Um conto sobre a amargura
De joelhos em frente ao vaso sanitário, ela enfiava o indicador sem piedade no fundo da garganta. Os espasmos vinham acompanhados de tosse, os olhos enchiam-se de lágrimas involuntárias e o chocolate antes doce fazia o caminho inverso do estômago para o esôfago, enchendo sua boca, e sua vida, de amargura. Repetiu a operação e os espasmos voltaram mais fortes, apertou a descarga e o redemoinho da água levou-a a tempos imemoriais, lançando-a numa vertigem de memórias dolorosas.
Viu-se criança, sozinha num canto do pátio da escola devorando seu grande sanduíche de mortadela seguro em suas pequenas mãos fofas, cheias de furinhos. Lembrou-se das crianças correndo, brincando, sorrindo e de vez em quando dirigindo-se a ela em zombaria. “Baleia, Bolo fofo, Pudim de banha” Hahahahahahahaha, as risadas ecoaram pela sua mente, como fantasmas ancestrais despertos com fúria. Lembrou-se das festinhas de aniversário e da resistência que tinham em convidá-la. Os olhinhos brilhantes que fitavam o bolo, os doces e salgadinhos enquanto repetia para si mesma que não avançaria sobre eles. A recomendação da mãe durava apenas o tempo dos olhos percorrerem todo o banquete e a saliva inundar-lhe a boca.
Viu-se adolescente, jovem. A garota que divertia todo mundo. Tiradas inteligentes, humor fino, conquistados com astúcia, alternativa para sobreviver ao limbo social a que estão condenados os gordos. Pensou nas inúmeras festas que deixou de ir porque não havia uma só roupa adequada que lhe coubesse. Lembrou-se dos acessórios, dos decotes e transparências que simplesmente não estavam ao alcance de seu manequim de proporções ignoradas pela moda. Lembrou-se dos homens que desejou e que jamais pensaram em beijá-la.
Na vida adulta, era dominada pela frustração das inúmeras dietas em que aventurou-se sem sucesso, pelo profundo desânimo das artimanhas inócuas que inventava para comer menos. E os programas, as nutricionistas, os médicos e terapeutas a que recorreu inutilmente! Nem mesmo com o casamento conseguiu mudar o rumo de sua vida. Olhava para o marido com um humilhante sentimento de inferioridade, de gratidão pelo seu sacrifício. Vieram os filhos e, com eles, mais peso. Com o tempo, mais dor ao notar-lhes os olhares de reprovação, de angústia ao verem a mãe matar-se dia após dia na comida.
Agora, ali, reduzida ao seu monstruoso distúrbio percebia que comia toda a sua vida. Comia rejeições, culpas, inseguranças, ausência de auto-estima, infelicidade, impotência. Comia seu desespero diante do que sempre foi e do que poderia ter sido. Estava cansada de sentir pena de si mesma, de lutar a vida inteira contra um inimigo que jamais lhe daria trégua. Havia pouco mais de um ano que rendera-se àquela prática como mais uma tentativa contra sua gula desmedida, incontrolável. Não estava funcionando. Pensava em tudo isso, chorando, encolhida no chão do banheiro, sentindo tremores de frio, cansada demais para levantar-se, para reagir, para gritar por socorro. Olhou o relógio, ainda tinha alguns minutos para dedicar-se ao seu drama particular. Dali a pouco precisaria recompor-se para receber os filhos, o marido e cuidar do jantar.