A visita

Caminhava para o fim o dia 31 de dezembro de 1999. Naquele derradeiro espasmo de vida que apresentava o ano, tudo tomava uma forma exacerbada de melancolia e miséria (a melancolia da vida e a miséria do homem). Bem pesado e bem medido, esses dois fatores faziam com que ele vislumbrasse um mundo distorcido, que beirava o surreal. Fragmentado sobre o sofá da espaçosa sala de visitas, ele sabia que tudo aquilo nada mais era que o amargo fruto das intempéries, desilusões e egoísmo, inundados por considerável dose de erros, suscitando sentimentos ora vencidos, ora esperançosos.

Eram onze e quarenta e cinco. Ao longe, alguns fogos de artifício preparavam a chegada de um ano novo, repleto de esperanças e expectativas. Um ano que certamente seria novo, que seria melhor. Porém, de concreto mesmo, somente o desgastado discurso hipócrita de todos os passados anos novos, todas as promessas inúteis de mudança, enfim, a mesma ladainha superficial e sem conteúdo e suas superstições cansadas.

Ele levantou-se calmamente e observou com cautela tudo que o circundava. A penumbra que dominava o cômodo fazia daquele momento o último dia da vida e não do ano. A casa estava adormecida. Nenhum sinal de comemoração agraciava o ambiente, silencioso e sombrio que possuía as feições de uma caverna inóspita, não de uma moradia. Tudo naquela casa tinha o ar do fim; e nada naquela casa tinha o tom do recomeço.

Júlio caminhou pelas salas, quartos e parou na cozinha. Da única parte iluminada da edificação ele podia ter uma melhor visão de sua tristeza e solidão. Acendeu um cigarro e fumou. Sobre a mesa, sem toalha e repleta de insetos mortos, uma garrafa de vodca o convidava como companhia. Acendeu outro cigarro. Apanhou a garrafa e serviu uma farta dose. Ateve-se na cozinha até o copo esvaziar-se e as doze badaladas trazerem o ano de 2000. Os variados fogos de artifício traziam seus diferentes sons, suas múltiplas formas e a mesma irritação de todos os outros anos.

Retornou à sala, deitou-se no sofá e aguardou o findar dos fogos. Adormeceu pouco depois do último estrondo, que se fizera por volta das doze e trinta.

Eram sete e cinquenta. Primeiro dia do ano 2000. Júlio abriu os olhos e espreguiçou-se. Ao tomar plena consciência das coisas, sentiu um amargo na boca e uma leve tontura. Foi ao banheiro, banhou-se e fez a higiene matinal. Tinha os olhos ainda turvos, e na esperança de um dia claro, abriu a porta frontal da casa. Decepcionou-se. Uma faixa escura de nuvens cinza e carregadas estendia-se por todo o horizonte. Um vento não muito comedido e intermitente varria as ruas, beijava agressivamente as árvores e trazia mais melancolia ao primeiro dia de janeiro. Júlio observava a cena com um tom introspectivo e sereno, transparecendo nos olhos toda a amargura dos pensamentos. No peito um vazio lhe comprimia, enquanto na alma, um feixe de acalento surgia, juntamente com um clarão que se fez no horizonte, dissipando a supremacia cinza daquele ano recém-nascido.

O alívio que lhe fora injetado foi o suficiente para fazer o que havia adiado. Afirmações emergiam da mente, fazendo-o mais forte e decidido. Não havia outra saída, tinha de ir visitá-la. Era uma necessidade tal encontro, e com a quantidade desmedida de “coisas” que pairavam no ar, uma solução se fazia urgente.

Fechou a porta e voltou a sentar-se no sofá. Com as mãos na cabeça, procurando sustentá-la, buscava a premeditação dos atos, a medida das emoções e a explicação para o inexplicável.

A atmosfera pesada que o ano novo trouxera, transladava do intenso ao insuportável, e passivo a tudo Júlio permanecia. Talvez por esse motivo, corpo e alma ainda não se dessem vencidos por completo. Em seus pensamentos a chama de um intento bruxuleava iluminando, quase imperceptivelmente, a edificação de sua coragem. Buscando forças passeava na solitária casa de tempos em tempos; não as encontrando, sepultava-se no sofá, tentando se esquivar dos tormentos, os quais não lhe davam sossego.

A casa tinha as luzes acesas. Na varanda uma rede balançava com a indiferença da brisa fresca e agradável do janeiro tropical. Os arbustos que emolduravam a moradia, ainda traziam sobre as viçosas e escuras folhas a luminosidade alegre e singela dos pisca-piscas. Do interior da casa ecoava um som agradável e relaxante, daqueles que fazem os olhos pesarem e o corpo sucumbir aos encantos de Morfeu.

