O Profeta, o povo, a luta
Era um ser estranho naquela terra. Era um engano a sua presença nesta terra bruta de homens incapazes de entender as coisas simples. Não tinha quem entendesse as suas palavras, porque não tinha ninguém capacitado a escutar. Eram homens possuídos pelo imperativo de enriquecer ou de sofrer as desgraças da pobreza, porque uma não caminha sem a outra. Não havia uma terceira possibilidade, porque a riqueza é que estava calcada na cabeça das pessoas. Ser pobre era ser rico de pobreza. Então alguém que se metesse a falar sobre a possibilidade de se viver e ser feliz sem ter o dinheiro ou as posses como meta, poderia no máximo ser objeto de galhofa. As crianças o seguiam fazendo algazarra, mas sem ousar tocá-lo. Os transeuntes achavam que era um profeta veio anunciar o fim do mundo.
- É um conformista, Não é para ser levado à sério. Seu discurso quer deixar as coisas como estão. É bom para os patrões.
E quem são os? Os que querem organizar o trabalho. Os que conseguem impor. Os seus sonhos. Suas atividades espúrias. Os que trazem escravos da. Os que escravizam. Donos do mundo. Civilizadores. Dadores de trabalho. Que seria de? Estaríamos como peixes na? Uma vida idiota de peixes na. Ou batráquios na lama. Uma vida idiota na lama. Ou siris andando na areia, contando os grãos de areia. Ou ostras, com um grão de areia encravado como uma unha, segregando a pérola única de sua vida. Como uma pedra nos rins. Ou bois mascando. Ou macacos nas arvores. Os patrões nos botam para. Nos tiram da. Dão rumo à. Gado humano no estábulo. E os trouxas querem. Ser dirigidos. Liderados. Pensar que são úteis. Crescem. Amam. Fazem casas. Para quê? Para gerar novos bezerrinhos pro patrão. Ainda temos que cuidar deles. Educá-los. Formá-los. Depois entregar como mão-de-obra. Ou bucha de canhão.
O mestre retornou. E nós atrás dele. Uma figuraça esse mestre. Não falou uma palavra. Não brincou. Não sorriu. Voltamos para o campinho de futebol. Uns garotos estão jogando. Gritos e palavrões. Lavou os pés com o maior cuidado, usando a água de uma cumbuca, junto ao poço. Enxugou. Com o maior cuidado. Tudo o que ele faz parece ter muita importância. Mesmo se apenas estende a toalha na cerca de arame, é a coisa mais importante do mundo. E ele faz com muito cuidado. Cada movimento do seu corpo é firme e decidido. Ele não tropeça, nem deixa cair as coisas. É como o mundo que gira. Ou como a chuva que cai. ou como o rio que corre. Veio da cidade. está indo para o interior. A pé. A cavalo. De carona.
É um encontro. Um reencontro. Com Mamuleque, outro sujeito esquisito mas de um modo diferente. Muleque é bebum. É fedido. E é metido a esperto. Bem diferente desse mestre. Mestre de quê? Mestre de obras? Qual é o apito que ele toca, pensou Aldo.
Pedrão andava indiferente com o grupo. Observou como era fácil para o mestre conseguir comida. Para ele era difícil. Uma questão de presença corporal. Ele assustava: um mulatão grande, com a carapinha crescida, barba encaracolada, pronto para dar o troco em porrada! Ninguém o queria por perto.
***
Escutavam sem entender grande coisa. Como, por exemplo, quando foi feito o discurso sobre o que existe, em resposta à eterna questão do que fazer.
“O que existe por si mesmo é a floresta. Os céus, os rios, os mares, os seres que estão vivos e que por isso são os olhos, os narizes, bocas, ouvido, pele, sangue, e linfa da floresta
A floresta tem os seus caminhos, o mundo, o modo de ser da floresta. Os seres que nela estão, convivem com esse mundo, percorrem esses caminhos, vivem esse modo, sendo um com a floresta.
Os seres que se dizem humanos, convivem com a floresta desde há muito. Sempre estiveram ali. Aprenderam a usar os seus muitos atributos. Mas, pela ação desmesurada e pela atração pelo ganho e acumulação, eles acabaram por exaurir a floresta; vivem agora em desertos de areia em que os caminhos são muitos e nenhum. Para onde quer que se olhe, vê-se o mesmo. Os seres viventes caminham, então, até as franjas da floresta que restou. Ali se maravilham com as muitas coisas que já não conhecem.
Aqueles que não querem mais percorrer os caminhos do desconhecido, deixam-se estar em lugares outrora aprazíveis e constroem fortificações. Sentem-se assim protegidos dos muitos e nenhum caminho dos desertos que muitas gerações se esmeraram em fazer.
Aí começa a necessidade de fluxo. Deve-se fazer obras para trazer água de longe. Deve-se obter muitos bens que aqueles seres abrigados não sabem mais produzir. Deve-se fazer condutos para levar para longe os dejetos daqueles homens imobilizados pela insegurança. Deve-se instituir um grupo de homens armados para manter a lei e a ordem e evitar que aqueles seres amedrontados se agridam e se matem entre si. Porque os muros externos são reproduzidos nas paredes de suas casas. E eles não mais se conhecem e nem mais se aceitam como iguais.
Tais homens enviam expedições periodicamente, para explorar mais e mais a floresta que restou. Encastelados atrás de seus muros de pedras e tijolos, julgam ter encontrado um meio seguro de viver e deixar de fora o anjo da morte.
À floresta foi dada a honra de permanecer. O que ela faz se reproduzindo. Sob suas raízes está a terra que aceita tudo. Sobre as suas copas está o céu que assiste a tudo e manda a sua energia poderosamente sem poupar a ninguém. Os olhinhos d’água brotam por todas as partes e escorrem rumo aos níveis mais baixos, em direção ao vasto mar, que tem também seus caminhos e o seu modo, porque é um com a floresta. Quem nele vive adota seus caminhos e o seu modo de ser.
