O SUBVERSIVO
O SUBVERSIVO
- Teje preso!
Depositei a caipirinha no balcão e olhei para trás, a fim de saber de quem era aquela voz autoritária. Às minhas costas estavam duas metralhadoras, quatro pistolas e seis soldados da P.M., comandados por um outro que ostentava algumas divisas no braço. Olhei para os lados, não havia mais ninguém no balcão. Arrisquei:
-Tá falando comigo?
-Cala a boca! Fica de pé, palhaço! Respeite a otoridade ou leva chumbo!
Deduzi que a bronca era comigo mesmo e, como sempre respeitei as autoridades, fiquei de pé e com a boca fechada. O das divisas sussurrou para os das metralhadoras:
-Cuidado, o tipo é perigoso.
Fui empurrado para fora do boteco e jogado para dentro do camburão. Fiquei meditando no que teria feito de errado. A única coisa que lembrava é que, na noite passada, tinha dormido com a Leonor. Não vi qualquer crime nisso, ela era maior de idade e, pelo que soubesse, com muitos quilômetros rodados, já na hora de virar o velocímetro.
Trancaram-me num cubículo escuro, sem grades ou janelas, no fim do corredor da cadeia pública. O lugar não era muito confortável, mas eu, como já tinha morado em apartamento de estudante no Rio, não custei a me adaptar, se bem que não dava para ficar deitado. Voltei aos meus pensamentos. Alguns dias atrás, o Pepe, vermelho suando e balançando as banhas, chegou todo misterioso no meu recanto favorito – o Bar do Careca, deu-me um abraço fraternal e sentou-se ao meu lado. Disse que estava meio duro e se eu não podia pagar uma bebida. Como havia acertado uma bolada na centena da vaca e, em conseqüência, estava pródigo naquele dia, mandei descer um litro de scotch. Ali pela quarta dose, o Pepe me confidenciou:
-A revolução está para estourar. Nós vamos tomar o poder.
-É??? – Respondi surpreendido, querendo saber de mais detalhes.
Neste momento, chegou o Zé Caçapa, que, sem qualquer cerimônia, pediu mais um copo. Pelo jeito já estava alto também.
Mais de dois terços do litro já havia desaparecido. Nestas alturas, tirei do bolso uma poesia de minha autoria e declamei aos presentes. Os dois, mais o Careca, me aplaudiram de pé. Teceram críticas elogiosas. Opinião unânime: eu estava me perdendo, deveria ir para São Paulo, seria um grande escritor. Agradecido, pedi mais um litro.
Foi na metade desse segundo litro, após muita poesia, que surgiu a idéia na cabeça do Pepe:
-Você será o Ministro da Educação. Sua cultura não pode ser desperdiçada. Após vencermos a revolução, o ministério será seu.
Agradeci sensibilizado a nomeação. Fiz um discurso inflamado, no estilo gongórico, comprometendo-me a desempenhar o cargo com toda dedicação.
Não me recordo bem do que aconteceu após esse discurso. Ao que parece, fizemos uma via sacra pela zona boêmia da cidade, cantando músicas revolucionárias e esvaziando as prateleiras dos bares. O certo mesmo é que, no dia seguinte, amanheci com a cabeça estourando, prova da falsificação do whisky.
Agora estava eu ali, encolhidinho no chão da solitária escura.
-Sua vez de prestar depoimento.
Um negrão de dois metros de altura por dois de largura fez o comunicado. Foi me empurrando, sem qualquer educação, pelo corredor até o gabinete do delegado.
-Muito bem. Qual é seu nome?
-Francisco de Castro..
-Hum! O sobrenome é suspeito. Profissão?
-Biscates.
-Respeito comigo! Profissão?
-Corretor de imóveis.
-Qual a acusação?
-Não sei.
-Cala a boca! Não perguntei a você. Qual é a acusação, inspetor?
Um magricelinho respondeu:
-Subversão. Esse aí a acusado de ser o intelectual do movimento.
Quis agradecer ser chamado de intelectual, mas levei uma cacetada e fiquei quieto.
-Pode começar a falar – berrou o delegado comigo.
-Quero um advogado! –Exigi, colocando as mãos sobre a mesa. Levei outra porrada, desta vez nos nós dos dedos.
-Vai confessar logo, ou quer ser amaciado?
-? ? ?
-Cabo! Leva ele pra amaciar.
Fui conduzido a pontapés para outra sala. O corpo todo dolorido.
-Tira a roupa!
-Que? Quis protestar. Não pegava bem eu ficar pelado no meio daqueles homens que eu não conhecia. Mas um chute no saco me convenceu a tirar até as meias.
-Bota ele na cadeira ginecológica, ordenou o negrão.
Quatro me agarraram e me colocaram pelado na cadeira com as pernas para cima. O negrão acendeu uma vela grossa e veio para o meu lado de baixo.
-Confessa ou quer que enfia? – perguntou.
-Confesso! – respondi convencido.
Levaram-me de volta ao gabinete. Deu sorte. Junto à autoridade estava um velho conhecido meu, o Juca Vitório, rei do jogo do bicho, fumando cafonamente um havana legítimo. Ao me ver entrar, já foi falando ao delegado, em tom imperativo:
-Esse não. Esse eu conheço. É boa gente. Bebe um pouco, mas é dos nossos. Um freguês e tanto. Muito honesto nos seus compromissos. Pode mandá-lo embora.
O delegado, meio desiludido com a informação, olhou para mim e disse:
-Bem, pode ir dessa vez, mas tome cuidado. Tô de olho em você, seu...Castro. Agradece aí o comendador, se não fosse por ele...
Fiz os agradecimentos necessários e me mandei para casa.
Cheguei com o corpo todo moído, a garganta seca. Abri uma garrafa de conhaque e tomei um gole bem grande pelo gargalo. Liguei o radinho de pilha. Todas as rádios estavam transmitindo marchas militares. Já melhor, após um banho para refazer as energias, olhei na folhinha para saber a data. Era primeiro de abril.
(* conto publicado na 2ª. Antologia literária – Grandes escritores de Minas Gerais – Litteris Editora – 2001.)