Banho

Mergulhou trêmula em um banho gélido. E notava as sensações dos últimos dias, tão acalentadas pela imagem ainda gravada dele, se desprenderem da sua pele, como a sujeira invisível e insolúvel que não se misturava na água, se armazenava no chão.

Fechou os olhos e trocou as lajotas azuladas do banheiro pelo escuro infinito de seu sonho acordado, que foi clareando de um breu espesso a uma série de luzinhas amareladas. As pequenas estrelas imaginárias dançaram aparentemente com alegria, debochando do estado nauseabundo dela. Como quem dança de dor.

Seu corpo estremecia, remexia, contraia, contorcia. Seus lábios ressecavam apesar da água fria que lhe caia por sobre a cabeça. Cada gota pontilhava-lhe o corpo; as costas, a nuca, a cara, os seios; queimando-a, como cigarros cruéis e sulfurosos e inapagáveis. Os pêlos eriçavam e relaxavam seguidamente, em movimentos contínuos, como um balé perfeitamente ensaiado, onde nenhum dos bailarinos atrasava um milésimo de segundo.

A gengiva saboreou um sangue inexistente, mas inevitável. Ela cuspiu, mas sua boca ressequida não eliminou nada além de saliva. Seus olhos disfarçaram o choro por baixo da cortina fina e corrente da água.

O gosto férreo do sangue coagulado tomou de novo suas entranhas. O vômito pousou aos lábios, contaminou a língua, eliminou os últimos resquícios do beijo, das palavras ditas. Ela não permitiu a golfada. Voltou a engolir todo o mal, toda a raiva, todas as palavras, todos os beijos.

As lágrimas desciam profusamente, agora. O telefone bateu na sala. Como um operário martelando ferro. O som tilintava e ecoava, e vinha em ondas na direção dos seus tímpanos, lacerados pelas frases ouvidas.

A crueldade não era dele, era dela. A interpretação era dela. Autocomiserada, ressentiu-se; uma pontada no peito cortou a respiração e o pulso por quase um segundo, como se os cigarros tivessem-lhe entrado pela boca e ferido o coração.

A silhueta masculina se postou frente à porta – não realmente, mas dentro da sua pupila – os ombros largos, o corpo angulado, o rosto frouxo de uma sensibilidade admirável. Ela desviou os olhos, a vista fugiu. Mas a imagem prosseguiu, esculpida em sua retina. Pensativa.

Os lábios pareciam fragmentar-se: mais uma parte dele que se ia.

A chuva lá fora, o banho lá dentro, o choro lá fora, o regozijo esquecido.

A cama desfeita pranteava também, os lençóis sobre o chão, manchados de fraqueza e doença, dela própria, sozinha, eterna. O travesseiro parecia ainda resfolegar, arquejava, recuperava-se do choque da cisão.

O banho não desvirtuara ainda o olor áspero, másculo, amargo que ele havia irradiado sobre a sua pele. Que havia se grudado a sua derme como uma tatuagem horrenda, desconfortável. Aquele cheiro de quente ainda inflava o seu pulmão, aquele cheiro de corpos unidos, de prazer ingênuo, sensível.

A água esquentou subitamente e mergulhou seu corpo em uma sensação de acalanto, sono, que por um instante a redimiu das assombrações pastosas do recente e inacabado passado. As gotas brilhantes que jorravam do chuveiro abençoavam sua anatomia como água benta, escorriam pelas curvas, pela cintura, contornavam as extremidades.

Mas não era o suficiente para arrancar-lhe os medos, os anseios, os discursos entalados. Seus motivos, seus argumentos.

Ajoelhou-se, sobre o chão ainda gélido, com o calor entorpecente derramando-se sobre seu corpo que ainda levava o cheiro floral de canteiros desabrochados em primaveras misturado ao odor cardíaco e amargo característico da proximidade dos seres. Era, ali, um elo entre o calor e o frio.

Sentiu-se morta por um instante, os olhos fechados imersos em uma escuridão grosseira, as coxas doloridas pela posição, mas não ousava mover-se. Purificava-se, vagarosa. O banho não era o suficiente para esquecer os males, olvidar o tempo, os vestígios do dia, dos dias, das semanas. A corrente não era o suficiente para dissipar a crosta sólida de raiva e dor que se acumulava por sobre seu corpo. Ou para arrancar a sombra oblíqua que se fechava como uma mortalha por cima daquela criatura, encolhida, trêmula, quase sem vida.

Ali restou, perdendo toda a noção de tempo e estado. Os olhos continuavam fechados. Contra a pálpebra, a imagem dele continuava projetada, escura e sombria, como ele sempre fora. Conseguia ouvir ecos da voz dele, que saiam de seus ouvidos, ricocheteavam nas paredes e na neblina úmida que se dissociava do chuveiro, e, finalmente, aglutinava-se à água, que seguia o seu caminho: caindo e correndo. E o seu passado se soltava do seu corpo, do céu da sua boca, da sua narina, das suas lágrimas, das suas costas, dos seus pensamentos infantis duramente amadurecidos. E descia pelo ralo, levado pela força da água.

Joao L Terrezo
Enviado por Joao L Terrezo em 08/04/2009
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