O AGUAMATA
À LAIA DE PREFÁCIO
Quaisquer semelhanças entre os personagens e factos ou situações constantes nesta narrativa e pessoas e acontecimentos ou ocorrências da vida real, não são, evidentemente, pura coincidência.
Houve, no entanto, o cuidado de se mudarem os nomes, mantendo-se, todavia, a sua intrínseca natureza e a idiossincrasia dos personagens.
Algumas situações e ocorrências também foram alteradas, distorcidas, imaginadas, enfim, romanceadas.
Não se menciona, especificadamente, o nome da terra onde decorre a acção. Esta desenrola-se numa aldeia da Beira Litoral, hoje vila, do distrito de Coimbra.
O. Zarref
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O AGUAMATA
O. Zarref
Foi hoje a enterrar o meu amigo Aguamata.
Na aldeia, era assim que o tratavam porque, segundo as suas próprias palavras, nunca bebera um golo de água na puta da sua vida.
De seu nome completo José Zeferino Só, andava aí pelos setenta e picos.
Quando o conheci, era um homem de meia-idade, de estatura meã, mas de compleição atlética, atarracado: ombros largos, os braços estranhamente curtos e grossos, pernas ainda firmes, mas ligeiramente cambadas, o peito peludo e saliente. Sob uma barba hirsuta de oito dias, adivinhavam-se-lhe as faces avermelhadas, donde um nariz proeminente e achatado parecia irromper como um míscaro encarnado. Os olhos, escuros e encovados, encimados por umas sobrancelhas grisalhas, denotavam matreirice. Ainda estava por nascer o filho de uma cabra que lhe fizesse o ninho atrás da orelha!...
Vestia umas calças castanhas, surradas, onde enfiava parte de uma camisa rafada e enxovalhada, que já fora branca em tempos, meio encoberta por um colete cinzento. Na cabeça trazia um chapéu velho e amarrotado e nos pés umas botifarras de cano alto.
Um dia, na sua adega, enquanto ele retirava o espicho e me enchia uma caneca de vinho que jorrava pelo buraco da pipa, perguntei-lhe:
- Ó ti Zeferino, não leve a mal, mas gostava de saber: porque é que lhe chamam Aguamata?
Sorriu, deixando à mostra uma fieira de feijocas, dispostas irregularmente, que lhe serviam de dentes:
- Aqui na aldeia é hábito, meu lindo. Só nos tratamos pelos alcunhos. A demais, pra que serve a água? A água só é boa para duas cousas: para os peixes e para regar a terra! Há lá alguma cousa que chegue a isto? – e, de um trago, emborcou o copo que tinha na mão tremente, dando um estalo com a língua e exclamando: - A água mata!
- Mas sempre bebe alguma... – sentenciei . – Na sopa, no...
- É certo, lindo! – atalhou ele, rapidamente. – E também na zurrapa que alguns mixordeiros nos dão a beber... Mas água extreme é que não!
- E o seu nome? – insisti eu. – Você não tem família... Donde vem o apelido Só?
- Ah, isso... – pôs-se sisudo, mas respondeu passado um momento: - Olhe, meu lindo, acho que foi o cabrão do empregado do Registo Civil que se enganou ou, então, foi sacanice dele...
Contou, a seguir, a história incrível do dia em que o seu pai, homem boçal, inculto, o levou, para ser registado, à Sede do concelho, oito dias após o seu nascimento. Na altura de dar o nome escolhido – José Zeferino – o funcionário do Registo Civil terá perguntado: - “... e que mais?”.
Julgando estar o assunto resolvido, já que só tinha ido ali “aviar aquele recado”, o pai respondeu: - “É só...”.
E foi assim que ficou registado e escarrapachado na sua certidão de nascimento: José Zeferino Só.
***
Era uma figura típica da aldeia. A miudagem, quando o via passar, a pé, estrada fora, a caminho da fazenda, conduzindo o carro puxado pela junta de bois, atestado de estrume, corria atrás dele, gritando:
- Ó Aguamata, vai um copinho de água?
- Vai um pirolito?