O que existe por si mesmo, se chama mundo mineral. O mundo mais antigo e que não tem ganas, nem pressa de se reproduzir. Aos minerais foi dada a honra de permanecer. Estalando ao sol, se desprendendo na chuva, se derramando na lava, sendo carreado com as águas. Capturados pelos seres vivos que o depositam em ossos, conchas, carapaças, cabelos, chifres, unhas, dentes, sangue e linfa, folhas, cascas, cortiças e raízes. Daí, desse modo mudo, deriva a base de tudo o que existe. É onipresente, enquanto nós aspiramos à onisciência. Para ele tudo é fácil. Para nós tudo é dificultoso. Resfolegamos e suamos para continuar.
O que existe por si mesmo, se chama homem. Ao homem foi dada a honra de permanecer. E de olhar. E de indagar. E de conhecer. E de comunicar, comungar e estar em comunhão. Bilhões de células de matéria, que se juntam e que podem se associar em bilhões de indivíduos.
A floresta de homens tem os seus caminhos, os seus modos. Não há caminhos errados. Ou certos. Mas há caminhos que levam à destruição. E à impermanência. Se for esse o caminho, assim será. Mas antes teremos que viver o deserto na terra e seus homens armados. Não há caminhos errados ou certos, nem dúvidas quanto ao que fazer. Devemos fazer o que deve ser feito. Porque mesmo que todos os caminhos sejam percorridos, nenhum caminho terá sido palmilhado. Porque o caminho simplesmente é. Está sendo”.
***
- Um monte de idiotices - murmurou Aldo.
Mamuleque estava deslumbrado. Pedrão continuava olhando sem entender as palavras. Mas sabia que poderia seguir aquele homem para qualquer lugar. Era um mestre em conseguir comida.
Aldo engoliu em seco, tomou coragem e com o coração aos saltos perguntou alto:
- Se todo e qualquer caminho está certo, vale tudo nesse mundo. Se amanhã aparecer um nazista qualquer querendo nos escravizar e depurar a raça com assassinatos e esterilização em massa, isto também está certo?
É interessante como neste ponto as esquerdas concordavam com as direitas e com as igrejas, porque na cabeça de Juarez, que também estava por ali, com o filho, jogando bola, brotou límpida uma única frase: “O caminho é estreito; e a porta é estreita. Muitos serão chamados, poucos os escolhidos ( o que para ele significava que poucos passarão pelas portas estreitas, como na saída do Maracanã, as pessoas tem que se comprimir para passar por portinhas estreitas, podendo até morrer sufocadas).
Jainito, o pretenso candidato à profeta, pensou que seria difícil responder. Não conhecia aquelas pessoas nem a sua problemática; ficou alegre com a pergunta, surgida espontaneamente no meio de poucas pessoas que o escutavam. Era pelo menos uma confirmação de que suas palavras encontravam algum eco naqueles corações. Depois, certo ou errado, qual a diferença? O ponto aqui é a enorme distância entre o individual e o social. Enquanto os discursos pseudo-religiosos falam para um, quem se dirige ao outro é o político, o mercadológico, a esfera dos comunicantes e dos significativos. O que Aldo perguntou levava o debate para o caminho das multidões. E foi para lá que ele foi.
“O caminho das multidões é também um caminho. ( até aí morreu o Neves). Tem seus modos. As pessoas só se sentem atraídas por esse modo, quando tudo o mais em suas vidas é insatisfatório. O fazem sem sentir, sem pensar. Fica até parecendo que elas tem que passar por essa enorme fonte de sofrimentos para se purificar. Essa enorme manipulação de políticos é como trazer as esferas infernais para a terra. Poderemos dizer que é um caminho errado, quando tantos e tantos estão dentro desse lamaçal? O apego está sempre presente, e todos tem uma expectativa de ganho ou de perda que é a origem da insatisfação. Como poderíamos dizer que está errado? Está errado um vendaval que passa provocando destruição e mortes? É energia que tem que fluir para qualquer parte. Os líderes tem grande responsabilidade. Terão que responder pelos efeitos. Será grande a carga a carregar. O carma. Terão que responder. Mas se os combatermos, pura e simplesmente, corremos o risco de reproduzir o seu modo. Temos que fazê-lo com a cabeça vazia de apego. Temos que aprender como fazer isto, lutar como Arjuna lutou, combater o bom combate”.
E o que ficou das lutas do passado? De que adiantou? Revoluções, cabeças cortadas, lombos lanhados de chicote? Aonde estão os heróis, aqueles que o povo segue sem pensar? O povo tem os seus heróis, os admirados, os construtores de sonhos, Os Spartacus, os Zumbís dos Palmares; aqueles não reconhecidos pelas autoridades, aqueles sem titulação, aqueles que sustentam os sonhos de liberdade. Todos mortos, fuzilados, decapitados, crucificados. O povo sempre achou que eles iriam reviver, que eles não morreram, que estão vivos em alguma parte. Aonde estão os seus corpos? Aonde estão as suas almas? Aonde estão os seus seguidores, os homens que vão levar o mundo ao bom caminho? Lutar contra impérios, contra homens para quem a morte é rotina, sempre foi o destino dos heróis. O povo aceita os mandamentos, os preceitos, as leis. Os algozes do povo matam com naturalidade porque sabem que nada acontecerá. Nem mesmo a sua consciência os condena. Vivem bem e dormem melhor ainda, esses homens da rapinagem. Roubam com naturalidade, porque acham que o que está no mundo deve ser tomado e apropriado. Em troca, imporão ao mundo a sua lei. E o seu rei. E a sua corte de aproveitadores. E a sua corja de funcionários. E o seu manto de corrupção, de corruptores, de sacerdotes, de professores para ensinar acerca do bem e do mal, do que pode e do que não pode ser feito, segundo eles, segundo a ótica deles, do que é lícito e do que não é lícito. Se queres enfrentar isso de uma vez por todas, saiba que o inimigo é feroz e pode te levar à morte. A tua e a dos teus comandados. O que leva direto para a questão do escravo: aceitar para manter-se vivo, aguardando a oportunidade. E se esta não vier, passar para os filhos a intenção. Mas não é isso que todos fazemos? Mantemo-nos vivos, dia após dia, aceitando toda a sorte de iniquidades. As que conhecemos e as que nem desconfiamos existir? Assim meus caros, é tudo uma questão de velocidade de ação. Podemos morrer todos juntos, o que será chamado de chacina. Ou podemos morrer cada um a sua vez, ao longo do tempo, o que será conhecido como uma vida comum e pacata. Ou podemos partir decisivamente para a luta, e liberar o mundo todo de uma só vez.