Através da vidraça, e pela cortina entreaberta, distinguia-se a silhueta de uma mulher que bailava levemente ao sabor da melodia. Tinha o corpo magro, cabelos longos e esvoaçantes de um negro opaco e quebradiço, que se traduzia como uma noite de pesadelos angustiantes e intermináveis. A pele, que em virtude da escassez de carne servia somente de envoltório aos ossos, possuía uma palidez falecida. Os olhos eram fundos e de uma morbidez hipnótica. Tinham em sua órbita uma névoa fosca e úmida, que juntamente com as feições comprimidas da face drenada e ausente, traziam, sem restrições, um profundo e sofrível pesar.

Júlio balançou a cabeça. Levantou-se rapidamente, tentando remover da alma os pensamentos que o aterrorizaram. Pensava em tudo, exceto em Catarina. Andava de um lado ao outro, mas a imagem dela o perseguia, torturando-o para aonde quer que fosse. Após o breve transe que passara, Catarina encontrava-se agora na sala, nos quartos, na cozinha, no jardim, no quintal... Surgia de formas variadas e em tempos distintos, mas era geralmente nos momentos de lucidez de Júlio, que a noiva aparecia.

Júlio procurou o que beber, nada encontrou. Eram oito horas da noite. Pensou em sair, porém na porta da frente Catarina lhe ordenava que ficasse. Prometeu não demorar; ela não consentiu. Implorou. Não surtiu efeito. A lâmina do destempero lhe feriu, e num momento de inconsciência arremessou o copo que se encontrava sobre a mesa na direção dela. O objeto despedaçou-se juntamente com Catarina, deixando somente a sombra da ex-noiva na mente de Júlio. Fechou os olhos, respirou, abriu a porta e saiu, nem sequer se importando em trancá-la.

Duas horas e meia depois ele retornou. Carregava em uma das mãos uma sacola, e na cabeça um peso. Numa, algo para beber; noutra, tormentos e algo já bebido. Lançou sobre a mesa da cozinha a sacola, e sobre a cadeira, corpo e mente expirados. Debruçou-se pesadamente e deixou o tempo fazer sua parte. Manteve-se imóvel por alguns minutos. Levantou a cabeça, abriu os olhos e premeditou um futuro próximo. De dentro do balcão um copo, da sacola uma garrafa e da mente uma ideia: beber e dormir. E tudo assim se fez. Bebeu e dormiu.

Júlio encontrava-se, como de costume, deitado no sofá. Catarina aproximou-se. Ela o observou com ternura, pousando sobre o peito suas frágeis mãos, como se fizesse um pedido aos céus falando a ele. Dos lábios pálidos e ressecados um amontoado de frases ressoou, trazendo ao sono pesado e tortuoso de Júlio mais sofrimento que o habitual...

“Amor... Nada do que faças agora trará nossa vida de volta, porém, para acalentar o sofrimento, torna-se necessário que aceites a real condição... Encontro-me presa aqui, não pelos laços de nosso amor, mas somente pelo fato de que não reconhecesses a partida... Amor espero tua visita...”

Passavam das três horas da tarde quando Júlio acordou. Estava banhado em suor. Tinha na lembrança a visita da noiva, e no coração a certeza de que findaria os sofrimentos dele e dela.

Apanhou sobre a cama uma enxovalhada camisa verde e uma calça não mais clara que seus pensamentos. Enquanto vestia a camisa observava sua solidão e abandono. Era imprescindível que aquela situação mudasse, mas pensaria nisso depois.

Ao passar pela cozinha avistou a garrafa de vodca. Tomou-a em mãos e drenou o restante do líquido que lá se encontrava. O ambiente impregnou-se com o forte odor de álcool, e a pia, que por tempos não era agraciada por líquido algum, saciou sua sede da pior forma possível.

O cemitério passava por reformas. Junto aos muros laterais e ao portão frontal trabalhadores queimavam a pele sob o escaldante sol de janeiro. Júlio adentrou desapercebido, e somente um, dentre todos, acenou-lhe a mão. Ele observou a movimentação e logo retribuiu o aceno com um meio sorriso. O homem, de semblante calmo e sereno lhe sorriu por entre a viçosa e densa barba, sussurrando um ‘tenha um bom dia’, que faria do mais desacreditado um esperançoso.

Oitava fila, décimo terceiro mausoléu, gaveta cinco. Júlio Alpes de Carmachi, sob o epitáfio:

“Viva o quanto lhe aprouver. Sobreviva se necessário. Mas não esqueça jamais de construir e manter o amor”.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 22/03/2009
Reeditado em 29/12/2018
Código do texto: T1499505
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