“La Cumparsita”
Eram pessoas comuns com seus rostos comuns, expressões cansadas e uma tensão intrigante no olhar. Poderiam passar despercebidos, diluídos em meio à multidão.
Agora estavam no centro, gerando uma gravidade que atraia atenções. As mãos posicionadas como fizessem parte da composição de uma imagem, movimentos sincronizados que pareciam determinados por uma única vontade. Eles tinham proporções que se complementavam, uma estatura que obrigava a uma postura altiva, um olhar alto, de enfrentamento e deferência.
O centro daquele salão reduzia as pessoas a suas expressões mais marcantes e aquele tango era a alma daquele lugar. Havia uma segurança construída na intimidade das coisas comuns que tornava simples uma seqüência de “ganchos” e “ochos” de tirar o fôlego. Os quadris se tocavam num contato discreto e carregado de significações, as pernas entrelaçavam-se numa trama de harmonia e sedução. Não havia apelo físico, era uma aura de sensualidade febril tecida nos acordes de um nostálgico bandoneon numa orgia de pernas e olhares. Aquela linguagem de corpo em movimento havia atingido a plenitude naquele casal, o domínio pleno do espaço, o compasso sendo contado nos corpos, na respiração... O contato passional, quase bruto com aquele corpo feminino que dialogava sem capitular.
A melodia melancólica preenchia de fumaça e brilho tornando o conjunto de sensações uma atmosfera de paixão e conflito. Os corpos desenvolviam uma coreografia impenetrável para uma platéia alheia a tudo que ocorria fora daquele espaço. Os freqüentadores habituais desfrutavam de um encantamento que já parecia perdido nas práticas e nos treinos, quando a técnica domina a arte, e subverte sua alma.
Eles construíram e disseminaram uma linguagem sensual e grave. Suas mãos pregavam proximidade e abandono; numa postura contida que não escondia a energia que geravam e se desprendia. Os olhos expressavam as vontades de um amor insondável.
Viviam o limiar da afeição e da inveja, da admiração e da soberba, naturalmente contidas na caprichosa união daquelas almas perdidas, que se revelava apenas no centro daquele palco aos olhos dos amantes de uma velha arte de amar e amar.
Havia velhos dançarinos que disfarçavam suas emoções, rememorando momentos que viveram a vertigem da intimidade com a perfeição. Os músicos revigoravam-se ao tocar para eles, pois compartilhavam da satisfação de todos na explosão de aplausos, final que coroava o desempenho como êxtase.
Agora estavam prontos, viveriam da energia daquele encanto, a delicadeza de cada gesto desmontado da postura, num outro compasso; seriam apenas os artistas de sempre dançando uma antiga dança, um tango intenso e particular. Saíram abraçados levando a alma da noite e todas as suas esperanças.