Meus surtos
Havia uma bruma escura na rua toda. Muito frio! Levantei-me com o barulho dos pingos d’água que caíam do telhado no alumínio da bica. Levantei-me, abri a cortina da janela do quarto que dava para a rua e pude constatar que lá fora o ar estava gélido, a rua esquisita, quase sem sinal de habitalidade. Nem era tão cedo. Passava das oito da manhã. O sol havia se escondido por sobre as nuvens escuras do céu. Mas lá na cozinha havia barulho e dela me chegava um cheiro bom do leite fervendo no fogão de lenha da casa velha da chácara. Passei um bom tempo espreguiçando-me e tentando livrar-me da preguiça.
Antes mesmo que eu descesse os seis degraus da sala de estar em direção à copa, ouvi um bem-te-vi chilrear quase alegre na árvore do lado direito do oitão.
– Comida aí, Júlia?
– Tem sim, fio, senta! Senta aí!
Morena balzaquiana faceira, dada ao trato alheio com esmero, morava conosco desde sua infância. Mulher séria, decidida. Cuidava da casa com amor e dedicação. Mamãe adorava-a. Tinha-a como uma dos nossos. Nem salário ela possuía. Tudo o que necessitava comprava no magazine do seu Reinaldo. Até para os de casa ela ousava encontrar suas necessidades e comprava também.
Alice havia se acordado. Como de costume, preferia dedilhar no seu velho piano alemão, a ir ao banheiro lavar-se. Era vidrada em música. Eu sentia muita inveja dela. Não podia ver uma velha partitura empoeirada no sótão do casarão que logo corria ao piano na tentativa de reproduzir nele o que suas retinas liam. Ouvia Moonlight Sonata de Bethoven. Linda melodia! Relaxante. Quando o meu espírito já estava adentrando o paraíso, ela para e Júlia põe com firmeza sobre a mesa, logo à minha frente, a leiteira cheia. Bum!
– Coma, Heitor... coma! Quer que eu te sirva?
Eu nem respondi que não e ela já me serviu. Cuscuz, açúcar, leite e um ovo com a gema mole sobre eles. Hum... que delícia! Completei meu desjejum e levantei-me da cadeira. Fui à sala de estar. Pelas vidraças das janelas podia ver que a rua continuava acinzentada e triste. Não desejei abrir nenhuma delas. Dentro de mim eu também estava como aquela rua. Permaneci na poltrona bege de papai olhando para lugar nenhum e a nada pensar de importante. Ouvi um barulho no alpendre da frente da casa. O que poderia ser?
– Júlia? Júlia? – Nada de Júlia responder-me. Levantei-me e fui ver de perto o que poderia ser o barulho estranho.
Quando abri a porta principal da casa, justamente a que dava para o tal alpendre, vi o vulto moreno caído na cerâmica úmida do frio da madrugada. Alguém estava caído no chão! A neblina exigiu-me aproximar-me mais do vulto. Fi-lo! Encontrei Júlia deitada, braços aberto, um fio de sangue desenhado na comissura labial direita indo encontrar-se com a ponta do seu queixo. Seu abdômen flutuava como se sua respiração ofegasse. Ajoelhei-me ao seu lado e gritei por socorro. Não me lembro ao certo por quem chamei. Chegou-me um bom punhado de empregados.
Com pouco tempo, ela foi transportada para o hospital mais próximo da casa e atendida por uma enfermeira. Não havia médico há mais de um ano. Minha família providenciou sua remoção para a cidade vizinha à nossa. Lá havia um velho quase centenário que ainda brincava de fazer medicina. Passos mais preguiçosos do que aquela manhã fria de outono.
– Ela teve um passamento!
– O que passou nela, doutor?
Eu quis sorrir com o palavreado do velho médico, mas me contive. Estava a precisar dos seus serviços médicos. Deveria acautelar-me de tudo.
– Um AVC, tá bom assim?
– AVC? O que é isso?
– Um acidente vascular cerebral.
– E é grave?
– Sim, muito grave. Vou ver o que posso fazer!
– Aqui vai ter jeito, doutor?
– Por quê? Quer levá-la para a América?
– Essa criatura merece ser levada para qualquer lugar, doutor. É uma alma boa, dedicada.
– Eu também sou. Nem me aposentar eu posso. Trabalhei a vida toda e nada tenho, nem saúde!
– Eu sinto muito pelo senhor...
– Se seu sentimento me ofertasse dignidade de vida, até que eu lhe agradeceria, mas não vale é nada.
Constrangi-me após ouvir o discurso do velho médico. Preferi calar-me a interceptá-lo com minhas palavras. Olhei para Júlia e senti que eu estava impotente. Retornei para a casa a fim de fornecer as novidades. Quando deixei o hospital e subi na charrete, o sol já desejava aparecer. Alegrei-me. Fiz o chicote gritar fora do lombo das éguas e comecei a ver a estrada barrenta ficar para trás, onde Júlia já havia ficado inerte.
