Corte profundo

Em meio à tempestade de areia, avista-se a imagem fosca de algo que se assemelha a pessoas. Uma família. À frente, um homem de olhos entreabertos e lábios sulcados. Atrás dele, uma mulher com o rosto coberto por um talho de pano roto e sujo, segurando uma criança envolta por um manto. Logo em seguida, uma menina, de aproximadamente uns oito anos, que caminha vagarosamente sob a sua sombra. O vento corta-lhe as faces como uma lâmina, provocando-lhes pequenos cortes, que ela encobre com um lenço pequeno. Tenta divisar além das embaciadas imagens de seus pais a direção para a qual caminha; mas, a sua estatura diminuta amiúda-se mais ainda diante da figura robusta do pai; e, em relação à mãe, ela enxerga apenas a sombra vultosa do patriarca a se sobrepor àquela pobre mulher. Então, a garota baixa a cabeça. E um nó na garganta lhe estrangula o ser.

A tempestade intensifica-se. Os caminhantes aproximam-se uns dos outros, como se um rebanho extintivamente orientado para a união grupal de seus integrantes em decorrência do perigo iminente. Após a forte turbulência, o pai encontra, a poucos metros, pedaços de couro de animais remendados com tecidos rasgados e sustentados por galhos. Em torno, uma fogueira apagada há poucas horas. A família ruma para o local avistado. Chegando, a mulher acomoda-se com a criança, restando ao pai e a filha o papel de recolher alguns gravetos para a fogueira: a noite anuncia-se no brilho míope das primeiras estrelas.

Chegada a noite, a família reúne-se em torno da fogueira. O frio estridente retrai os músculos. A fome consome as derradeiras energias. A menina leva à boca uma lasca, esmigalhada pacientemente entre os dedos, dos galhos utilizados para a fogueira. Aos poucos o sono vai lhe pesando nas pálpebras. Mas a fome a quer acordada. A mãe percebe a inquietação da filha e ordena-lhe que vá deitar-se. A garota acomoda-se em torno da fogueira, fecha os olhos e finge-se dormir. A criança menor adormece nos braços truculentos do pai, enquanto a mãe forra o chão com um tecido para acomodar a ela e o bebê.

O sono lentamente se sobrepõe à fome da menina. E, em alguns instantes, ela acaba sonhando com o alimento e trazendo essas imagens oníricas para os espasmos de realidade que lhe sucedem. O pai e a mãe mantem-se acordados em um diálogo do qual a garota, apesar do sono, compreendia algumas frases... “Amanhã, não pode passar de amanhã”... “Eu faço”... ”Mas não temos nada para estancar o”... “Não importa. Tem que ser amanhã”...

O dia amanhece nos olhos da menina. São horas de ela recolher os poucos pertences. A mãe e o pai já haviam acordado. Ela recolhe o tecido sob o qual dormiram e dobra-os em suas mãos pequenas. A mãe chama-a na pequena tenda. Ela dirigi-se para lá sob o olhar estranho e compenetrado do pai. Ao entrar, a garota tem as vistas ofuscadas pelo brilho incandescente da lâmina de uma navalha que é segura pela mão da matriarca. A voz severa da mãe ordena-lhe que tire as vestes e deite-se. Ela obedece. A mulher solicita-lhe que abra as pernas e pressione firme nos dentes um talho de pano dobrado. A lâmina fria toca-lhe as genitálias. O primeiro corte é feito, apesar do grito abafado da menina. Ela sente a navalha dilacerasse-lhe uma parte íntima e profunda do seu ser, como se o que lhe mutilassem não fosse apenas um talho de carne. Sente um líquido viscoso correr-lhe pelas pernas. Então, a mãe coloca a cabeça fora da tenda e roga ao marido que lhe traga panos limpos para estancar o sangue. Ao voltar-se para a filha, nota uma poça de sangue rubro formada em torno da garota já desfalecida. A mulher apreça o marido, que logo surge apreensivo. É estancado o sangue. A mulher toma em uma das mãos o misturado de ervas preparado para a situação e aplica no local do sangramento. Passam-se algumas horas, e os pais esperançosos de que a menina recobre logo a consciência para continuar a caminhada. O pai, enxergando a necessidade de partir, propõe a esposa levar a filha nas costas: em breve viria outra tempestade de areia sob circunstâncias, talvez, mais horrendas.

A família levanta acampamento. O pai carrega a filha nas costas. O osso de sua coluna cervical recosta-se entre as pernas da garota. Ao acordar, a garota sente uma dor insuportável e retorce-se de maneira que o pai perde o equilíbrio e cai. A mãe acode a filha no chão. Ele se levanta, estende o olhar sobre algumas dunas de areia, procura o rosto da esposa e ordena-lhe com um gesto que termine o procedimento. São abertas as pernas da filha, passada a linha na agulha e costurados os lábios genitais da filha, deixando apenas uma pequena fresta para que faça suas necessidades fisiológicas. A menina outra vez desfalece. O pai a toma pelos braços. A esposa guarda os instrumentos utilizados. Recolhe do manto estendido na areia a criança menor. Levanta-se, a espera do primeiro passo do marido, e prossegue sua caminhada.

antônimo
Enviado por antônimo em 14/03/2009
Reeditado em 14/03/2009
Código do texto: T1485766
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