O TRACTOR
A bolanha ficara para trás. Começara a marcha quando os últimos pára-quedistas pisaram terra firme e dissimularam os seus apetrechos. Era o fim de um dia de Maio. O horizonte, matizado entre o rubro e o laranja, a indiciar mais calor, emoldurava o disco solar, enorme, a esconder-se lá bem longe por detrás daquela vintena de homens que ora corriam em ziguezague, oram abaixavam e paravam para de novo recomeçarem rastejando, pernas e cotovelos no chão, segurando as “G-3” em posição de atirar.
O ar que se respirava era sufocante, um calor insuportável envolvia-os até à medula. Debaixo dos camuflados sentiam a viscosidade do suor misturado com o pó fino daquela avermelhada terra, que se infiltrava pelos mais ínfimos orifícios dos uniformes. Nuvens de mosquitos embatiam contra os rostos pegajosos daqueles intrépidos soldados, provocando uma sensação indescritível de doloroso mal-estar.
Mas iam... iam... e assim continuaram por duas longas e terrificantes horas. Sabiam que o inimigo se acoitava algures na densa mata do Oio. Tinham de ser desalojados. E eram eles, sempre os bravos pára-quedistas a fazerem o reconhecimento do terreno. Informações recentes diziam que a região estava infestada de casamatas com sofisticado material bélico. A artilharia concentrava-se a cinco quilómetros de distância para avançar. Previa-se um combate violento. A floresta quase impenetrável aumentava sobremaneira as dificuldades e os riscos eram inimagináveis, com a agravante de não poderem contar com a Força Aérea, pela falta de visibilidade no solo. O comandante do pelotão, tenente Fernandes, homem abnegado e óptimo estratego, conhecedor profundo da guerrilha nas matas, experiente condutor de tropas com uma brilhante carreira em comissões efectuadas em Angola e Moçambique, seguia na frente acompanhado pelo furriel Macias. Este tivera o condão de o conhecer como instrutor desde o tempo de recruta. Aprendera com ele todos os subterfúgios a que o pára-quedista deve recorrer no campo de batalha. “E esta seria uma missão como tantas outras”, pensava o furriel, enquanto atentava à folhagem das bananeiras que enchiam a bolanha.
Tornaram-se amigos. O tenente já tentara convencê-lo a seguir a carreira militar. O Macias era miliciano e, se quisesse, poderia frequentar a Academia. Gostava de acção, mas uma comissão, na Guiné, chegava. Pela enésima vez saíam em missão. Travaram muitos combates, mas a sua companhia continuava, graças a Deus, sem baixas. Era até apontada como exemplo.
Não se podia queixar. Até tinha o privilégio de, de quando em vez, ser visitado pela esposa em Bissau, o que, por coincidência, acontecia agora e seria a última, pois estava a dois meses de passar à “peluda”…
Haviam-se embrenhado na parte mais densa da floresta...
Salvo o gorjear das incontáveis espécies de aves que em bandos procuravam as copas mais altas das árvores para passar a noite e os uivos irritantes dos chacais, tudo o resto era silêncio, aquele silêncio atroz que prenuncia um cataclismo iminente.
— Não ouviu, meu tenente? — Perguntou o furriel.
— Calma Macias! Fique aqui. Ordens à rapaziada para esconder-se, mas de modo que cada um saiba a posição do camarada que se segue. Eu vou continuar mais uns cem metros para norte e tentar descobrir o que se passa. De facto ouvi uns sons estranhos nessa direcção — confirmou o tenente.
Mal tinha acabado de proferir tais palavras e um tiroteio infernal ecoa por todo o lado.
— Estamos emboscados — gritou! — Aos seus postos e mensagem a Mansoa.
Foram quinze minutos de luta insidiosa, dantesca, com os rebentamentos das granadas a misturarem-se com o metralhar das “G-3” e os estampidos das espingardas inimigas.
Pela primeira vez, ao fim de vinte e dois meses, os gritos de raiva daqueles corajosos soldados substituíram os cânticos de vitória.
− Reagrupem-se. * Ordenou o tenente. * Há muitas baixas? * Perguntou.
− Está o telefonista ferido, mas parece não ser grave * responderam-lhe.
− O nosso furriel? * Continuou.
− Foi com cinco homens no encalço de um grupo * retorquiu o cabo.
− Agrupe mais cinco e dê-lhe apoio pelo flanco direito. Os restantes venham comigo.
Acto contínuo duas enormes explosões, quais crateras vulcânicas em erupção, cortando cerce dezenas e dezenas de majestosas árvores indicam a posição do furriel que, com a mini-secção, acabara de destruir as casamatas que serviam de quartel-general ao inimigo.
Adormeceu! Não via, não ouvia, não sentia. Sonhava! … Não tinha percepção do que lhe acontecera. Mas sonhava! … Sonhava com a sua aldeia, com os pais, com a mulher… Faltavam dois meses para terminar a comissão e não queria voltar à guerra. Iria para a Metrópole e passaria à disponibilidade. Voltava a sonhar: “Vou ser lavrador. Vou ajudar os meus pais, que passaram uma vida de trabalho. Vou dirigir o tractor; vou ampliar a vacaria; vou comprar mais turinas…” E foi sonhando… Reviu a sua infância, a sua juventude, o seu casamento… Como a Júlia ia linda no seu alvo vestido de cambraia… Fora por causa dela que ele deixara o seminário… E o Tonho? Esse tinha que lhe vender aquela vinha ao pé do Salgueiral…
»»»»»»»»»»««««««««
* Enfermeiro! Enfermeiro! * Chamou a Júlia, que há dez dias não saía de junto da U.C.I. do Hospital Militar de Bissau. * O meu marido abriu os olhos e quer falar! Acordou, meu Deus, acordou! …
Acordara, efectivamente… O furriel Macias havia passado onze dias em estado comatoso. Salvara-o o soldado Pimenta, arrancando-o às chamas do inferno oinca, com as pernas esfaceladas por uma mina.
Como sonhara no seu letargo, iria para Portugal; não voltaria para a guerra. O tractor, porém, esse seria substituído… por uma cadeira de rodas.