudesse esboçar qualquer reação, rolei abaixo até estatelar-me no patamar intermediário entre os dois andares. Vi-me zonzo e com dores na nuca, nas costas e no calcanhar esquerdo decorrentes da queda. Estava selada minha desgraça. Mais uma dificuldade a ultrapassar já que, ao pôr-me novamente de pé, percebi a grande dificuldade em apoiar-me sobre o pé esquerdo. Sem dúvida uma torção que iria retardar, mais ainda, minha saída daquele lugar. 


          Meu celular tocou. Olhei no visor. Era lá de casa. Atendi num gesto automático.


     – Alô! Oi, querida...
 

     – Pois bem, Seu Eliseu! Onde o senhor está? – era Natália, minha mulher, em tom irônico, do outro lado da linha.

     – Sofri um pequeno acidente atravessando a rua, tropecei e caí. Estou a caminho do pronto-socorro para tirar uma radiografia. Mas não é nada sério. 

     – Pronto-socorro? Qual? Vou até lá buscar você. Machucou muito?

     – Não! Não precisa. Não é nada sério. Só vou lá por desencargo de consciência. Logo, logo estarei aí em casa.

     – Pois bem! Você é quem sabe. – disse ela resignada, como sempre – Assim que tiver alguma notícia me ligue, ok? Beijo! – e desligou!

          A essa altura eu suava frio e, num suspiro aliviado, tentava recobrar o fôlego. Afinal, minha capacidade de improvisação fora posta à prova novamente e, como sempre, eu me saíra bem. O que os olhos não veem o coração não sente. 


          Nesse instante, uma mão tocou meu ombro por detrás, quase me matando de susto. Virei-me rapidamente e, mesmo na penumbra, percebi tratar-se de uma mulher que, docemente, pegou em minha mão e disse que me ajudaria até a saída.

     – Qual seu nome? – perguntei.
 

     – Anita – disse ela numa voz quase inaudível.

     – Sua mão está gelada. Você parece que está mais assustada do que eu.

     – Já estive bem pior, eu garanto – retrucou rindo.

     – Você mora aqui? – puxei papo, tentando quebrar o gelo, já que ela seria minha companhia pelos próximos dezoito andares.

     – Sim. No apartamento que é vizinho de porta daquele do qual você acabou de sair.

     – Ah! Você é vizinha da Gisele? 

     – Sou, infelizmente! Aquela mulher não presta - disse Anita com severo tom de desaprovação.  

     – Puxa! Já vi que você não gosta muito dela, não é?

     – Nem um pouco. Tenho meus motivos.

     – Que chato. Ela pareceu-me uma boa pessoa – disse eu, tentando não deixar que esse início de conversa pudesse inibir a boa vontade de minha salvadora.

     – Notei, pegando na sua mão, que o senhor usa aliança. Essa mulherzinha arrasta para a cama todos os homens que encontra por aí, muitos deles casados como o senhor – declarou num tom solene e acusador.

     – Sinto muito – foi só o que pude dizer, embaraçado. 

          Desse ponto em diante não consegui falar mais nada. Íamos descendo lentamente, andar por andar, degrau por degraus e, apesar do porte pequenino daquela mulher, ela sustentava-me com muita segurança. Meu celular tocou novamente, quebrando aquele desagradável silêncio que se instaurara, mas eu não atendi. Provavelmente era minha mulher e aquela senhora que me amparava, defensora dos fracos e oprimidos, poderia soltar algum comentário indesejável. 

          Quando estávamos no penúltimo lance da escada já era possível discernir as vozes das pessoas aglomeradas no saguão da portaria do prédio. Um alívio encheu-me a alma, pois aquela situação constrangedora logo iria ter um fim. Anita, que até então também estava quieta, por fim manifestou-se.
 

     – Espero não vê-lo por aqui nunca mais. Sua mulher, seja lá quem for, não merece o que o senhor está fazendo. 

          Porém, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, assim como se foram, as luzes voltaram de repente. Quase que instantaneamente a mulher soltou minha mão e pôs-se a subir correndo as escadas. Não pude vislumbrar seu rosto com clareza e sequer agradecer-lhe como deveria. 

          Já refeito – da queda e do susto – minhas dores então estavam suportáveis e, mesmo mancando, alcancei a portaria em breve tempo. Lá chegando, quis mostrar minha gratidão à minha heroína.


     – Por favor – disse eu ao porteiro – O senhor poderia interfonar para o apartamento 191, pois eu gostaria de falar com a moradora de lá.


     – Dona Gisele mora no 192, amigo. Espere um instante que já estou ligando.


     – Não! – interrompi – Não é para o 192, é para o 191. Quero falar com Dona Anita, que acabou de socorrer-me nas escadas.


     – Acho que o senhor está enganado – afirmou o porteiro me olhando desconfiado, enquanto balançava a cabeça negativamente.


     – Absolutamente, não! É com essa Anita do 191 com quem quero falar.


     – Então, não posso fazer nada, meu caro – redarguiu o porteiro, enquanto sorria irônico para as demais pessoas ali no balcão da portaria e que me olhavam espantadas – Dona Anita se jogou lá de cima faz quase um ano. Cometeu suicídio por desgosto, quando descobriu que o marido a traía com a Dona Gisele. 


          ...

          Não contei isso a ninguém e, desde então, nunca mais traí Natália.  Como poderia esquecer aquela noite com Anita?