E ele, fingindo-se inquieto e zangado, replicava, gesticulando com a vara ameaçadora com que zurzia nas bestas:
- A água mata, seus malandros! Zurrem daqui! – e descarregava uma varada no lombo dos ruminantes, gritando:
- Eixe, pra diente, seus filhos da puta! Racho-te os cornos!
Trabalhava que nem um desalmado! Cedinho, ainda madrugada e já curada a bebedeira da véspera, levantava-se para ir cuidar dos animais: dar o pasto aos três bois (“à minha junta e meia” – como ele dizia) e deitar uns restos de comida ao Tinoco, um cão rafeiro que o seguia para toda a parte. Depois, ia ao curral onde berregavam “as suas meninas”, meia dúzia de ovelhas e outras tantas cabras, que ele tratava com desvelo, para as matar e vender para chanfana, por alturas do S. João. Dava-lhes de comer, cantarolando:
D’estar junto a S. João,
O cordeirinho se ufana!
Mas tem cuidado, amigão,
É altura da chanfana!...
Era proprietário de um carro de bois, para os trabalhos agrícolas, e de uma carroça, também puxada por um boi, que utilizava para transportar, até Souselas, as encomendas de palitos dos comerciantes do lugar. De Souselas, lá seguiam as encomendas de combóio ou pelo correio, para terras distantes, que ele nunca viu, nem nunca viria a ver.
Muitas seriam despachadas, por vapor, para o Brasil e para as Colónias: Guiné, Angola, Moçambique.
Além da casita velha e feita de pedra – que herdara dos pais –, também tinha uns bocados de seu, no Chão do Roxo e lá para os lados do Pisão. Aliás, a Quinta do Pisão tinha sido, todinha, do seu pai, que, por dificuldades da vida – “nessa altura, era eu ganapo, a porra da vida era mesmo uma merda!” -, fora obrigado a desfazer-se de grande parte dos terrenos, vendidos ao desbarato, a uns judeus da terra... Mas ainda lhe coubera uma parcela, que ele amanhava e onde cultivava o milho e as batatas e plantava umas couves e alfaces.
***
De todas as vezes que regressava de Souselas, embrenhava-se pelos pinhais e atafulhava a carroça com lenha e pinhas, que haveria de vender, depois, em pequenos molhos, a quem delas precisasse.
Contava-se até, na venda do Manel da Lídia, um episódio engraçado passado com ele, numa dessas vezes em que “asseava” um pinhal, já bem perto da aldeia.
Entretido que estava a encher a carroça, de foice na mão, nem deu pelo Citroen que parou na estrada poeirenta. Do automóvel saiu um sujeito, todo bem posto , que o interpelou, ameaçador:
- Olá, amigo! Que está a fazer aqui?!
Assustado com a inesperada aparição, gaguejou:
- Vossemecê é ce... é cego? Não vê que estou a ap... a apanhar lenha e pinhas?
- Ai, sim?! – retrucou o outro, a pontos de explodir. – E se aparecesse o dono, o que é que você fazia? – concluiu, irónico.
- O que é que eu fazia? – repetiu, como um eco. Brandiu a foice, descrevendo com ela um arco, como se cortasse um pescoço imaginário, e disse, triunfante:
- Fazia-lhe isto!...
O outro deu meia volta, meteu-se no carro e sumiu. Mais tarde, viria a saber-se que era o dono do pinhal.
***
Sábado, era dia de fazer a barba. Trabalhava apenas da parte da manhã. Depois da merenda, libertava os bois da carroça, tirando-lhes a canga e as correias, e levava-os para um canto do telheiro, onde os prendia, pelos cornos, a um gancho. Limpava e arrumava as alfaias agrícolas: o arado, as enxadas, os ancinhos, as foices... Lavava, com esmero, a ferrada – “para não ficar a cheirar a leite azedo”... Com um corno cheio de óleo queimado, oleava os eixos das rodas do carro e da carroça. Empurrava o cepo onde rachava a lenha para um canto, cravando-lhe o machado na superfície plana, e empilhava algumas cavacas que tinham ficado dispersas pelo chão.
