BARBA, CABELO E BIGODE

Depois da noite macabra, a porta da barbearia. Batente. É cedo, muito cedo. Eu, Almiro e barbeiro, virtuose da tesoura, cortador de madeixas à moda antiga, tenho em uma das mãos uma lista. Varei a madrugada inteira a fazer e refazer cálculos. O Ademir, da “Ao Leão de Ouro”, filou-me o café da manhã. Canguinha, fominha, mão-de-vaca! Bem mais amigo do que cliente, o Joaquim – como sempre –, o primeiro a assinar o ponto. Escondo-lhe a lista.

– Cabelo e barba.

Setenta anos. Vaidoso. Faz a barba todo o santo dia. Ar saudabilíssimo. Sofre de câncer. Mal aparenta ter câncer. Mais amigo do que cliente, Joaquim – como sempre –, o primeiro a bater o ponto. Meu primeiro amigo com câncer! Tem os cabelos brancos porque quer. Um dândi!... Ontem mesmo, mandou um buquê de flores para Dôra acompanhado de um cartão pungente. Um lorde!... Sabia que não passaria em branco o casamento de Dôra. Ademir me garantira: “É câncer!”. E faz a barba todo o santo dia!...

– Capricha!

Atentíssimas, minhas tesouras e minhas giletes cortam-lhe os pelos com excesso de cuidado. Muitíssimo cuidado. Temo arranhar-lhe a pele. Câncer é câncer!... Não lhe falarei da gravidez de Dôra e nem da vontade de deixar de torcer pelo Bahia. É ridículo torcer por time que perdeu ontem um campeonato por causa de uma pífia disputa de pênaltis. Sem que notasse, escondi a tal lista na gaveta, na mesma gaveta do amolador de navalhas. Ardia-me nas mãos. Esta escrito. E, se esta escrito, vale tal qual pule de jogo do bicho. Anotado: o Joaquim, no cabeçalho, o primeiro de nós a morrer. Eu, na rabeira, o último a ser chamado. Erro de cálculo? Tomara! Ao menos, não seja eu o primeiro.

– Capricha!

Setenta anos de idade sem sequer ter feito um só exame. E, logo no primeiro: câncer!

– Capricha!

Miguel – genro postiço – pediu a Ademir que advertisse a todos os seus amigos para que o tratassem com a maior naturalidade. Ademir garantiu-me: “É câncer!”. Estranhei. Câncer?... Pensei, lhes juro, queimar de logo a tal da lista. Adulterá-la? Nem pensar!... Barbeia-se todo o santo dia e ainda por cima sofre de câncer. Como?!...

– Dôra será felicíssima!

Enganados os que pensam que todos os homens que sofrem de câncer são trágicos. Nem por um segundo Joaquim desgrudou seu olhar do traseiro de Valdete, a manicure. Talcos e tosses, loções e espirros, tapinhas no rosto. Meu melhor cabelo e barba! Tesouras e nucas, escovas e pentes, a camisa social a pinicar, espelhos e reflexos, guarda-pós a ventar. Meu melhor cabelo e barba! Enxutíssimo! Um lorde! Um dândi! Repito, enquanto bem-aventura Dôra.

– Dôra será felicíssima!

Evito o assunto. Ar saudabilíssimo! Mal aparenta ter câncer. Logo mais, a minha Dôra enfrentará o altar no quarto mês de gravidez. Evito o assunto. A entregarei ao noivo quatro meses mais gorda. Escândalo! Como explicar-lhe? A própria afilhada a subir ao altar com um contrapeso? Escândalo! Nada hei de comentar, nem a Dôra nem o câncer.

– O troco!

Não tem. Demais para cem. Belíssimas flores! A minha Dora pediu-me para agradecer-lhe o bilhete e as flores. Para lá de talentoso. Veia de escritor. Deixe de ser Caxias, Joaquim, pague depois.

– O troco!

Sentado estava, sentado ficou. Resmungão, cabeça dura!...Quer para logo o seu troco? Ademir, da “Ao Leão de Ouro”, guarda as notas graúdas nos colchões, e das miúdas faz fundo de caixa. Mealheiro! Basta eu dar um pulo no outro lado da rua.

– Aguardo.

Batente, passeio, travessia, passos largos. Uma marinete zás-trás; logo, a carroça desgovernada. Acidente, tombo, estrago. Pisoteiam-me cavalos. Um desastre. Cuidado! Joaquim salta da cadeira de barbeiro. Pela primeira vez o vi apavorado. Na lista, tô na rabiola, não sou prima-dona. Sou saudável, pouco de câncer! E, desesperado, translada-me da rua para a calçada. E grita! Me pede para ficar.

– O bigode. Rapa-me o bigode!

Como o admiro! O faço prometer que entrará logo mais, às seis da tarde, de braços dados com a minha Dôra na Igreja de São Francisco. Padrinhos são também para isso. A lista?... Na gaveta do amolador de navalhas. Em mãos! Leia-a de cabo a rabo. Os primeiros serão os últimos.

Joaquim morreu de idade. Superou Matusalém. Foi o último da lista.