Odisséia do Catruz
Sábado, pela manhã, nossas vidas ganhavam sentido naquele campo de peladas e a semana se justificava. Um sábado que se emendava noutro sábado, jamais se esgotava e fazia de meninos heróis.
O campo do Taffarel era Tróia a ser conquistada, lá quem mandava era Pezão; e Marreco era nosso Ulisses irresistível. Marreco era talento e desassombro: transformava, num passe de mágica, qualquer ajuntamento de “perebas” em time de futebol.
O fato é que a única jogada que faziam era passar a bola para Marreco. Então ele demolia defesas, adversários e destruía a alma dos goleiros com aqueles gols que se entra com bola e tudo.
A arte do Marreco era transformar o impossível em matéria corriqueira; dar aos jogadores que o acompanhavam nestas jornadas alma para se tornarem coadjuvantes a altura e transformar as manhãs de sábado nos dias de nossa redenção.
Havia um detalhe, e o diabo mora nos detalhes, e este diabo atendia pela alcunha de Pezão. Um garoto mal, tanto quanto um garoto possa ser; batia e explorava, dizem, os mais fracos e era o melhor goleiro da Estrada do Catruz. Vendo as defesas do puto você entenderia o seu parentesco com o capeta. Havia uma necessidade de destruir o moral do atacante, de implodir sua coragem e capturar o seu coração.
Marreco e Pezão se enfrentaram duas vezes e os jogos não acabaram por brigas e agressões ao juiz; e nas duas situações prevaleceu um insosso empate. Havia um mundo a ser conquistado e, no entanto, coroa só havia uma.
Taffarel que era o dono do bar que dava nome ao “rala-coco”, figura respeitada, seria o juiz; e para sepultar de vez qualquer possibilidade de briga durante o jogo foi escalado para auxiliá-lo Cachaça, sujeito bacana e amigo de todo mundo.
A semana que antecedeu ao jogo foi de ansiedade e provocações, que renderam duas brigas e só fez promover o jogo a uma situação de guerra. A manhã de sábado chegou vertiginosa, o campo estava tomado por uma multidão, os admiradores de Marreco provocavam a torcida de Pezão que prometia rir por último.
Assim que foi dada a saída, vimos o que representaria aquela partida; depois de driblar dois, Marreco desferiu uma bomba que explodiu na trave. A torcida foi ao delírio, mas, estranhamente, Pezão ria como se em nenhum momento houvesse sido ameaçado pela perigosa estocada do Marreco.
Prosseguiu rindo quando outras três tentativas atingiram o travessão, a torcida de Marreco já não se sentia segura em suas provocações.
O time de Pezão empurrado pela teimosia da bola em submeter-se a Marreco, se agigantara e lutava na disputa do espaço entre as duas intermediárias; jogadores se lançavam sem medo ao campo do adversário, mas a presença de Marreco era poderosa demais para ser ignorada.
Ele seguia como se a dificuldade de abrir o placar, fosse mais um capricho que seu talento logo venceria. A cada nova tentativa Pezão retribuía com defesas arrojadas, ninguém mais torcia, era só uma tensão que se precipitava a cada investida dos dois times, mas todos sabiam era o jogo de Marreco e Pezão.
Aos trinta minutos do segundo tempo Marreco se lança pelo lado esquerdo, “pedala” e leva o lateral ao fundo e lhe aplica uma “caneta”, segue em direção a área, quase sem angulo prepara o chute que decidiria a partida, mas depois de tomar um drible, Pezão se recupera e salta para abafar o chute mortal de Marreco. A torcida delira e já se adivinha um empate entre a obstinação de Marreco e a coragem e o talento de Pezão.
Faltavam cinco minutos para o fim da partida, estava indistinto quem torcia por quem; o jogo aumentara de tal forma suas dimensões, que os rivais de Marreco elogiavam seus dribles e chutes; até mesmo quem havia sido hostilizado por Pezão se rendia ao seu talento e aplaudia sua última defesa.
Então os deuses do futebol transformaram a partida em drama, Camburão, zagueiro estilo pau puro, cortou com a mão, dentro da área, uma bola que deixaria Marreco em ótima situação.
Taffarel, sem hesitar, marca a penalidade, há uma reação do time de Pezão, mas Cachaça confirma a marcação.
É grande o ajuntamento atrás do gol de Pezão, Marreco coloca a bola sobre a marca da penalidade, toma distancia e aguarda a autorização de Taffarel para a cobrança, caí sobre o campo um silencio tal a intensidade das emoções prestes a explodirem em catarse. Taffarel autoriza Marreco bate com raiva no canto, Pezão com uma elasticidade inimaginável voa e toca na bola que explode na trave mais uma vez, no rebote Camburão “alivia” para a lateral; estranhamente Pezão não comemora e já não tem mais aquele sorrisinho cínico que trazia à tona a cada defesa.
Faltam dois minutos para o fim do jogo e parece que teremos um empate sem gols, mas Pezão está tenso e agitado manda que Camburão não abandone Marreco e se preciso que faça falta na intermediária.
Então uma bola rebatida passa por Camburão que escorrega e deixa entre Marreco e Pezão uma arrancada de trinta metros. Marreco parte veloz e Pezão se posiciona para fechar o angulo, os relógios param, as respirações desaceleram, Marreco ameaça encobrir o goleiro e chuta em cima de Pezão que toma um dos “frangos” mais vexatórios que um goleiro pode levar.
As torcidas explodem, o time de Marreco comemora em triunfo, Camburão tenta consolar Pezão que faz uma cara enfezada, o jogo acaba.
Jamais vou esquecer aquele jogo, daqueles nomes.
Marreco engordou, tem dois filhos e trabalha na companhia telefônica, já Pezão sumiu por muito tempo; estive com ele no Centro semana passada, não mudou muito e ainda traz no brilho dos olhos aquela expressão cínica, que pontuou aquele jogo, deus do céu, ele ainda sorri do mesmo jeito.