O ANDANTE

Fagner olhou a garrafa sobre a mesinha e teve uma vontade imensa de tomar um café mas a preguiça tomava conta de seu corpo.

Estava assim, cada vez mais cansado, sem ânimo, sem vontade de viver.

Só a TV lhe fazia companhia, até mesmo sua ex-esposa tinha deixado de lhe importunar, estava ali na sala de um departamento público. Era concursado a 10 anos, sabia o trabalho todo de cor, era só carimbar algumas coisas e pronto, tava tudo resolvido.

No dia seguinte acordou com uma vontade de andar, uma vontade louca de andar, sem destino, apenas andar, nem sabia prá onde.

Calçou o tênis e começou a andar, foi em direção a Salvador.

Passou na frente da concessionária incendiada onde seu tio tinha morrido a cerca de uma semana, e continuou andando.

Não se cansava, e a vontade de andar não parava, e andava, andava, andava, sempre em direção a capital.

Estranhamente não se cansava, não sentia sede nem fome nem vontade de parar.

Alguns motoristas diminuíam a velocidade quando cruzavam com ele, outros não davam a menor importância.

O sol a pino e Fagner continuava andando, o calor parecia não lhe incomodar.

A tarde toda não parou um só minuto.

A noite chegou e Fagner continuava andando.

Tinha vontade de parar, de voltar prá casa, mas não conseguia, o impulso de andar ainda era grande.

Essa força estranha o compeliu a andar sem parar durante dias, não parou nem para dormir.

Ia por estradas incertas, hora ia com destino a Salvador, mas quando a estrada bifurcava não tinha certeza para onde ia, passou por algumas cidades duas ou três vezes.

Queria parar, falar com alguém, perguntar onde estava, mas não conseguia.

Percebeu que o tênis já estava gasto, parou apenas para tirá-lo e continuou a andar.

Passou por Feira de Santana e seguiu em frente, lembrou que sua irmã morava na Avenida João Durval, queria revê-la, ver os meninos, conversar sobre alguma coisa, mas não parou, seguia em frente.

Essa sensação estranha lhe dava uma espécie de prazer mórbido, era esquisito mas estava feliz.

Ao chegar em Salvador foi direto ao mar, andou pela praia até chegar ao Farol de Itapoan.

Sentou-se.

Eram seis horas da tarde.

O pôr do sol começara e ele sentiu vontade de chorar.

Chorou, chorou copiosamente.

Pela primeira vez sentiu sede e fome.

Levou instintivamente a mão ao bolso onde encontrou o cartão de crédito.

Encontrou uma loja onde comprou roupas e uma sandália, seus pés estavam estranhamente limpos e bem cuidados.

Foi para um hotel onde tomou banho, jantou arroz com polvo, dormiu a noite e o dia todo.

Às oito da noite pediu um táxi à moça da recepção e seguiu para o aeroporto.

Chegou em Petrolina numa bela noite estrelada.

Não contou a experiência a ninguém e nunca mais pensou no que tinha feito.

Fagner ainda tem uma preguiça inexplicável.

David Souza
Enviado por David Souza em 06/04/2009
Reeditado em 18/10/2009
Código do texto: T1525706
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