Tudo feito, entrava em casa, ali pegada, e tomava o banho semanal. Depois, saía para percorrer a via sacra do costume: todas as vendas e adegas da aldeia e, ao mesmo tempo, ver se encontrava aquele valdevinos do João Barbeiro. Precisava mesmo de fazer a barba. Andava sempre a arranhar os queixos, tal era a coceira!
Encontrava-o, geralmente, numa das tascas, com os apetrechos a seu lado: a navalha, uma pequena lata onde o pincel mergulhava numa sabonária já preparada para o efeito, e uns pedaços de papel de jornal, que ele utilizava para ir limpando a espuma e os pêlos que se agarravam ao gume da navalha. Depois de uma breve cavaqueira e dois copos bem bebidos, o João Barbeiro pegava num mocho, para o cliente se sentar, lá fora, à beira do passeio.
E era assim, ao ar livre, que ele executava a melindrosa tarefa.
De barba feita, lá seguia o Aguamata para a próxima venda, trocar mais uns dedos de conversa com amigos e conhecidos e enfiar mais uns copos. Nos últimos tempos, andava intrigado com uma coisa que se dizia estar para aparecer brevemente e a que chamavam televisão: uma caixinha, com pessoas lá dentro a falar e a cantar. Seria possível? Tinha de ir tirar a coisa a limpo...
***
Recolhia-se cedo. Sempre: quer de Inverno, quer de Verão. Inda mal o Sol se tinha posto e já ele estava na choça. Nunca se casara e ninguém lhe conhecia mulher alguma.
No entanto, murmurava-se que, uns bons anos antes, ele teria tido um caso com a Filó. A Filó, de seu nome completo Filomena do Espírito Santo, era peixeira e recoveira. Ia duas vezes por semana a Coimbra, às terças e sextas, na camioneta da carreira, buscar sardinha e aviar recados.
Conta-se que, um dia em que ela teve de tratar de um assunto num lugar próximo, não voltou na camioneta. Por falta de transporte, teria, mais tarde, de fazer o trajecto de regresso a pé, com o carrego à cabeça. Embora fosse uma mulher trintona, bem nutrida de carnes, desenvolta, maldizia a sua sorte, nesse dia, pois não havia meio de encontrar quem lhe desse uma boleia. Quando se preparava para meter pés a caminho, deu de caras com a carroça do Aguamata que regressava de Souselas. Gritou-lhe:
- Ó Zeferino! Ó Aguamata! – e, abrindo os braços numa efusiva saudação, continuou a berrar: - És o meu Salvador! És o meu Anjo da Guarda! Foi Deus, Nosso Senhor, que te enviou!...
- Pareces doida, mulher! – resmungou ele, de má catadura, parando a carroça: – Que estás pra aí a dizer? Que é que queres?
Ajudou-a a carregar a bacia com a sardinha e o resto das tralhas em cima da carroça. Depois, ajudou-a a subir. E, embora viesse preocupado e a magicar num qualquer problema que não tinha conseguido resolver, foi-lhe dizendo, a brincar, mas com malandrice, como era seu hábito:
- Olha que estas coisas pagam-se... E pagam-se caro!... Lá mais pra baixo, ao pé do lagar do Palmazes, há umas moitas... Podíamos lá parar e...
- Cala-te, cala-te! – atalhou ela, rindo-se. – És mesmo um doido!
E abalaram. Ela, contente por não ter de palmilhar os três quilómetros que a separavam da aldeia, carregada que nem uma mula; ele, mudo, enfronhado nos seus pensamentos... Ia tão abstracto que nem se dava conta da maravilhosa paisagem que iam percorrendo e que se renovava a cada curva da estrada: a vegetação exuberante, numa mistura de espécies e de cores – os pinheiros, os loureiros, alguns castanheiros, as acácias floridas que juntavam o seu perfume ao do feno e ao do rosmaninho; o murmúrio da folhagem dos salgueiros e dos choupos e o rumorejar da água que corria no valeiro... Ia tão absorto que nem se deu conta que já iam a ultrapassar a zona do Lagar...
Foi a voz dela que o sobressaltou e o tirou do vazio para a realidade. Numa voz dengosa, carregada de entoações cúmplices e veladas insinuações, dizia ela:
- Ó Aguamata! Então... não páras?!...
