Os três terços do quarto
Não sei por que a gente se esquece de vez em quando de Deus. No sofrimento, quando as cruzes nos pesam aos ombros, é a vez de achar-se carecendo Dele e pedindo-Lhe ajuda.
Eu havia me separado há três anos. Resolvemos, amigavelmente, que eu ficaria no casarão construído para abrigar a família eternamente, o que não aconteceu. Ousei com esse propósito. Esqueci-me de lembrar que nada terreno é-nos para sempre. Todos os dias eu me recolhia ao primeiro andar dele antes das dezenove horas. Meu banho era sagrado, antes de realizar boas leituras e navegar pela NET. Quase sempre, às vinte e duas horas, eu entrava no quarto, rezava por uns vinte minutos e a escuridão silenciosa do aposento me encaminhava ao sono profundo que, normalmente, estava comigo até as quatro horas da madrugada, quando o despertar me convidava a escrever até enxergar pela janela os primeiros raios de sol dando-me um denso e agradável bom-dia.
Essa rotina era mansa e constante por todo esse período doloroso pós-separação. Já havia me acostumado com ele. Por vários anos, lembro-me, pedi a Deus que reunisse a família no antigo lar cristão do qual eu estava acostumado a participar. Pedi-lhe muito. Há uns seis meses falei com Ele e decidi que não mais Lhe pediria, porque, para mim, com a inexistência do pedido realizado, eu estava convicto de que era isso o que Ele queria. Após tantas solicitações de reconciliação em minhas orações, resolvi mesmo crer que Deus não me queria mais unido a ela. Meu milagre deveria ser a continuidade do estado separado.
Quando eu olhava para dentro de mim e via o quão caridoso eu era, o tamanho de minha doação aos que de mim necessitavam, ficava a desentender o porquê de estar carregando uma cruz tão pesada. Nada dava certo. Cria que o mundo inteiro conspirava contra mim e que minhas orações não tinham forças e que eu estava longe de Deus. Falava direto com Ele, sentia sua presença ao meu lado, mas, quando o sol luzia livre do lado de fora do quarto, começava a minha via-crúcis. Eu me aventurava entre os dribles das ruas e o desamor dos irmãos que contatava.
Nos meus últimos meses de oração solitária, apelei para Nossa Senhora. Disse-Lhe que meu lar havia sido desfeito, logo o meu que eu trazia como presença sacrossanta dentro dos meus melhores propósitos. Lembro-me de que eu Lhe disse: Mãe Santa, enxerga o meu martírio, livra-me de tanto sofrimento e me mostra o caminho mais justo e merecido a mim. Rogo-te pelo amor que tens ao teu filho Jesus. Pois eu pedi demais ao meu Deus e não estou conseguindo entender esse silêncio vindo Dele que me tem enclausurado e retirado parte de minha fé.
Eu me senti como se estivesse traindo a Deus. Senti medo e O revisitei em oração,pedindo-Lhe perdão. Nesse dia eu ultrapassei uma hora no meu tempo costumeiro dedicado às orações. Perdi a conta dos minutos e nunca havia conversado tão francamente com Ele. Se alguém me pedisse para eu descrever o que havia em meu quarto, eu diria: há um móvel branco grande, uma mesinha com duas cadeiras, dois criados-mudos, uma cama imensa e uma imagem barroca de Nossa Senhora da Conceição sobre uma mesinha de vidro. Nada mais do que isso eu saberia dizer, não porque eu me esquecesse, mas porque eu não via mesmo. Mas havia muito mais objetos no meu quarto de dormir, coisas importantes e que eu deveria ter visto há anos. E eu tentei repreender as minhas retinas e não pude. Tentei punir meu coração e não era tarefa minha. Tentei não sentir medo, mas me foi em vão. E aí senti uma enorme necessidade de telefonar para Adélia e dizer-lhe do meu medo, de minha apreensão e pedir-lhe ajuda. Afinal, minha irmã mais velha era o porto seguro mais próximo de minha via-crúcis. Ela sabia tudo acerca das dores que me consumiam a alma nesse período de separação. Era uma conselheira fiel, dedicada, com quem eu podia contar sempre que quisesse. Ela atendeu o telefone alegre. Parecia ter adivinhado que eu estava necessitando demais dela.