Uma hora depois cheguei em casa. Os bem-te-vis chilreavam alegres. Benevides já havia apanhado as folhas do terreiro comprido. A cozinha estava triste, apesar de as outras duas auxiliares terem levado o serviço à frente. No piano ela ainda permanecia. O quarto de papai estava fechado, o que não era comum.
– Dione, mamãe, papai?
– Ainda não desceu ninguém!
– Jura?
– Quem jura mente, rapaz!
– Hum...
Quando li no cuco da parede da sala que iria ouvir as badaladas das três da tarde, resolvi arrombar a porta do quarto deles. Coincidência ou não, ela desembestou no piano como se quisesse abafar a zoada que eu estava fazendo para pôr as duas lâminas da porta abaixo. Estranhei. Ela também ainda não havia feito seu desjejum. Com o aceno da direita, ela havia impedido as duas auxiliares da cozinha de subirem até ela. Tentaram chamá-la várias vezes.
As portas, enfim, foram ao chão. Eu entrei ansioso. A cama estava desforrada e sem ninguém. Dois copos vazios na cabeceira da cama do lado de papai. No chão apenas um par de franciscanos marrons. Havia no quarto um terracinho onde papai costumava descansar na rede após o almoço e nas horas vagas quando estava em casa. Fui até ele. Ninguém lá estava também. Vasculhei o quarto todo e nada encontrei. Comecei a raciocinar: as portas fechadas, cama desforrada, chinelos sem pés, copos quase vazios, nenhum corpo nele. O que poderia ter acontecido?
Resolvi ir até ela. Continuava tocando ao piano. Subi os poucos degraus como se estivesse marchando. Levava comigo na face um olhar medroso que deixava o coração apressado. Não desejava saber que meus pais estivessem mortos. Quando olhei nos olhos de minha irmã, vi que a morte morava em seu olhar e tudo estava consumado. Ela escondeu sua face da minha e cerrou os dentes.
– Papai, mamãe?
– Mortos!
– Você os matou?
– Sim!
– Por quê?
– Cansei de vê-los tão bons!
– Deus meu! Ela é uma louca!
Avancei sobre ela e, lembro-me muito bem, joguei a sua cabeça contra a cauda do velho piano alemão, com violência e repetidamente. Meu corpo estava anestesiado. Eu precisava vingar-me dela pela morte dos meus pais.
– Você, tão boazinha com todos nós, por que fez isso tudo? Tanta maldade...
Mas ela não me respondeu mais. Seu coração havia parado e as teclas do piano estavam carminadas. Ouvi uma voz gritando que vinha lá de baixo.
– Meu filho, não faça uma coisa dessa! Pelo amor de Deus. Você está drogado?
Olhei para minhas mãos, minhas roupas ensanguentadas, minha irmã morta beijando o piano, mamãe apavorada ao telefone pedindo que papai apressasse o retorno da viagem que havia feito à capital. Aí eu pude entender que nada do que eu havia vivido estava em mim e que estava mesmo necessitado da ajuda alheia para me salvar.
Quando saí da casa de repouso três anos depois de toda a desgraça, a primeira pessoa com quem me avistei foi Júlia. Eu lhe perguntei:
– Você ficou boa do AVC?
– O que é isso?
– O derrame...
– Deus me livre, meu Deus, ter um dia essa doença miserável.
– E sua internação lá em União dos Palmares?
– Eu? Internação? Ah, eu acho que isso também fez parte do seu delírio.
– Que delírio?
– Deixe isso pra lá, meu fio. Quer um cuscuzinho com leite?
– Quero! Sirva-me!
Ainda não havia saído de mim todo o lodo da moléstia que impregnara minha alma. E olhei para a rua e senti frio. Ela não estava mais baça e muitos mais pássaros chilreavam... E eu, gélido ainda do dia diferente, senti medo e pedi a Júlia que me ajudasse.Talvez nem a rua existisse.
Reinternaram-me e eu passei mais seis meses na casa de repouso. Quando retornei, soube que Júlia tinha tido um derrame e pude ouvir minha irmã tocando Moonlight Sonata de Bethoven outra vez. Ela já havia tomado banho porque não enxerguei mais sua pele carminada pelo que eu havia feito sem pensar. Eu agora pensava muito, antes de engendrar qualquer parada! Mamãe continuava a olhar-me com o seu olhar choroso e as mãos trêmulas. Papai, eu já não o via desde o meu nascimento. A gente tem que morrer um pouco para viver e deixar que os olhares andem sem nos importunar, não é mesmo? Foi só assim que consegui terminar este conto!