Mas é possível outra escolha? Nem escravo, nem senhor de escravo? Nem explorador, nem explorado? Nem chefe, nem comandado? Tem que existir. Porque a luta, qualquer que seja o seu resultado, não resolve o ponto fundamental: a vida, o dia-dia, o sofrimento do indivíduo. A luta redistribui as iniquidades, mas não acaba com elas. Sempre haverá iniquidade. E sempre haverá luta. E sempre haverá sonho. O que começa de modo simples sempre cresce de modo exagerado. O que começa como simples brincadeira inocente, termina em pancadaria, castigos e punições. O que começa pela alegria, evolui em direção a raiva. Porque os homens estão dominados pelas emoções. E as emoções são como o cavalo bravio que corre sem direção. Mas mesmo sem direção, ele está correndo numa direção. Só que ele não sabe. Corre para o desastre sem saber. Corre para o abismo, achando que está voltando para casa. Por isso, temos que dominá-las, submeter as emoções ao nosso controle consciente e evitar o surgimento dos três venenos.
- Mestre, é maravilhoso! - disse Subuti.
- Cala a boca, puxa-saco - interrompeu Aldo - não é nada maravilhoso. Esse teu mestre é um enrolador. Dá uma no cravo e outra na ferradura!
***
Era inimaginável a passagem por aquelas terras de alguém que não anunciasse o fim do mundo, nem estivesse numa pele de Antônio Conselheiro, uma espécie de Napoleão às avessas. O mito da redenção era ainda muito forte para poder ser trocado por outro mito. Num lodaçal de culpas acumuladas, de atos instintivos para assegurar a sobrevivência, de fragmentos de racionalidade, e de toneladas de irracionalidade, a chegada do fim do mundo era um evento ao mesmo tempo de punição e de redenção. E era bom que viesse anunciado por profetas. Mas não aquele. Profeta não era. Não vinha anunciar. Nem ameaçar. Não cobrava por arrependimentos. O que ele dizia, simplesmente, é que é possivel viver. Mesmo no mais imperfeito dos mundos. Porque o mundo já é perfeito como está. E não temos nenhum outro.
***
Aldo continuava contrariado. Aquela mistura de misticismo com bom senso era uma abertura para muito contrabando idealista. Qualquer militante haveria de torcer o nariz. Poderia prejudicar a disposição de ir à luta. Como foi que ele convenceu Jainito a ir junto para a Bolívia, permanece um mistério profundo. E o que mais surpreendente, ir com o compromisso de não falar aquelas baboseiras durante toda a campanha. Para Jainito era fácil permanecer calado. Era do que ele gostava. Difícil era carregar as tralhas. Difícil seria aprender a atirar. Difícil seria atirar em direção à uma pessoa. Isso Jainito nunca faria. Podia atirar para o alto, só para fazer barulho.
Mamuleque escutou tudo, com muita atenção. Chegou a pedir para as pessoas não falarem porque estavam atrapalhando. Depois pensou que estava entendendo tudo o que ele falava. E tudo fazia muito sentido. Cada palavra caía em seus ouvidos como coisas que ele já conhecia e pensara, mas não em forma de palavras. Talvez em forma de melodias. Talvez em forma de imagens, grandes quadros que não cabem em paredes, mas que podem ser vistos e conhecidos numa única mirada. Entendia agora o sentido que Subuti, o velho discípulo doente, emprestava à expressão: é maravilhoso.
“É maravilhoso”, pensou.
- Mas mestre - disse Subuti - uma coisa continua me preocupando: como devem viver, em que devem empregar o seu tempo, que esforço devem fazer, esses moços e moças belos e fortes que estão constantemente se formando no mundo?
- Disse-o muito bem, Subuti. Os moços e moças que estão constantemente vindo ao mundo, belos e fortes, devem ter como orientação o fato de que o mundo para eles é só um local de passagem, que eles aqui são hóspedes. E como hóspedes tem que cuidar bem do mundo. Não há qualquer missão, Subuti, mas grandes serão os méritos se guardarem essas palavras e conseguirem convencer outros seres viventes delas, e conseguirem encaminhá-los a salvação. Porque não há salvação, Subuti, o que se reúne se dispersará, o que está vivo morrerá, e não vale a pena tanto empenho para se manter as carnes impermanentes. Porém temos obrigação de fazê-lo. Porque somos hóspedes até dessas carnes, e delas temos que cuidar. Delas e das outras. Porque há apenas uma única carne, e ela esta contida em muitos seres.
- O senhor, por favor responda à pergunta do rapaz - disse Aldo - o senhor não diz coisa com coisa, que tem o cu a ver com as calças? Ser hóspede é uma coisa; empregar o tempo é outra bem diferente. Afinal, o que devem fazer essas drogas de moços e moças?
Jainito sentiu seu lábio superior se contrair involuntariamente. Estaria perdendo o controle? Como lidar com aquele poço de raiva, indignação e ressentimento, incapaz de entender uma linguagem simbólica? Ele quer pão, pão, queijo, queijo. Então lá vai.
