O ESPELHO
Eram dezoito horas e trinta minutos do vigésimo quarto dia de dezembro, o sol, de forma crepuscular, não domina mais o ocidente e, comoventemente, diz adeus aos seus admiradores. Alugo o retrato de minha mulher já falecida há dez anos para confraternizar o feito juntos, tentando emprestar àquela coisa inanimada, as cores da minha aura quase apagada.
Ainda não passei do meu septuagésimo ano e, mesmo assim, pouco consigo sair da cama, objeto este que virou, há muito, um ente bastante próximo e não muito bem quisto. Conheço cada móvel deste apartamento, cada viga levantada. Na parede escondem-se todas as conquistas, alegrias, derrotas, choros, emoções já escamoteadas pelo tempo, porém, realçadas pelo seu inigualável azul repintado, e pelos quadros tornados a ouro e a madrepérolas. O meu quarto é meu esconderijo, gosto dele, é minha referência neste final de século; entretanto apenas um objeto, aparentemente sem vida, é temido por mim e por ele sou atormentado.
Levanto da cama com certa dificuldade, entristecido pelo que me aguardava, pressentimento. O alvo está a alguns metros de mim, pego minha muleta, que estava encostada na mesa de cabeceira, ergo-me e vou a direção de meu inimigo, tento convencer-me que não tenho nada com que me preocupar, mesmo assim eu sei que o impacto será inevitável e estarrecedor.
Aqui estou eu, de frente a tal objeto tão cobiçado pelas mulheres e desdenhado pelos homens. Sua grandiosidade e beleza não me chamam mais tanta atenção, não desentrava minha comoção como nos anos de minha juventude, apenas olho e olho tentando reter minhas emoções tão esmigalhadas nesses últimos trinta e um anos, onze meses e vinte e quatro dias, contados como se conta moeda de planos econômicos passados e irreais.
Em um movimento brusco e corajoso, dou de olhos a olhos, é uma acareação; um pedido de desculpas para muitos que magoei e podei durante anos de minha existência terrena, passei por cima de muitas pessoas, enganei honestos e desenganei desonestos, sou réu confesso. Começo a me lembrar de tudo.
Era natal de mil novecentos e sessenta e nove, eu ainda estava no meu escritório de advocacia numa bem conceituada e cobiçada sala na avenida Rio Branco no Rio de Janeiro. Toca o telefone.
Sr. Aurélio Condes de Toledo, bom dia.
Sim.
Desculpe minha interrupção, mas sua esposa quer saber que horas o senhor vai chegar em casa.
Não tenho hora. Desliguei.
Minha arrogância tinha nome e se chamava Bárbara. Uma loira de um metro e setenta e cinco de altura, cento e sete de quadril e sessenta e dois de cintura, uma escultura de Dali alimentada por letras célebres de Tom Jobim. Cândida e meus três filhos estavam ansiosos por me ver, eu sabia disso, era consciente, entretanto estava nas brenhas da ilusão, dos prazeres carnais. No dia anterior, véspera de natal, a justiça tinha acabado de penhorar todos os bens de um pobre coitado, pai de família, um inocente perante Deus, mas não para a sociedade. Eu tinha meu quinhão nisso, esse processo valia muito para mim; eu só queria mais, mais e mais(ego ao extremo). ¨Réu confesso e daí¨, eu pensava.
Às vinte horas e trinta minutos do dia vinte e cinco de dezembro, estava ainda na voluptuosidade, corri tanto para o fundo que perdi o caminho de volta. Sexo e drinks me dominavam, consumiam-me.
Depois da meia-noite, Bárbara me pediu para levá-la em casa, no subúrbio do Rio.
Meus pais estão me aguardando, devem estar preocupados, disse ela muito nervosa. ¨Pudera, ela só tinha dezenove anos¨, eu pensei.
Deixei-a na porta de sua residência, dei um beijo caloroso de despedida e cantei desafinadamente os pneus, fazendo o retorno do carro em direção à rua Visconde de Pirajá em Ipanema. No caminho passei por várias favelas e lembrei-me dos homens que tinha prejudicado, um ¨flash¨ que insistia em passar despercebidamente, mas a justiça que os antigos teimavam em falar que galopava, agora viria confortavelmente em um jato de última geração.
Cheguei no portão do meu prédio duas horas depois, estava chovendo muito, tinha enfrentado algum trânsito e alguns pedintes os quais fiz questão de sujá-los nas poças formadas por bueiros entupidos.
LADRÕES. Gritava colérico.
Depois que estacionei o carro na garagem, peguei o elevador e o mesmo parou no térreo, a coisa era como se fosse feita a pedido, o porteiro estava a mirar-me pela pequena janela e a rir comedidamente, não liguei, apertei o botão da cobertura e segui. Estava titubeando e zonzo. Cheguei à porta de meu apartamento girei a chave, acendi a luz e então veio o choque.
Cândida não estava, sumiu; nem ela, nem meus filhos e nenhum móvel da casa. A justiça chegou bem mais cedo que pensara. Levou nossa mobília importada, nossos quadros de pintores famosos, suas jóias, sua esperança, meu coração e minha redenção. Acabou.
Fui até o nosso quarto e o telefone estava no chão, tentei falar com Bárbara, explicar tudo o que aconteceu, porém, ela não quis atender. Cândida já havia me falado que isso aconteceria, no entanto eu não dava ouvidos. Ria e caçoava. ¨Ela não teria coragem¨, pensara.
Aqui estou eu, só como uma erva daninha no agreste. ¨É um convite ao suicídio¨, raciocinei. Peguei alguns jornais e retornei ao quarto, sentei sobre, e tentei concatenar idéias sóbrias misturadas com álcool. O vazio era tudo que vinha a mente, a solidão sem fronteiras e sem volta. A minha perturbação era tanta que pensei ter visto um vulto. Ergui minha cabeça e a girei para esquerda e vi, vi tudo o que não queria ver, o reflexo de minha desumanidade, dos meus pecados, dos meus erros mundanos. Eram seis horas e trinta minutos e o sol se aproximava.
Próximo ao final do milênio, dia seguinte a minha ponderação de vida, eu faleci; e levei comigo aquela imagem que desagradara a todos, mas que para mim era tudo o que eu conquistara...