O CONVERTIDO

(Pum!...)

“Fui atingido”.

Continuou a andar resguardado pelo capim seco e cortante.

“Devo ter-me afastado do grupo quando rebentou a primeira granada. Há quantas horas isto começou?”

(Pum!...)

“Os gajos não param a morteirada”...

Mal conseguia deslocar-se. O camuflado transformara-se numa couraça penosa pela aderência da terra, ora barrenta ora negra, ao lago vagante em que o seu corpo se convertera. A boina há muito havia desaparecido da cabeça e agora sentia as ferroadas dos milhentos insectos que povoavam a atmosfera. O calor, dum céu encoberto e pesado, e a humidade visível e percuciente, asfixiavam; as forças começavam a faltar-lhe.

(Pum!...)

Cada vez mais perto ouvia o ribombar dos petardos do inimigo, conhecia-o bem, e não entendia a falta de réplica dos seus camaradas.

“Será que foram todos dizimados? Não pode ser”.

O medo apoderava-se de si, não obstante ufanar-se de ser um “comando” experiente com um baptismo de fogo perdido no tempo. Alistara-se como voluntário. Não tanto pela sua índole beligerante, mais pelas dificuldades em conseguir empregar-se na pequena aldeia onde nascera. Afinal antecipara em dois anos o seu ingresso no exército. Ninguém escapava ao serviço militar e com o curso do liceu concluído não vislumbrou outra alternativa para se iniciar na vida como independente. Sabia do sacrifício dos pais, pequenos lavradores caseiros, para o manterem nos estudos. Concorrera a copista da Câmara do concelho, mas à pergunta sacramental sobre a situação militar, viu de imediato fechar-se-lhe a porta sem quaisquer explicações.

Tentou descansar, sentiu, porém, o restolho de algo que deslizava atrás. Desviou-se um pouco, não podia arriscar. O denso capim impedia-o de identificar o que quer que fosse. Poderia tratar-se do inimigo na sua peugada. As forças estavam a abandoná-lo irremediavelmente. Já não pensava; apenas um instinto de sobrevivência o animava. A razão fugia-lhe.

“Mais um esforço”, parecia ouvir.

E aquela massa pícea arrastando-se agora na bolanha que dava continuidade ao capinzal, estagnou. O lamaçal que se seguia era aterrador, mas um certo frescor de humidade sob o corpo devolveu-lhe algum alento. Escorregou para o arrozal e chafurdou-se no húmus. Tinha sede! Já com as mãos em forma de concha para beber aquele pestilento líquido lembrou-se pela primeira vez do cantil. Apalpou-se. Ali estava, decomposto na sua forma, mas intacto no conteúdo. Virou-se de costas e tentou soerguer a cabeça. O pescoço não correspondia; achava-se hirto.

“Estou estropiado, devem ter-me atingido na coluna”.

Num esforço desesperante alcançou-o com a mão direita e o que encontrou fê-lo entreabrir os lábios numa espécie de sorriso, amargo como o fel, um esgar de dor e confusão, contudo indelével atenuante ao atroz sofrimento que o envolvia. A barrenta terra havia aderido ao suor em camadas sucessivas e juntamente com a lama em contacto com o quente ar tropical formara-se um grotesco colar cervical que lhe paralisava os movimentos da parte superior do corpo. Ciente da situação enterrou a seu lado, de pé, a coronha da “G-3” e encetou alguns movimentos laterais contra o cano da arma, que logo fragmentou a matéria.

Então bebeu! Não sofregamente, de acordo com os conhecimentos adquiridos, mas com a possível parcimónia duma ressequida garganta à beira da sufocação. Deixou-se ficar uns instantes naquela posição de descanso, todavia...

(Pum!...)

“Mas isto não tem mais fim?”

Preparou-se para iniciar um penoso engatinhar, joelhos e cotovelos na lama, a “G-3” à deriva numa e noutra mãos, o cantil, até ali incógnito, começava a estorvar-lhe o já de si caricato deslocamento. Olhou à sua frente mais uma vez, mas naquela peculiar postura de quadrúpede desalentado, via-se unicamente como um ser abjecto, entregue ao seu próprio destino. Circundavam-no gigantescos caules amarelecidos à espera de foice ou catana e rematados por frondosas espigas de arroz, espessa cortina a desorientar a mais ténue estimativa sobre o caminho que o levasse a porto seguro. Fixou-se naquelas gramíneas e deixou deambular o seu pensamento pelas origens, pelos campos abundantes do seu Ribatejo. E pensou nos pais, nos irmãos, nos amigos; no seu amigo “Barca”, companheiro e confidente de tropa, destacado como ele em terras da Guiné, um melancólico que lhe falava tanto na terra e lha descrevia com tais pormenores que ele próprio já a conhecia sem nunca ali ter assomado. Depois de se deliciar com uns dias na sua aldeia e extasiar-se com a convivência da família e amigos a primeira visita seria para o “Barca”, já lho havia prometido, e para a irmã deste, a Tocas, sua madrinha de guerra por apresentação do irmão. Escolheria a altura das festas, que o amigo lhe dizia serem das mais bonitas do Minho. Mas isso ainda demoraria. A comissão, a segunda, estava a meio. Pensou... pensou... Pensou naquela maldita guerra, que já lhe levara alguns amigos, e invectivou a decisão do seu voluntariado.