- Se alguém tem um emprego desses que vai da manhã até a noite, todos os seus problemas quanto ao emprego do tempo estarão resolvidos. O patrão que é o dador do trabalho decidirá o quê e quando ele fará. Ele poderá, quando muito, reclamar da vida e guardar uma vaga sensação de tempo perdido por não estar realizando os seus sonhos e aspirações. Se porém voce não tem, ou perdeu o seu emprego, imediatamente passará a sofrer de falta de dinheiro, imaginária ou real. Mesmo que tenhas algum montante guardado, passarás a sofrer quanto à falta futura de dinheiro, já que não está ganhando dinheiro algum nas tuas inúteis atividades, e estás gastando. A caixa d’água vai esvaziar; e nada podes fazer quanto a isso. Admiramos os antigos que podiam viver de pães com azeitonas e afirmar: pobreza não é miséria. Mas hoje todos gostariam de viver bem e confortavelmente. Já foi o tempo em que a economia, a frugalidade e uma roupa limpa e remendada era sinal de honra. Nesses tempos, pelo contrário, o desperdício é o sinal do certo e socialmente útil. Pois gera uma demanda crescente a ser atendida pelas indústrias. Quem não se enquadrar pode ser eliminado. Porque a indústria não precisa mais de tanta mão-de-obra. E isso pode ter acontecido por pressão dos próprios trabalhadores e de sua ganância por seus propalados direitos sociais. Encargos trabalhistas, demandas judiciais, greves, ninguém mais quer. E agora, criança, o que voce vai fazer? Os moços e moças terão que se arranjar de outro jeito. Hoje a fantasia de que as máquinas trabalham sozinhas se realizou; mas filósofos não viraram reis. Os filósofos não são mais filósofos, porque ninguém mais precisa deles. Precisamos é de vendedores e da expansão do mercado. Os reis não são reis e a majestade humana está abrigada nas escolas de samba. Assim, honrado dono de seu próprio nariz, não importa como conseguistes a sua independência. Saiba apenas que ela é fictícia. O sábio não tem a menor idéia de onde vem a comida que o alimenta a cada dia. Quem plantou, quem colheu aquele arroz, aquele feijão, aqueles tomates e cebolas. Quem criou a vaca, quem matou e limpou o animal que hoje forneceu o seu bife mal passado, a carne moída de seu quibe ou esfiha. Alguém tem que fazer esse trabalho sujo, com as forças de seu próprio corpo, com o suor de seu próprio rosto. Alguém tem que fazer essa doação de seu tempo, para providenciar a alimentação de uma humanidade obesa, preguiçosa, vaidosa, cônscia de seu valor ilusório, que semelhantes a deusas e deuses vivem confortavelmente nas cidades. Alguém tem que por o alimento na boca das fêmeas de luxo, das prostitutas de Gog e de Magog, dos luxurientos adoradores do prazer, que se refastelam na ociosidade dos templos de cimento e vidro e ares condicionados da cidade, que não tem a menor idéia do trabalho que deu para produzir sua comida, ou para onde vão os seus dejetos diários. Até parece que todo o esforço desde o inicio dos tempos, toda a história, com suas guerras, violência, escravidão serviu apenas para a sua boa vida, o seu luxo e a sofreguidão de seus prazeres. Carne perfumada e amaldiçoada. Mísseis riscarão os ares procurando vocês... Mísseis voarão por vocês.
Agora falava como profeta de verdade, ameaçando o povo, com sua voz ribombeante. Era assim que falavam os profetas chamando a atenção dos povos antigos, desviando-os do mal, tão à vista, tão previsível, tão fatal. Cavalos bravios correndo sem direção, rumo ao abismo. Precisando de rédea e de voz de comando. Sua descrição do mundo pos-moderno incluía também as doenças imagináveis que viriam.
E da terra suja, bolorenta, infectada, da própria terra que é a base de tudo, surgirão novas e inimagináveis doenças que farão os corpos contorcerem de dor e os seres tremerem de pavor. Pestes desconhecidas. Chagas sem cura. Peles feridas e abertas, varridas por um fogo abrasador. É a terra em revolta tentando libertar-se, ela também, da sensualidade sem limites de suas partes pensantes.
Corpos, órgãos, entranhas, pilhas de ossos mais altas que o monte Vipara. Como conchas de moluscos que um dia existiram e não existem mais. Volta ao mundo mineral, ao mundo mais tranqüilo, que não faz barulhos, nem provoca o pânico da terra.
Códigos genéticos, células capazes de se replicar, organizações débeis que lutaram para não desaparecer, em vão. Num mundo hostil. Num mundo super hostil. Procurar ordem é ser gentil com a natureza. A vida ocorre num pequeno momento do universo. Pequenos momentos são também a eternidade inteira. E tudo é perfeito como é. Nada há a ser consertado. Nada há a ser vivido. Não há nada a ser feito, porque o que existe se faz a si mesmo. E, se não for viável, desaparecerá. Sem testemunhas. E todas as possibilidades serão testadas, todas as combinações experimentadas, até que surja aquela que merece permanecer. Seremos nós? Tudo indica que não.
Uma labareda não questiona qual o toco de pau que deve ser queimado. Não há sucesso, nem fracasso. Tudo é perfeito em si. Tudo em si é imperfeito.
Portanto, ajudar as pessoas a compreender isso é como esses moços e moças poderão empregar o seu tempo. Pouco importa se o esforço é grande ou pequeno. Pouco importa se terão ou não sucesso. Será um tempo bem empregado. Desde que não exista idéia de eu, com substancia própria.
Falara como profeta. Mas profeta ele não era. Dera a Aldo a impressão de que a luta é válida. Dera a Mamuleque a certeza de que não era um simples ignorante. Pedrão admirou a sua capacidade de sobreviver. Juarez, que também escutava, achou que ele poderia ser um bicho-ruim, daqueles brabos que a todos enganam com essa conversa mole. Subuti, cujo nome de batismo era Anselmo, estava convencido de sua iluminação. Assim fala um profeta. Encontra eco em todos os corações. Ninguém fica indiferente. E como todos esperam palavras sobre o fim do mundo, o tema é sempre ouvido com interesse.
***
Outros homens e mulheres se aproximaram, no campinho de futebol de várzea, crianças e pipoqueiros. Era o final da tardinha de domingo. O povo se concentrava preparando-se para a nova semana. Um profeta estava no campo. Falara sobre o fim do mundo. Notícias correm rápido. E a improvável reunião de gente, sem outro interesse que o esclarecimento, aconteceu. É certamente acumular muitos méritos, guardar essas palavras e comunica-las ao povo. E também para ele o mérito era enorme.
