Dono da Verdade

Dono da Verdade

- Comprei a verdade em março de 1930 – respondeu o dono, sem mirar o interlocutor de frente.

- Por que em março?

- Porque me pareceu poético.

Na outra ponta da mesa, um sujeito esbraveja.

- Isso é um absurdo! Cursei a USP, a Sorbone e Yale. Me pós doutorei com distinção. Escrevo sobre a verdade há décadas. Além do mais...

Silêncio.

- Como se deu a aquisição da verdade?

- Como qualquer aquisição. Uma simples transferência de propriedade

– volve o dono – assina-se uma papelada, e pronto.

- Isso é ultrajante! Escrevi 36 obras completas sobre a verdade – protesta o sujeito.

Silêncio.

- E... como tem sido?

- Nu e cru – replica o dono, encarando o interlocutor – quando a temperatura acusa 35 graus, está calor. Quando os termômetros despencam para 15, sente-se um frio relativo. Se a queda for brusca, pode trazer complicações. Afinal, o que o senhor quer?

- Quero a história oficial, sobre essa demanda. Ambos pleiteiam a verdade, urge chegarmos num consenso.

- Consenso coisa nenhuma – troveja o sujeito – dei um duro danado para edificar minha reputação. Passei anos comendo arroz, feijão e tomate para custear meus estudos. Dormia com um olho aberto e andava colado às paredes. Minha obra foi construída à custa de muito...

Silêncio.

- O que é que se consegue com a verdade?

- Desprezo – afirma o dono – e algumas certezas.

- Blasfêmia!! – irrompe o sujeito – Não existe certeza de nada e...

Silêncio.

- O senhor poderia apontar alguma certeza?

- Certamente. Vê aquela festa infantil, no pátio ao lado? Percebe a algazarra que as crianças fazem? Gritam, correm de um lado para outro, gritam com tanto empenho, como se a alegria do mundo inteiro estivesse, nesse instante, sob responsabilidade delas e de mais ninguém.

- Qual! – destempera-se o sujeito – Crianças agem assim por serem crianças. Seus processos físico-químico-biológicos as compelem para esse frenesi. Mas que...

Silêncio.

- Qual a sua idade?

- Completo 131 em abril.

- Não parece.

- Sei. Sempre me dizem isso. Vou tomar como um elogio.

- Mas que palhaçada é essa? – agita-se o sujeito, do outro lado da mesa. Seus advogados o aconselham silêncio.

- Por que o senhor comprou?

- Foi uma oportunidade. O antigo dono era viúvo, não tivera filhos, vendeu-a para passar confortavelmente os últimos anos de sua vida numa estância climática. Resort, como vocês chamam hoje em dia. Julguei ser uma boa opção atravessar o século XX com a verdade. Poderia ser útil, no futuro. Pode dizer que tenho espírito aventureiro.

- Embusteiro! – protesta o sujeito, apopléctico – levei uma vida de trabalho e retidão. Escrevo sobre a verdade desde os 17 anos. Escrevi...

Silêncio.

- Pode nos dar outro exemplo, sobre a certeza?

- Pois não. Ali, do outro lado da rua. Vê aquele churrasco? Tenho certeza absoluta de que o boi não tocou a campainha daquela residência e disse: srs., vim aqui para deleitá-los com minha carne suculenta. Peço, encarecido, que dêem cabo de minha existência, para que possa servi-los. Tenho certeza disso.

O sujeito se abanava ferozmente, com uma revista velha. Já tomara dois copos de água, um dois quais, para ajudá-lo a engolir comprimidos cor de rosa.

- O senhor poderia...

- Peça-lhe para falar sobre coisas concretas, e não baboseiras! – vociferou o sujeito, largando a revista – se ele comprou a verdade, poderia cessar as quimeras. Pergunte-lhe sobre a realidade. Escrevi 36 livros sobre a realidade...

Silêncio.

O interlocutor olha para o dono. Não foi necessário formular a questão.

- Recentemente, um dos termômetros da realidade expressou-se assim – falou o dono - menino de 12 anos leva 9 tiros na porta do colégio. Meninos de 16 anos chegam de motocicleta, e, sabe-se lá por qual calibre, cravejam 9 tiros no menino de 12 anos. Motivo: acerto de contas. O menino de 12 anos comercializava entorpecentes, para meninos ou meninas de igual faixa etária, ou próxima, e por não ter repassado a féria obtida aos meninos de 16, foi executado na porta da escola.

- Isso não é a realidade – torna o sujeito a esbravejar – foi uma fatalidade. Essa questão está sendo apurada. Tudo está sob controle. Equipamentos moderníssimos foram comprados. Novos projetos de lei pretendem...

Silêncio.

- O senhor não tem intenção de vender a verdade?

- Veja – explica o dono – investi todas as minhas posses nessa aquisição. Mal sei ler e escrever, não tenho profissão definida e sobrevivo à custa de uma módica pensão. A exemplo do proprietário anterior, também sou viúvo e não tive filhos. Assim, a verdade é o que me resta. Como poderia vendê-la para ele, ou para quem quer que seja?

O sujeito se agita na cadeira. Brada não estar ali para pleitear nada, mas, diante do contra-senso instaurado, brada mais ainda estar disposto a pagar o que for preciso. Não é correto, pois de fato lhe pertence, mas enfim...

Silêncio.

- Há a chance do senhor mudar de idéia?

O dono sacode os ombros. Alega vivermos no território das possibilidades sem fim, entretanto, nascera num dia muito tumultuado, e que, devido a isso, as chances talvez sejam escassas.

- E que data foi essa?

- Nasci no dia em que nascem certos artistas, que estão sempre querendo partir, sem ter para onde ir. Nasci no dia em que descobri que a vida era muito complicada para viver. Mas que se tratava de um desafio, por demais atraente para ser evitado. Nasci por vontade própria, do mesmo modo como surgem as questões que circundam a verdade – espontaneamente.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 08/03/2009
Reeditado em 18/08/2014
Código do texto: T1476031
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