A Odisséia de Candinha.
A canoa deslizava sobre o espelho d’água e mesmo os animais temiam a batida do remo, era o sinal da presença do bicho homem. Luzia seguia qual a calmaria do rio, sem qualquer sentido de urgência.
A neta de uma longínqua tribo do norte do Pará seguia o rio, numa descida que começou aos dezesseis anos levada por Noquinha, um garimpeiro sonhador, desde então sua vida é descer o rio na direção do mar. Hoje Noquinha é só as espaçadas visitas e as cinco barrigas que vingaram por capricho de uma natureza volúvel e temperada por jornadas de fome.
Desde a última estiagem Noquinha não aparecia e o solo seco da seca verde vinha trazendo a fome para homens e bichos.
Foi uma estação assim que levou o pequeno Matias o único menino que pariu. Assim, dominada por estas memórias, Luzia seguia por aquela trilha liquida que acolhia com a mesma força que sufocava nas suas variações mais intempestivas. Ela respeitava aquele rio como um ente vivo, altivo e superior.
Na pequena canoa cabia apenas um mirrado farnel de peixe seco, algumas tralhas e uma trouxa com os poucos trapos da pequena Candinha. Uma menina de grandes olhos negros que carregavam todos os mistérios de sua natureza selvagem. Seus destinos eram regidos pelo rio que em sua descida se abria em revelações.
Havia uma promessa de encontrar Dona Mocinha, dinda de Candinha e dona de algum comércio na cidade de A. Luzia bem se recorda da promessa de Dona Mocinha de levar Candinha para viver na cidade, em busca de uma vida menos penosa que os sabidos destinos ribeirinhos. Por duas vezes as comadres falaram no assunto e Luzia sempre conseguiu repelir os desejos de sua comadre. Contudo, agora são cinco meninas e a estiagem já está secando os córregos e os braços do rio de onde sempre tirou o seu sustento e a água de beber está cada dia mais longe.
Luzia lembra o pequeno Matias com olhos fundos, consumido por uma febre, por uma fome e por um silencioso desespero de esperar pela morte. O pequeno indiozinho envolto em sua mortalha foi à lembrança com que sustentou suas remadas, seguiam mãe e filha num tumultuado silencio rio abaixo, suavemente, na luta por um pouco mais de vida.
As outras meninas ficaram com sua irmã que subira o rio com uma carga de castanhas e esperava o barco do seu Higino que pagava ninharias pelo produto recolhido no seio da floresta. Exploradas e consumidas pela ganância elas se defrontavam com as quimeras que sua cultura criou para expor e explorar seus medos. Nenhum dos deuses da sua tribo era tão temido e adorado quanto os homens desta civilização estranha, que corrompeu e decretava o fim dos seus valores.
Luzia trazia na pele curtida pelo sol uma indefinição de idade, o corpo pequeno, porém firme impunha ainda certa dignidade que ela mesma não conseguia determinar.
Caía à tarde quando enfim chegaram a A. e havia todo um ruído da civilização desordenada que aos seus olhos era compreendida como uma dimensão impossível de ser decifrada; logo não atinou para isso, apenas por um momento admirou as bancas do mercado de peixe com inúmeras espécies e sorriu um sorriso constrangido.
Luzia catou as tralhas da menina e tomou-a pela mão e foi em busca da barraca do seu Basílio, um caboclo soturno que acompanhava Dona Mocinha nas suas viagens sem explicação para aquele sem fim. Candinha vestia o ultimo vestido presenteado por sua dinda e era nestes trapos roídos que ela sentia-se liberta de uma sina de mulheres pequenas e sofridas arrastadas pelas correntes do rio para um destino inexorável.
Seu Basílio ao ver as duas se aproximou e lhes deu de beber e comer olhou enigmaticamente para as duas, se demorou um pouco mais em Candinha e sinalizou para que o seguissem.
A casa era grande, tinha um gradil e era envolvido por uma cerca viva, havia um grande portão que estava aberto, como se as esperasse. Ouviam-se ruídos e uma música discreta; um cheiro de comida que adivinhava uma atividade intensa em alguma cozinha.
Seu Basílio bateu palmas e foi atendido por uma jovem que ao vê-los ofereceu assento na varanda e anunciou que ia chamar a madrinha.
Dona Mocinha trazia uma eletricidade no olhar e sua voz vibrava de forma calorosa. Curvou-se diante de Candinha olhou-a nos olhos de forma indecifrável, porém amável, o cheiro de um perfume inesquecível envolveu Luzia e Candinha.
As comadres se cumprimentaram e trocaram juras de se verem num futuro próximo. Dona Mocinha jurou que Candinha seria como uma filha que sempre sonhara ter. Dito isto se aproximou da menina passou a mão suavemente pelos cabelos negros e acariciou seu rosto de forma maternal.
Mandou que trouxessem bolo e café, que comeu com a comadre e a afilhada com tal naturalidade que pareciam partilhar destas tardes amiúde.
Chamou a menina que os recebera e cochichou alguma coisa em seu ouvido; fez umas perguntas sobre os dentes de Candinha e então ela sorriu de forma acanhada e Dona Mocinha pediu que não tivesse vergonha de sua madrinha.
Logo a menina chegou por uma porta no final da varanda com um pacote grande que entregou a dona da casa.
Dona Mocinha explicou que eram umas mudas de roupa para as crianças, insistiu para que Luzia as aceitasse sem se envergonhar e dissesse a eles que era um presente da madrinha de Candinha. Luzia agradeceu sinceramente comovida olhou para a menina e disse para Candinha que sua madrinha era uma mulher muito boa, que agora cuidaria dela e que ela deveria se esforçar para não desgostar aquela mulher tão boa que a acolhia como filha.
Candinha acenou com a cabeça como se concordasse com tudo o que fora dito, fez um carinho sutil em sua mãe que a acolheu num abraço enigmático e pesaroso.
Dona Mocinha pegou a comadre pelo braço enquanto a menina da casa levava Candinha para dentro, por fim seus olhares se cruzaram num adeus silencioso.
Candinha nem viu as notas que Dona Mocinha colocou nas mãos de sua mãe, que acompanhada do Seu Basílio seguiu para o caís para se refugiar no rio.