No campo grande a povo se avolumou. Vendedores de churrasquinho enchiam o ar de cheiros e de molhos. Um grupo de capoeira ensaiava sua dança. Um sanfoneiro, no outro lado, punha o povo para dançar. Era uma festa popular que se formava. Em um dos cantos, Jainito estava cercado por uma roda compacta de pessoas. As perguntas se sucediam, e muitos achavam que ele era capaz de ler a sorte como as ciganas que podem ler as linhas das mãos. Curiosamente, muitas perguntas versavam sobre o mesmo tema: a luta, as condições adversas para os trabalhadores; não se ousou falar diretamente em ditadura; todos tomavam muito cuidado em suas indagações.
- Se devemos nos conformar com “o seja feita a Sua vontade”, como devem proceder aqueles que passam fome e sofrem por falta de condições materiais, aqueles que não tem emprego, os humilhados? Devem eles aceitar passivamente a sua sorte, ou é certo lutar contra as condições, mesmo que isso implique em violência?
Era o pastor quem perguntava. Queria colocar Jainito diante de uma necessidade de escolha. Ou você fala sim para a violência; ou, ficas comprometido com os patrões. Ele saberia responder muitos bem a essa pergunta, sem escolher qualquer lado, citando a bíblia e dando exemplos edificantes de como esse problema foi resolvido no passado, e citando a expulsão dos vendilhões do templo, e as leis mosaicas que regulam a servidão e o ano sabático de descanso.
- Sua questão é simples e direta, meu caro senhor, e vou respondê-la de forma direta. Eles devem lutar se houver chance de vitória. Eles devem lutar mesmo que a derrota seja certa. O sofrimento imposto por falta de condições materiais, não é oriundo do divino. Não é a “Sua Vontade”. É provinda diretamente da ação perniciosa de homens gananciosos, que se apropriaram dos meios de sobrevivência, tomando-os de todos os demais. ELE fez o mundo sem proprietários. Quando Moisés regulou a propriedade, a desgraça já estava consumada. Homens gananciosos e ardilosos se apropriaram do mundo. Esse e o principal pecado. O pecado daqueles que repartiram entre si os terrenos e criaram a pecuária, a pecúnia, o pecado. O pecado de se apropriar das terras e águas, dos campos de capim. O pecado de se apossar de pecus-bois, e de homens colocando-os a seu serviço, consumindo o seu tempo e a sua carne. Os estilos de vida mudaram desde esse tempo. Conforto e riqueza acumulada para alguns, multiplicação do desconforto, trabalho e inveja, muita inveja para os demais. Escravizaram bois e homens. Assim, os verdadeiros pecadores acham que passaram a gozar de um verdadeiro paraíso reencontrado sobre a terra. Mas são muitas as sua tribulações e preocupações. São muitos os conflitos originados. Dizer que isso é a “Sua Vontade”, é algo muito mais grave que um pecado, já que o “Seu Reino” é o lugar onde todos podem viver a vida perfeita.
Ser parte da natureza é o reino de Deus. Explorar a natureza e colocá-la sob seu domínio é o Reino do demônio. E quem é o demônio senão o espírito egoísta, malicioso, aproveitador, ganancioso, escravista, ciumento, sem compaixão, ardiloso que todos tem. Uma coisa gerada pelo espírito demoníaco, não pode fazer bem. Ainda que pareça trazer vantagens e benefícios iniciais, atrairá seguramente a desgraça e a falta de paz no futuro. Esse é o mau carma. O futuro depende do que fizermos no presente, assim como o presente depende do que fizermos, nós ou nossos ancestrais, no passado. Colher muitos frutos de uma só vez pode implicar em transformar a terra num deserto. Porem, ser parte do Seu reino significa muito mais do que o oposto do espírito demoníaco. Porque extinta a ganância, não há mais sentido em se pensar nela. Sempre que as suas ações estiverem sendo pautadas pelo pensamento de não ser ganancioso, podes ter certeza de que o espírito da ganância continua presente em teu ser. O espírito divino nem sequer cogita na existência da ganância. Eis porque na natureza é tudo abundante; um grão pode gerar milhares de grãos e uma semente pequena pode originar uma arvore frondosa que dá muitos frutos. No mundo dos homens solertes, predomina a carência. Quando ocorre a abundância, e isso para eles é uma infelicidade, iniciam um brutal festim de destruição para eliminar a abundância. O leite em excesso é jogado aos rios, os tomates são esmagados com rolos compressores, os frangos são degolados e incinerados. Os espertos homens solertes preferem a carência para elevar os preços dos bens, a doá-los para quem tem fome. É o exemplo terrificante do apego que não quer dividir com ninguém os frutos do trabalho.
No mundo da carência o povo simples é sempre sacrificado. Esse é o mundo do homem, desvirtuado e desencaminhado pelo pecado-pecúnia. De modo algum é o Seu Reino. Mas ao mesmo tempo continua a ser o Seu Reino porque é só dentro dele que podemos realizá-Lo. Com esses homens, com esse mundo. Portanto, a luta contra as condições abjetas é perfeitamente lícita. Mesmo com alguma violência. São as dores do parto do Seu Reino. Nós estamos grávidos de Seu Reino. Mas não para refazer a ordem, mantendo os seus mecanismos, uma simples troca de lugares, em que oprimidos viram opressores. O lícito é permitir que se refaça o Seu Reino. Lembremos que a principal oprimida é a própria terra que vem há milhares de anos sendo devastada, explorada, conspurcada. Não há ano sabático de descanso que dê jeito.
O pastor estava desconcertado. Jainito estava respondendo e justificando. Citara as suas armas: Moisés e o ano de descanso. Tinha parte com o dito cujo, demônio? Mas ainda havia mais.
- O Reino de Deus é o lugar das coisas simples, não sofisticadas e autênticas. Não podemos perder de vista quais as nossas reais necessidades. Não podemos aceitar os ideais e objetivos de nossos exploradores, oriundos de sua des-graça e angústia. Saibamos viver com poucos e bem aplicados recursos. Façamos da comunhão entre as pessoas e da compaixão a fonte da nossa energia para viver. Permitamos que cada um encontre o seu caminho.