“Estou a ficar maluco”...

Nunca lhe acudiram tantas reflexões e o seu depauperado intelecto era agora albergue das mais estapafúrdias fantasias. Tentou desprezá-las, mas sobreveio-lhe, para maior infortúnio, uma certeza por demais evidente: Sentia fome! O cérebro, manhoso como só ele, consegue maneira de esquivar-se a pressões externas, mas o hipotálamo não lhe dava hipóteses. Há muito que o estômago reclamava e agora passava a constituir permanente obsessão. Havia perdido a noção do tempo, todavia há largas horas que sobrevivia à fatal emboscada. A ração de combate desaparecera na sofreguidão dos primeiros tiros, quando foi necessário abandonar a mochila e ainda supunha que, como de costume, eram favas contadas o rápido controle das operações. Só que desta vez as forças inimigas, além de numerosas, foram demasiado velozes na tomada de posições deixando-lhe, e aos seus homens, providencialmente, apenas uma nesga de terreno com alguma segurança. Gritara ordens para abrigo e a partir daí nunca mais ouvira o metralhar das suas armas. Era a batalha mãe da sua vida, com o inimigo poderosamente armado e técnica de guerrilha avançada.

Voltou a sentir o mesmo rastejar a seu lado, a uns dez metros de distância. Por não correr a mais leve brisa facilmente se apercebia do cuidadoso deslocamento do ser que lhe pedia meças.

“Querem apanhar-me vivo”...

Lembrou-se então dos horrores passados por outros camaradas capturados pelo inimigo e mais uma vez se arrependeu não ter seguido o caminho dos que se negaram, fugindo, ao cumprimento do serviço nas fileiras.

“Parar será o meu fim”.

Prestes a desmaiar arrastou-se mais uns metros bolanha adentro, até que encontrou terreno seco. Começava a floresta; densa, misteriosa, intransponível, contudo paradigma de oásis para a sua recuperação. Conhecia toda a espécie de raízes e frutos silvestres capazes de o revigorar. A noite aproximava-se.

“Que é o que vejo? Estou perdido, nada me salvará”.

A escassos vinte metros, em posição de investida, entre o tronco e o galho mais baixo de um copioso ébano, a temível onça preta preparava-se para uma lauta refeição. Acompanhara-o em todo o percurso; paciente, traiçoeira. O perspicaz e velhaco felídeo conhecia o terreno que pisava. Estava no seu habitat. Não deixaria escapar a sua presa.

Completamente abandonado, sem forças, a mente confusa, o miliciano Abecassis, num primeiro impulso, levou a mão à “G-3” e preparou-se para apontar.

“Não faças isso! Não vês que logo serás descoberto?”, gritou-lhe o subconsciente.

Recordou a última carta da madrinha de guerra, que considerava há muito a sua namorada, não obstante pretender formalizar essa situação numa visita pessoal a terras do Minho se conseguisse voltar a Portugal; a ternura com que lhe falava nas últimas festas da sua vila, verdadeiro manancial literário de narrativa, quais figuras impressas na celulóide dos grandes realizadores. Como devia ser bonita a terra do “Barca”. A ênfase que a Tocas colocava na “majestosa”, como ela dizia, procissão em honra de Santo...

“Santo Quê?”...

Não conseguia recordar. Salvo o nome dos santos mais populares, o Abecassis não conhecia nada de Igreja.

“Mas é a esse santo sem nome que eu peço a sua intercepção para me salvar, com a promessa de me converter”.

E pediu com fé, ajoelhando-se num supremo esforço, acto que praticava pela primeira vez na sua vida.

(Pum!...)

Estávamos em Agosto. O despertador tocou! O Abecassis sobressaltou-se na cama da pensão onde se hospedara na noite anterior. Meio estremunhado passou as mãos pelo rosto, coberto de suores frios.

“Maldito pesadelo, que voltou a apoquentar-me”.

Tinha chegado da Guiné há cinco dias e depois duma passagem pelo Ribatejo ali estava na terra do “Barca” para pedir a mão da Tocas e agradecer ao santo.

(Pum!...)

Era o último foguete da salva anunciadora da romaria de S. Bartolomeu.

J D Lima Oliveira
Enviado por J D Lima Oliveira em 01/04/2009
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