AS MARIONETES - Lia Lúcia de Sá Leitão - 9/08/2005
REPOSTAGEM 10/04:2009
A vida girava em torno das decorações do palco mambembe desmontável e itinerante de alegria-alegria, a mulher que engolia espadas, o homem que cuspia fogo, a menina que voava no salto tríplice mortal e a história de amor entre ele e ela, personagens que arrancavam lágrimas de um público singelo que não sabia falar em amor.
O homem dos balões coloridos, o pipoqueiro, as castanhas açucaradas, cocadas, arroz doce na ala dos quitutes variavam a canjica e os bolos de milho, rapadura e alfinins, queijos assados, broas e tapiocas com carne seca desfiada. O sorveteiro passava com sua gaita multicor de plástico fazendo os alaridos de um pato e gritava a plenos pulmões, olha a gelada caseira, morango, abacaxi, abricó e ameixa! Um séqüito infantil acompanhava a guloseima dos casquinhos de biscoito com gelada de morango e calda doce do mel de engenho.
A festa chegava, se vestia, se construía numa volúpia de encantamento, barracas de tiro ao alvo para os homens, barracas com tiros às latas, para os enamorados com prêmios que variavam de belo a lindo! Uma vaquinha malhada, gatinho mariscado de pelúcia à modernidade dos carrinhos de plástico encantavam os olhos dos meninos, as bonecas, todas as meninas sonhavam com aquelas do expositor, o prêmio mais caro de todos, aquela boneca neném, de olhos azuis e cabelos cor de ouro, piscavam os olhos e choravam num leve movimento para frente e para trás. A boneca era de menina rica, daquela que seria a mãe maravilhosa, na feira da cidade não tinha nada igual! Vestida com modelo da moda, quantos olhos amendoados e suspiros profundos ansiavam pelo tentador brinquedo.
Carrinhos de pista coloridos, animações do carrossel e barquinhos pintados propositadamente nas cores favoritas das bandeiras dos clubes de futebol.
A estréia daquela noite não faltaria foguetes, balões, músicas, todo o campo iluminado, o passeio levava ao público circular por toda a praça, esperava-se o enamorados na barraca de beijos, sedutores bilhetes no correio do amor, e o coreto iluminado era apoteótico, o palco maior do show mais esperado, a peça AS MARIONETES..
AS cadeiras tomadas de empréstimo no clube da cidade era a regalia da sociedade, o Padre, o Pastor e o Juiz , o Médico o Advogado, o delegado o oficial, o comerciante e o coronel todos empertigados na primeira fila, acompanhando a traição todos os familiares estavam na filha segunda, esposas e filhos e filhas, ama de leite, serviçais. Da terceira fila para trás a sociedade emergente e mais atrás o povo das populares que não paravam de tagarelar criando ainda mais suspense ao espetáculo.
O parque parecia um canteiro onde as guerras não foram lembradas, a política não tinha partido e um amor traído nem era percebido.
Os olhares cúmplices em noites de Lua cheia estavam brilhando a título de outros astros. Mal se podia perceber o tempo que fluía evoluía com o Bolero de Ravel atacada a todo peito pela banda de música do colégio Municipal.
Os palhaços anunciavam que o espetáculo ia começar, tecido florido camabalhotas, risadagens, fumaças bombas estourando e o foguetório assustavam os cães desprevenidos da rua.
As cornetas desafinadas despontavam como arautos romanos.
Fez-se silêncio, um homem de fraque apresenta a atração da noite, as luzes se apagam, no uma luz azulada ilumina em penumbra o palco de improviso no meio um homem esguio vestido de preto tem na mão esquerda ela a Severina e na mão direita Juvenal, ela filha de fazendeiro ele trabalhador do corte das canas.
Numa voz estonteante diz... com severidade Severina se teu pai te pega abraçada com Juvenal detrás dessa Igreja, os dois morrem de bala certeira e acaba uma linda história de amor.