***
O meu amigo Aguamata foi hoje a enterrar.
Era Novembro, e chovia se Deus a dava! Havia uma semana que a água caía abundante e incessantemente. Os terrenos empapados, as estradas e os caminhos enlameados, a Ribeira quase a extravasar. Os noticiários davam conta que o mau tempo grassava de Norte a Sul.
A Revolução tinha sido em Abril, mas o País vivia ainda em polvorosa: a Reforma Agrária, as ocupações selvagens, os Retornados, etc.. *
A aldeia também fora contagiada... O povo debatia-se e enfrentava os problemas e os diferendos com a Casa Branca e o pessoal que lá trabalhava. A Casa Branca era a Empresa que, desde o início da década de 60, havia de projectar a aldeia, social e economicamente, no Futuro. O Aguamata pôs-se à margem das questiúnculas. Não queria saber de querelas para nada, pois, dizia ele, já tinha idade para ter juízo.
- Esta gente emaluqueceu! – sentenciava ele, já ourado pelo vinho.
Também lá trabalhara, como jardineiro, até o reformarem por limite de idade, já lá iam uns quatro ou cinco anos. Não obstante a sua idade, já avançada, conseguira o lugar logo que a Empresa iniciara a actividade. A Administração decidira, de colaboração com as Autarquias, transformar aquele largo, a que o povo chamava Pátio, num jardim. Vendera as carroças e os bois, desfizera-se das suas meninas e dedicara-se, de alma e coração, ao seu novo mister. Com tanto empenho o fazia, que não raro o viam, de mangueira em punho, a esguichar água para cima da rapaziada que pisava os canteiros só para o arreliarem. Aos mais graúdos, corria-os à pedrada.
***
Continuou a viver só. Bastava-lhe a pequena pensão que recebia e aquilo que ia buscar às fazendas, que um ou outro amigo o ajudava a amanhar.
Com as confusões e devido à chuva, ninguém deu pela falta dele. Numa quarta-feira, à tardinha, com o tempo já mais estiado, a Andrelina do Tapado ouviu um cão a uivar. Foi ver. De longe, pareceu-lhe reconhecer o Tinoco. Foi-se aproximando, devagar, pelo carreiro fora, cautelosamente, e a cena que se lhe deparou deixou-a estática, petrificada. Horrorizada, desatou a gritar. Gritou tanto, tanto e com tanta força, que se ouviu em toda a aldeia. Acorreu gente de todo o lado.
O Aguamata jazia, de borco, com a cabeça enfiada num valado e os pés e metade do corpo assentes no carreiro. Estava inchado como um sapo. A seu lado, via-se um cajado, a que ele viria apoiado, e uma pequena seira, donde tinham caído alguns legumes e fruta. Mais adiante, levado pela água do valado, foi encontrado o seu velho guarda-chuva. Fizeram-se muitas suposições, mas a mais certa seria a de que ele teria ido à sua fazenda do Pisão e que, na volta, dado o mau tempo, tinha atalhado caminho pelo Tapado.
Da Sede do concelho, veio uma patrulha da GNR, o Delegado de Saúde e outras Autoridades. A autópsia revelou que já estava morto há mais de quarenta e oito horas e que a causa da morte fora o afogamento. Disseram que parecia um odre... Foi-lhe encontrada grande quantidade de água no estômago e nos pulmões. Num homem que nunca bebera uma gota de água em toda a sua vida!... O Destino, por vezes, tece malhas esquisitas...
Ainda no local do acidente, o Delegado de Saúde aproveitou o ensejo para fazer algumas considerações sobre o alcoolismo, os comportamentos dos alcoólicos e os riscos que corriam...
Mais tarde, no seu estabelecimento, comentaria o Manel da Lídia:
- Pois... pois! Mas foi a água que o matou! Razão tinha ele: a água mata!
E foi este o elogio fúnebre do meu amigo.
* – O “etc.”, neste contexto, não significa ignorância, desconhecimento ou esquecimento. Significa, tão-só, que nele se incorporam factos que em nada interessariam a esta narrativa, isto é, histórias de outra História.
Nota do A.
F I M