Aldo estava boquiaberto. Havia finalmente entendido a ligação entre o palavrório simples, que o povo pode entender e a chamada fraseologia revolucionária.
- Falar é fácil, fazer é que é dificil. Não se muda o mundo com palavras. Nem com jornais, com letras impressas. O que muda é a ação de gente decidida. e não estou vendo ninguém decidido por aqui.
Jainito estava também um pouco surpreso. Suas palavras nunca eram planejadas. Saíam conforme surgiam. Estava achando seus discursos muito políticos. Aquele pequeno contato com a pobreza verdadeira estava mudando o seu discurso. Não queria incitar ninguém à violência. Mas era impossível conter a indignação.
- E como os homens gananciosos conseguiram se apossar do mundo? Não são eles e sua forma de viver também uma criação das forças da natureza, gerados também pelo divino?
- Ótima questão. Excelente. Aparentemente, sim. Mas apenas aparentemente. Sabemos que todas as possibilidades devem se manifestar para serem testados na prática, no dia-a-dia. Então apareceu esse modo. Não só apareceu como exterminou todos os demais modos. Exterminou e vem exterminando. E continuará exterminando, até nada mais restar. Percebemos que todas as grandes civilizações enveredaram por esse caminho. É certamente pela sua eficiência em dominar o mundo. Fica parecendo que ocorreu naturalmente, que os mecanismos biológicos e sociais operam no sentido de criar violência, escravidão, exploração, divisão de classes sociais, conflito e luta. Mas o ponto é que a colaboração que é natural entre os indivíduos virou exploração. Como foi possível acontecer? Todos os animais da mesma espécie colaboram entre si. Se existe luta na natureza é entre as espécies. E é uma luta necessária. Uma luta reguladora de populações. Mas os homens são animais especiais; conseguem explorar e parasitar os próprios companheiros de espécie. A colaboração vira obrigação a ser cobrada com o chicote. Mas também conseguem escolher. É o livre arbítrio. que afinal de contas não é tão livre assim, quando as pressões estão atuando.
- No mundo dos homens é necessário o trabalho. E aí talvez esteja a raiz do assunto. Há o trabalho alienado e o trabalho desapegado. É claro que não deveria haver trabalho algum. Por que diferenciar o tempo de uma vida entre o trabalho e o não trabalho? Não há motivo para a separação, exceto se o trabalho for uma coisa penosa à qual estamos obrigados. Esse é o trabalho alienado. Alienado de quê? Alienado dos seus frutos que pertencem a outrem, que nos paga para fazer tarefas chatas e divididas. Chega-se ao ponto de não se saber o porque das tarefas. É o trabalho dos apertadores de parafusos. Ele é assim porque renunciamos a nossa própria vida e adotamos os sonhos e a iniciativa de outros, os patrões, aqueles que sabem o que deve ser feito. Mas há também o trabalho desapegado. É o que ocorre quando não distinguimos o tempo empregado nele do resto de nossas vidas. Então, pode-se estar em graça, ainda que se esteja trabalhando, independentemente do resultado do trabalho.
- O trabalho é doação pura. Cultivar um pedaço de terreno é doação. Fazer um barco ou construir uma ponte, é doação. Nada fazer é também doação. Porque os frutos sempre estarão presentes no trabalho que não está contra as leis da natureza. Não é preciso contar com eles. Fazer de acordo com a natureza, essa é a grande virtude. Os trabalho que estão em desacordo com a natureza é que são penosos e escravizantes. Quem precisa deles? Quem precisa de pirâmides faraônicas, quem precisa das Grandes Muralhas, quem precisa de tantos aparelhos eletrônicos?
- A injustiça no mundo se iniciou quando poucas pessoas impuseram às demais um trabalho para cumprir os seus objetivos particulares. Tiveram que escravizar as pessoas para obrigá-las a renunciar às suas vidas naturais e trabalhar por metas estranhas ao seu ser. A construção de uma pirâmide não é uma doação, mas uma fonte de sofrimento para milhares de escravos que a ela tiveram que dedicar as suas vidas inteiras. Para alimentar os sonhos de imortalidade de uma única pessoa, o faraó, o semideus, o quase todo poderoso, o senhor da vida e da morte de seus súditos. Aquelas pessoas escravizadas, muitas das quais conheceram em suas vidas apenas a construção da pirâmide, nascidas, crescidas e morridas sem conhecer outra realidade. Muita gente nesse mundo nasceu, cresceu, amou, teve filhos e talvez um pouco de graça e de felicidade, debaixo da cruel escravidão. Isto porque a escravidão não é um mero acidente passageiro na história humana. É parte integrante da humanidade, é o cerne da riqueza desses homens poderosos, que vem acumulando riqueza e poder desde o inicio. A escravidão e a exploração dos recursos naturais do planeta. Essa é a ambição fundamental que desencaminhou o homem de seu lugar na obra divina, o de observador e conhecedor de mistérios. Como será maravilhoso reconduzi-lo ao seu lugar na natureza, agora que ele dispõe de uma ciência evoluída. Como será maravilhoso inventar tecnologias suaves e parar de destruir o que é natural. Como será maravilhoso construir comunidades pacíficas que possam criar relações de respeito com seus semelhantes e com o meio ambiente Como será maravilhosa a extinção dos governos nacionais e de sua legião de funcionários corruptos e privilegiados e dos impostos que pagamos para sustentá-los. Como será maravilhoso a extinção das forças armadas profissionais. Como será maravilhoso, a destruição de todas as armas, bombas, blindados, aviões e artefatos de guerra.
- Um mundo desses é possível? É, mas apenas com o entendimento entre os homens de boa vontade. Enquanto houver um só beligerante, a guerra é necessária. Enquanto houver um só ganancioso, as leis do mercado são necessárias. Enquanto houver um só homem desrespeitando as leis, as leis, a polícia, os juizes e as prisões são necessárias. Enquanto houver um só aproveitador, o governo é necessário.
