Memórias de um Mendigo
Num dia qualquer do início de dezembro, acordei cedo e notei minha garrafa vazia.
A noite passada foi foda, o vento zunia desesperado em meus ouvidos, ainda bem que a pinga durou até eu dormir. É a maior delícia dormir sob o efeito da branquinha. Que vocês não venham me criticar, eu bebo não é por que gosto é a situação que me obriga. E agora deu pra ter manda chuva dando pauladas nas nossas cabeças, achando que nós somos sacos de lixos. Aí é que tem que beber mesmo.
Esperei a multidão acabar, foi melhor assim, depois me levantei e fui na birosca do seu Jorge tomar um pingado e encher a minha garrafa.
O que me chama a atenção no meio desse povo indo trabalhar, são as mulheres vestidas em trajes mil. No calor é pior ainda. Falo pior por que comigo o buraco é mais embaixo. Eu também sou ser humano e como tal também tenho desejos sexuais. Quero trepar, comer, realizar fantasias e gozar. E pra realizá-los é só por meio da masturbação, não há outro jeito. Nessa parte ainda dá pra realizar, o difícil é os meus sonhos que alimento desde que vim morar na rua.
Sempre fui um sujeito muito confuso. Quando tinha meus vinte e quatro anos estava revoltado com muita coisa em minha volta. Nessa época eu lia bastante coisa sobre as revoluções, as teorias, os pensadores como: Karl Marx, Aristóteles, Descartes, Kant, Rousseau, Maquiavel e Platão.
Eu não tinha com quem conversar, as pessoas que estavam em minha volta não acompanhavam o meu raciocínio. Pra ter certeza que tudo o que eu estava refletindo não era fruto do meu ser confuso, resolvi me posicionar. A primeira coisa foi me limitar a consumir determinados produtos dos Estados Unidos, e olha que argumentações não faltavam. Depois fui me fechando até acreditar na auto-gestão, e não mais pagar impostos, onde eu mesmo poderia consumir minhas próprias produções, desde meu café da manhã até a cama que acomodaria o meu sono. É claro que isso envolvia um carro também.
Mas as minhas reflexões foram tão profundas que aqui estou, dormindo na rua sem pagar aluguel, sem colaborar com o pagamento da dívida externa, sem pagar imposto, sem contribuir com merda nenhuma.
Quando tirei a conclusão me achei um grande idiota, pois para fazer minha própria roupa eu teria que comprar o pano, a linha de costura e uma máquina. Porra, o pano viria da industria, a linha e a máquina também, aí não dá. Lembro que cheguei a pensar até no pequeno tubo que viria enrolado a linha de costura.
Vim morar na rua.
Na época em que eu lia os pensadores também procurava informações atuais, pra isso eu precisava da porcaria da televisão que para assisti-la era necessário consumir energia, e era nesse momento que estavam discutindo a privatização das empresas fornecedoras de energia.
Ás vezes apelava para os jornais vendidos nas bancas, mas era a mesma coisa, o dinheiro que eu pagava ao jornaleiro era dividido entre ele, o distribuidor, os editores, a gráfica e automaticamente cada um pagava suas contas com esse dinheiro.
Queria arranjar um jeito de boicotar tudo, a empresa de telefonia, os artistas fabricados pela mídia, o tênis da apresentadora de televisão, a bicicleta de dezoito marchas, o carro do ano, a comida enlatada e várias coisas mais. Evitando consumir tudo isso, naturalmente eu não contribuiria com o salário daquele soldadinho de chumbo.
Estava revoltado ao extremo, e pra não mandar todos tomarem no cu, resolvi morar na rua, pelo menos aqui não pago imposto nenhum, e olha que continuo atualizado. Tem uma banca de jornal ali na Ipiranga onde o jornaleiro que me considera muito, devido as minhas dissertações, deixa-me ler todas as notícias dos jornais diários.
Não vou dizer que aqui é o paraíso, mas só pelo fato de eu não estar contribuindo com nada, já me realizo internamente. Agora pouco estava dando altas gargalhadas com um companheiro de rua. Felicidade em não fazer um filho que já iria nascer devendo.
Já é noite.
Junto meus panos, pego minha garrafa e me recolho.