Back to black
Quarta-feira sempre fora o seu dia de graças, vivia a semana na expectativa deste dia; trocava os lençóis, perfumava a cama com uma colônia um tanto máscula e saía para a sua rotina de digerir as horas. Quarta-feira era dia de clímax.
As pesquisas na biblioteca mostraram-se mais frutíferas que a idéia tola de entrevistar as cobaias de sua pesquisa para o mestrado. O dia se preenchia em soluções rotineiras com o tempo medido e projetado. Nenhuma novidade irá roubar aquela ordem disfarçada, a atenção apurada no ritmo do relógio que ela não olha, pois mede o tempo na própria ansiedade
G. ligou convidando-a para almoçar, ela nestes dias joga um jogo bruto de sedução promete e se compromete para uma próxima noite, rejeita qualquer opção para este dia. G. hoje é quarta-feira, nunca será seu dia.
São cinco horas e o metrô ficará lotado, ela passa no prédio da fundação organiza rapidamente o material coletado e ouve alguns comentários sobre as entrevistas pendentes e se despede dos companheiros de pesquisa com sorrisos e um até amanhã.
O pequeno prédio na Rua do Catete tem aquele cheiro de bolor que remete ao passado, mas ela não se importa, naquele momento ela está a algumas horas de sua mais audaciosa resolução.
O apartamento é acanhado, porém seu gosto e a sua necessidade trataram de conferir ao lugar alguma personalidade. Pequenas plantas trouxeram um frescor e vivacidade para aquelas paredes antigas, não ficara nada mal.
Depois de um banho demorado que sempre lhe desperta a libido ela convoca para cantar Amy Winehouse, sua voz é um tributo num repertório que descortina uma melodia que preenche toda a sala, ela não conhecia Amy, porém ele a ama e quase decola quando fala dela, então ela aprendeu a amá-la, e como cúmplices dialogam à sua chegada.
Adora Back to Black...
O celular interrompe o fluxo das sensações, o número é o dele.
“Oi. Está atrasado preguiçoso”.
“Querida, vem logo para o hospital seu pai enfartou!”
“Alô. Quem está falando?”
“Seu pai está na UTI, vem logo”...
Catatônica ela chega ao corredor, sua mãe está pálida e traz uma expressão desesperada, elas se olham e se abraçam num misto de angústia e solidariedade.
Este abraço está carregado de significados, toda uma rede de segredos está posta neste abraço e mais que em qualquer momento elas procuram se amparar.
“Como foi isto? O que os médicos disseram? Qual a situação?”
“Não sei, me disseram que é grave, ele está indo para uma cirurgia e o clínico disse que as próximas horas são muito importantes”.
A falta de notícia e o cansaço aproximaram as mulheres elas se tocam e permanecem mudas, alguns amigos passaram e ficaram de voltar, faz mais ou menos meia hora que nenhum dos telefones toca pedindo notícias.
Passam de cinco horas desde o início da cirurgia, somente se ouve os sons das macas e dos passos das enfermeiras que circulam pelo andar, o corpo registra o cansaço, mas mesmo assim elas não deixarão o hospital até que tenham notícias da cirurgia.
O cansaço e a força das emoções as abatem, a madrugada as surpreende adormecidas em suas poltronas. Dois médicos um mais novo e outro um pouco mais velho as despertam, não trazem no rosto uma expressão positiva.
“Lamentamos muito... Fizemos tudo ao nosso alcance... As coronárias já estavam muito comprometidas...”
Estas palavras transportaram sua mãe para um mundo de escuridão.
Sedada, porém lúcida, ela remoia baixinho a perda do companheiro, procurava conforto nos olhos da filha, que de cabeça baixa teimava em sufocar as lágrimas de um choro contido.
Depois do sepultamento no São João Batista elas foram para o Flamengo, não conseguiriam ficar sozinhas, estranhamente já não choravam, porém conservavam no semblante a expressão de uma tristeza aterradora.
Foram até a cozinha e tomaram chá, seguiram até a sala e se deram conta do abismo que aquela ausência criara entre seus mundos.
“Filha, talvez não seja a hora, mas se não falar agora talvez não fale sobre isto nunca mais. Seu pai tinha uma amante, eu sei, sentia isto a cada dia, não sei se iria perdê-lo, mas percebia cada vez mais intensamente envolvido. Penso que ela seja uma destas jovens estagiárias do escritório sei lá...”
“Mãe, deixa isto para lá, agora não faz diferença”.
“É como te disse preciso falar disto com alguém, isto está me sufocando, me enlouquecendo. Ainda a pouco olhava as pessoas que trabalhavam com ele e pensei por um momento que ela estivesse lá para se despedir e que talvez eu devesse isto a ele.”
“Não pensa nisto agora, por favor...”
“Não tenho como não pensar, somos parte da vida dele o amamos e nos despedimos da forma que me parece mais justa, sei que alguém mais tem este direito, é assim que ele se sentiria em relação a nós, você sabe...”
“Para mãe, pelo amor de Deus!”
“Só queria falar com você, estou bem...”
“Então, vou para casa, me liga mais tarde. Tchau...”