- E como não se pode mudar o mundo todo de uma só vez, exceto pelo dilúvio universal, temos que mudar as pessoas, uma de cada vez. A cabeça das pessoas é a primeira coisa a mudar. Eis a razão porque Buda e os iluminados se entregam à tarefa de transmitir a outras pessoas o conteúdo de sua iluminação. Por compaixão, mas também porque toda a humanidade tem que realizar a iluminação. Porque somos como gotas de um mesmo oceano.
***
Era uma inversão total de valores. Aldo sabia que a cabeça é a ultima coisa a mudar. Primeiro tomar o poder político. Depois, mudar as infra estruturas econômicas. Só depois é que a superestrutura social muda. E com ela a cabeça das pessoas. Esse é o esquema simples de uma revolução. Simples e simplório. Porque algumas cabeças tem que estar mudadas e decididas desde o início. Assim com as direitas tem as suas elites, as esquerdas tem as suas vanguardas, aqueles que marcham na frente, conduzindo o rebanho. O rebanho é sempre o rebanho; os lideres pensam nele como uma massa informe sem condições de pensar por si.
- Como mudar a cabeça das pessoas? - perguntou Aldo.
- Ninguém muda a cabeça das pessoas. Ninguém convence ninguém de nada. Uma propaganda eficiente é aquela que fala o que as pessoas querem ouvir. As pessoas é que querem mudar. As pessoas é que querem ser convencidas. Se o que chamamos de inconsciente existe, ele não é simplesmente desligado pelo consciente. Mas ambos os aspectos se misturam, se toldam mutuamente. Mas se se consegue anular o consciente, pelo menos a sua parcela verbal, aquela que é responsável pelo interminável monólogo interior, o que se obtém não é mais nem consciente nem inconsciente, mas uma imersão total no que existe, uma dissolução do ego no real. Se isso é possível através das diversas técnicas de meditação, é coisa que só os Budas podem comprovar. Ao homem comum é quase impossível realizá-lo, porque ele está sempre envolvido por muitos conflitos materiais, profissionais, familiares, e cheio de deformações de educação e preconceitos. Os Budas, porem, devem provir de homens comuns, esse macacóide cheio de cobiça, inveja, maledicência, desejo, esse animalóide voluntarioso... Existirá a possibilidade de se encontrar na vida dos homens comuns uma prática meditativa que ajude a demonstrar para eles que são ninguém? Haverá como fazer da ação diária uma não-ação? Se a ação é sempre feita com objetivos pré-determinados, quais os seus méritos? Não há méritos nas ações, porque cumpridos ou não os seus objetivos, perde-se a ação e sempre fica o sentimento carregado de sofrimento. Todos procuram a felicidade, mas mesmo a alegria em excesso é geradora de doença espiritual ou corporal. Mas poderá a ação ser transformada em não-ação? Sim, poderá, desde que o seu fundamento básico, o objetivo, deixe de ser único. A ação vira doação, se feita com a mente desapegada, sem desejos, ser expectativas, sem procurar por recompensas, inclusive a felicidade. Fazer uma doação estando a mente desapegada de desejos, eis a verdadeira felicidade... Então tudo vira doação. Você pode doar para os outros. Pode doar para o mundo, para os passarinhos, inclusive para si mesmo. Então, fazer uma ponte, cozinhar o arroz, varrer o pátio, são doações. Fazer uma revolução também pode ser uma doação. Aliás a única e verdadeira revolução tem que ser uma doação total. De tempo, de esforço, de vidas, sem esperar por recompensas. Isto pode estar acontecendo. É o que ocorre quando alguém medita. Uma verdadeira revolução. Tempo, esforço, vidas que não são perdidas, mesmo que o objetivo não seja alcançado. Porque não há o objetivo. Se retirarmos todos os objetivos ilusórios, não sobrará nenhum objetivo. Porque os objetivos são apenas diversões, meios de distrair a nossa atenção e nos tirar do caminho.
- Mestre, plantei um campo de tomates, e agora, quase na hora da colheita, os meus tomates estão infestados por uma doença viral. Devo, ou não aplicar o agrotóxico que o agrônomo prescreveu? Estaria eu violando o princípio da não-ação e da doação?
- Em primeiro lugar, não há nenhum princípio. Não há lei a ser seguida. Não há nenhuma violação da lei. Depois, porque plantastes tantos tomates, na certa tinhas na cabeça a idéia de lucro. Agora vês o teu lucro indo por água abaixo. Queres preservar o teu objetivo passando remédio na plantação. Olha, estás no pior dos infernos sem chances de sair. Assim, dificilmente abandonarás o teu objetivo inicial, mesmo que eu diga o contrário. Deves ser fiel a ele e passar o agrotóxico. Vá até o fim nessa estrada que leva direto ao inferno. Quem sabe no ano que vem não aprendas a plantar outra coisa. Para continuares no inferno... Vejam aqui está um homem que vive ao ar livre. Ele agora quer salpicar o ar e a terra com um veneno químico, para salvar os seus tomates e a sua perspectiva de lucro, somente porque um agrônomo desorientado, treinado pelas multinacionais da industria química disse para ele assim o fazer. Isso porque ele não é um verdadeiro agrônomo; não passa de um vendedor com diploma. A grande pergunta é porque foi dado a um ignorante em agricultura o direito de plantar tomates? Será que esse senhor usou a metodologia correta? Ou quis ele forçar a natureza dos tomateiros e chegar a uma produção recorde. Tal como na meditação há metodologias corretas e erradas para plantar ou para fazer qualquer outra coisa.
- Quem medita sabe que não se pode forçar a natureza. Sentar é como preparar o terreno. Manter a espinha ereta é como semear. Permitir que a respiração aconteça é como regar. Controlar a mente e mantê-la livre de pensamentos é como arrancar ervas daninhas. No momento certo virá a colheita. E a colheita, essa não tem preço, o seu valor é incalculável, porque não pode ser vendida à ninguém.
- Plantar tomates, para que alguém que nunca viu um tomateiro possa comer tomates, é uma ocupação curiosa. Esse é o mundo que os homens criaram, onde as pessoas se especializam em fazer para que outras pessoas consumam. Só assim os produtos passam a ter um valor. É bom para aqueles que nada produzem: comerciantes, governos, cobradores de impostos, que abocanham as melhores partes. Mas com as coisas do espírito não é assim. Se consome apenas aquilo que se produz. E bem-aventurados são aqueles que conseguem doar para os outros uma pequena fração de sua bem-aventurança. Mas mesmo com os tomates isso é possivel. Mas não com agrotóxicos.