– Alô, meu filho, o que é que há?
– Uma coisa engraçada pra te dizer...
– O que aconteceu?
– Antes de dizer-te, exijo o teu silêncio sobre a história que vou te contar. Promete?
– Claro que prometo. Nem era preciso você me pedir isso.
Disse-lhe então o que me havia acontecido. E enquanto eu lhe falava, era como se eu estivesse retirando de mim um monte de amarguras. Foi bom! Senti-me leve. Eis a história: Na noite de três para quatro de março, assim que acabei de rezar, desliguei a televisão com o controle sem fio e me cobri. Não sei se passaram nem dez minutos e, ao lado de minha cabeça, pude enxergar uma luz discreta que se acendia, como se fosse alguns vaga-lumes em círculo. Senti algo estranho e logo me apossou um medo enorme, bem maior do que minha alma. Tentado, retirei dos olhos o lençol e dirigi o olhar na direção do que ainda não sabia o que era. A cabeceira da minha cama era de ferro desenhado. No bico esquerdo dela havia, sobrepostos, três terços. Eu juro, nunca havia os visto. Suas contas luziam tão santamente, como se alguém houvesse posto anjos em cada uma delas. Mas o meu medo não me permitiu fixá-los no olhar e quanto mais eu rezava ao lado do meu medo, mais elas se acendiam.
Demorei bastante para pegar no sono. Quando o dia raiou, pus o olhar sem medo, mas cheio de curiosidade sobre os terços. Vi que se tratava de três terços, um dos quais era de couro. Não peguei em nenhum porque um resto de medo dentro de mim não deixava fazê-lo. Passei o dia apreensivo, mas não disse dele a ninguém. De instante em instante eu me lembrava do brilho, uma cintilância suave, cheia de paz e de encanto. Não entendia o porquê do meu medo, porém ele estava muito forte dentro de mim.
Na noite de quatro para cinco do mesmo mês – noite seguinte – quase à mesma hora, fui dormir. Não me lembrei de ter medo. Após rezar, em um intervalo quase igual ao do dia anterior, vi as luzes santas se acenderem. Meu medo despertou ainda mais forte. Levantei o lençol e enxerguei os três luzindo. Dessa vez pareciam pulsar com o brilho, como as pontas luminosas no céu estrelado. Não consegui mais dormir. Quanto mais eu rezava, mais sentia a claridade dentro de mim, mesmo sem abrir os olhos.
Pela manhã, sonolento, após uma noite inteira sem dormir, tomei um banho e deitei-me novamente. Dessa vez, pus as mãos em um dos terços e pedi a Nossa Senhora que me desse, àquela hora, o que mais necessitava: sono profundo. E aí dormi como um elefante e duas horas depois estava telefonando para minha irmã. Esta, sabendo da outra sua amiga verdadeira, ligou para ela e disse-lhe do meu pesadelo. Antes me pediu a permissão para fazê-lo e eu lhe dei.
– Aldir, posso conversar com um padre amigo meu sobre você?
–Pode! Mas peça-lhe sigilo absoluto. Depois vão dizer por aí que eu estou vendo espíritos.
– Meu filho, você foi visitado por Nossa Senhora. Ela está lhe protegendo. Não tenha medo algum. Isso é lindo.
E eu, então, caí em mim, lembrei-me dos meus últimos meses de oração quando desacreditei que Deus poderia conceder-me o milagre que tanto Lhe pedi e, virando para Ela, pedi ajuda, diante do desespero de minhas súplicas. Não sei o que fiz, nada sei sobre o porquê dos terços se acenderem. Vou continuar rezando e muito. Aprender a olhar ao meu redor as coisas importantes, que sempre me olham. Quando entro no quarto agora, a primeira coisa que olho são os terços e, confesso, algo vindo deles me penetra mansamente e é como se eu ganhasse fôlego novo. Ela me ensinou que Deus é o maior caminho entre mim e o céu. Após meu Padre Nosso, confesso, tremo de alegria quando inicio minhas três Ave-Marias. Meu quarto jamais será o mesmo, nem tampouco minhas orações. Cinira foi quem me revelou a Maria das Luzes dos meus terços, de minhas dores e do meu amor. Adélia é de Maria, Cinira também e eu das três Marias por mim tão amadas.