A marionete presa aos fios do seu destino tenta lançar-se aos braços o seu amado, atado de joelho na condição de infeliz, olham-se apaixonados sem ver o homem de voz de veludo, que afasta brutalmente um do outros como o próprio destino traiçoeiro que insiste em roubar o coração dos amantes e congelar no templo do Minotauro..
Abre mão da tua riqueza Severina que serei eu o teu escravo. Fugimos num cavalo baio para os confins da Terra mãe.
Abre o coração sem medo e aceite meu amor oferecido tão forte como o juramento da terra que brota a cana. Severina chora compulsivamente, por não se livrar dos cordões e correr na brisa quente da noite ao encontro do seu amado, mas o verdugo segura firme num prazer mórbido de desencontro do amor carnal. Juvenal sente o coração da amada pulsar, dá e grita em seu desespero de amante, venha Severina, estou aqui, fujamos desse mundo cruel que nos priva da felicidade, que nos grampeia a fala, que proíbe o nós e o poder de possuir teu corpo ao meu no chão de terra batida, Severina chora mais alto, seu corpo treme, sua alma de marionete chora, o sangue de macho indomado e viril se revolta, atira-se diante do homem imparcial diante do desprazer do amor ali encenado, numa viravolta, erroscou-se na mão do homem, aperta-lhe de tal forma a mão que num urro de dor as marionetes despencam do palco e rolam entrelaçados, como se fosse um último beijo e caem na areia próximo aos pés dos espectadores, espatifados, quebrados sem braços sem pernas, sem cabeça, sem roupas, pedaços de bonecos nus espalhados na areia, desenham um coração púrpura pelo sangue jamais derramado.
A platéia transborda em aplausos o semicírculo do coreto parece impregnados de um amor impossível, cada segredando rasgando a sua própria estonteante, avassaladora, incompreendida; história.
Solitário, o criador dos brinquedos atores, com o profundo corte na mão mais que depressa amarrado pelo lenço branco que lhe enfeitava o pescoço, sabia em seu âmago a causa daquela rebeldia sem retorno; ali estendidos, quebrados, partidos, os sonhos jamais realizados, desejos jamais concluídos, esvaía-se a paixão das marionetes: apaixonadas, sem o casamento consumado, anos vividos juntos, mesmo palco, no mesmo espetáculo, mesma cena de final feliz e um longo beijo apaixonado, no dia a dia dos ensaios, nas falas pouco reveladas, o elo entre sentimento e o fio da arte rompeu-se para o vôo inenarrável das estrelas.
Mas aquelas marionetes como tantas outras marionetes não podiam ganhar vida, alma, sentimento, os sentimentos eram restrito ao público que ria, chorava ou sofria, jamais seria a solução um enlace de amor, como estabelecer uma casa de marionetes? Cozinha, cama, fogão, filhos... filhos...filhos nunca! Pensava o dono das marionetes.
Os filhos dos espectadores nunca assistiam ‘aquele embate de amor, os carrosséis e barquinhos tinham mais serventia que um toque de mão, um olhar carinhoso, uma palavra doce, mas isso eram os filhos do público, os filhos das marionetes deveriam ser artistas, anjos, pintores, escritores, teriam a alma do escultor que evolui a cada toque da ferramenta em matéria bruta.
Resta olhar o que sobrou das marionetes, faz uma cara de amanhã terei novas marionetes em cena, com a mesma dor, o mesmo amor, as mesmas perdas, os meus lucros e a vida continua, quem perdeu o bonde da História perdeu a vida sonhando mais que o trivial almoço, feijão com arroz.
O mergulho para o anonimato deixou estilhaços os sentimentos mais profundos soltos na areia, pisoteados pelo público que continuaria pelo caminho iluminado da alegria, das luzes, da música, da festa como um brilho sem tempo sem marca, sem presente ou futuro, a não ser a carta do velho tarô da cigana que predizia em seus manuseios a uma mocinha sentada olhando atenta cada palavra ....perceber afinal o mergulho para caos não é ter idéia do amor jamais realizado é não ter coragem de olhar o caos e enfrentar o renascer do Sol.