- Um belo tomate, numa mesa, na cidade é comido. Quem o come desconhece quem o cultivou. Como os bens espirituais, que são usados e que ninguém sabe quem ou como foram trazidos ao conhecimento dos homens. Mas não com agrotóxicos.
- Muito interessante, mestre. Mas, diga, como ter uma vida prática desapegada, se à cada momento somos obrigados a usar a experiência adquirida anteriormente? E, o que dizer da memória? É licito fazermos planejamentos ou programas para a vida, ou mesmo estabelecermos metas? Isso é apego? É preconceito?
- A experiência, a memória e tudo o que se relaciona com a vida passada, pode ou não se converter em apego. Pode até parecer que a experiência signifique preconceito, no sentido de que é um conceito estabelecido anteriormente. Há, no entanto, um sentir, uma emoção envolvida com a experiência, que essa sim faz a diferença entre apego e dasapego. Todos sabemos que a água mata a sede e é licito sentir vontade de beber um copo d’água. Sair carregando cantis cheios d’água pode significar uma grave manifestação de apego, a não ser se estivermos excursionando pelo deserto. Isso não é apego. É a satisfação de uma legitima necessidade. A prevenção, a memória, a experiência são características do gênero humano. Se eu sei que a gravidade puxa para baixo, isso é uma característica do mundo que eu tenho que aceitar. Quando os homens aprenderam a voar, eles não anularam a lei da gravidade. Eles voaram apesar dela. Assim, não há nada de questionável no uso da experiência e da memória. Mas as emoções que vem junto com elas é que podem ser apego. A memória pode se transformar em desejo, e condicionar a vida. Todos os religiosos falam contra o desejo de sexo. Confundem desejo com realidade. Desejar é pensar antes que o fato aconteça. Desejar uma mulher é ficar pensando nela o tempo todo. Esse é o desejo e o apego que faz mal. Porque impede que se capte a realidade presente. Se a tua mente está ocupada com fantasias ela não vê o real que está diante de ti naquele momento. E mesmo que aquela mulher parecer na tua frente, continuarás desejando a fantasia. A mulher de carne e osso será uma decepção para ti. Então o que transforma o real em apego é o desejo. E o desejo provem de preconceitos fantasiosos da mente. Porque não há nada de errado em se estar com uma mulher e fazer sexo com ela. É tão maravilhoso quanto todo o resto. No momento em que acontece. O que é questionável é o desejo. Porque impede a vida real.
***
Cada momento gera as suas necessidades. Cada momento histórico gera as suas personalidades. Mas não se conseguia entender o que aquele profeta, que não era profeta, estava fazendo ali. Foi assim também com Bodidarma na China? Falava para ninguém. Um líder é aquele que sabe o que fazer. Um profeta é aquele que magnetiza as pessoas e as chama à realidade. A sua presença é muito mais importante do que as suas palavras, muitas das quais se perdem completamente por falta de registro. Os profetas não escrevem seus discursos. Quem os escreve são as pessoas que os ouviram. Ou pessoas que muito tempo depois, ouviram de alguém que estava presente. Então não se tem muita certeza sobre o que falaram. Sabe-se que estiveram por lá.
Jainito queria conhecer a realidade da pobreza. Como Buda, quando fugiu do palácio. Como aqueles monges que cometiam pequenos crimes para salvar as almas que estavam na prisão. Afinal, quem cuidará delas? Mas a pobreza acabou o levando por seus caminhos. E seus caminhos levaram direto para a revolução. Como Camilo Torres, padre revolucionário. Conheceu Aldo, e foi com ele para a Bolívia. Não para combater, mas para manter a força daquelas almas.
Conheceu Mamuleque, o seu grande discípulo. Em seu barraco viveu algum tempo antes da partida. Foi lá que Anselmo-Subuti morreu, uma alma boa que abandonou tudo quando soube que estava com câncer e iria fatalmente morrer em poucos meses. Anselmo-Subuti dedicou os seus últimos meses de vida a meditar e a acompanhá-lo em sua peregrinação pela pobreza do Brasil. Era valente, não ficou se lamentando diante da morte, nem se entregou à doença. Talvez tenha durado bem mais e ficado bem mais realizado do que se tivesse aceito ir para o hospital e fazer os tratamentos mortificantes que a familia queria.
De fato, quem precisava de monges naqueles tempos? O Brasil queria a modernidade, queria o progresso; o povo queria casas e melhores condições de vida. Não se pode renunciar ao que não se tem. Teria que se tentar todas as possibilidades antes de se chegar à entrada certa do caminho. Porque, como dizia Jainito, todas as possibilidades tem que se manifestar.
Ele sabia disso. Mas se uma ou outra alminha, pequenina que fosse, conseguisse vislumbrar o caminho, sua luta já seria uma vitoria. Aconteceu com Mamuleque. E mesmo que não acontecesse, a vitória era certa.
Ele foi junto, uma possibilidade remota aconteceu. Porque não se pode fechar os olhos para a realidade. Foi para a Bolívia, e não se arrependeu. Levou mais de dez anos para conseguir retomar o seu caminho do lugar onde havia parado. Porque foi preso. Não na Bolívia, a passagem por lá foi rápida. Chegaram já com o Che morto. Retornaram ao Brasil a pé, pelos matos, com a polícia e o exercito em seus calcanhares. Achavam que estava começando outra Grande Marcha ou outra Coluna Prestes. Mas o que aconteceu foi a derrota e a dispersão em campos vazios.
Muitos tombaram. Muitos fugiram. Ele foi preso. E, na prisão ficou por quase dez anos. Como Bodidarma, encarou uma parede branca por muitos anos. Praticou a ioga dos paus-de-arara. E enfrentou todos os sofrimentos. E aceitou todas as humilhações. E descobriu, na carne e na alma, que o mundo em si, já é perfeito.